Tecnologias e ensino presencial e a distância | Vani Moreira Kenski

O livro é um resultado de pesquisas acadêmicas, vivências pessoais e de palestras proferidas pela autora, composto de diversos textos que se interligam, objetivando colaborar para “o melhor desempenho dos professores”. É uma obra literária composta por nove capítulos.

A autora inicia o primeiro capítulo desmistificando a ideia redutora sobre tecnologia, vista como algo aterrorizante, ameaçador, esclarecendo que a tecnologia já está presente no cotidiano como algo totalmente integrado aos hábitos diários, não sendo, portanto, um fato recente. Kenski (2010) afirma que a chamada “era tecnológica” já é algo real desde o início da civilização, pois desde que o ser humano passou a construir objetos para enfrentar os desafios da vida a tecnologia existe; compreende-se então que a tecnologia não surge na sociedade industrial ou nos novos tempos da era virtual. À medida que a tecnologia vai evoluindo, percebem-se mudanças no comportamento das pessoas. Afirma ainda que a tecnologia não se restringe a ferramentas, máquinas, equipamentos, pois há as chamadas tecnologias da inteligência (linguagens oral, a escrita e a digital), que são uma articulação mental em busca de novos conhecimentos. Referindo-se à relação dos usuários com as Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC), a autora conclui que “as novas tecnologias de informação e comunicação, caracterizadas como midiáticas, são, portanto, mais do que simples suportes. Elas interferem em nosso modo de pensar, sentir, agir, de nos relacionarmos socialmente e adquirirmos conhecimentos. Criam uma nova cultura e um novo modelo de sociedade” (KENSKI, 2010, p. 23).

A autora ressalta a importância de despertar uma visão crítica sobre a informação, o conhecimento e a inovação, fato desafiador para a escola e seus professores. Ainda sobre a visão crítica diante da evolução tecnológica, salienta o cuidado com o aspecto democrático do conhecimento diante da exclusão socioeconômica. A escola precisa estar aberta a mudanças e à absorção de novos conceitos e formatações para acompanhar o ritmo da era da velocidade, a exemplo do ensino a distância. Os educadores devem buscar mudar as suas concepções, usando ou não as TIC, concebendo o ensino de uma forma inovadora e diferenciada daquela anteriormente utilizada. Expõe ainda que um professor que manuseia adequadamente as TIC poderá, inclusive, intervir na instalação de programas e softwares em sua escola, além de usá-las de forma crítica. Todavia, não basta o acesso a sofisticados meios tecnológico sem a necessária reformulação total do sistema de ensino, como a valorização da carreira docente e a garantia de qualidade na formação do professor.

Kenski (2010) caracteriza o espaço escolar presencial realizando um paralelo ao espaço virtual de aprendizagem dominado pelas linguagens audiovisual e midiatizada, ampliando assim o alcance da escola frente aos estudantes e à sociedade. A autora delineia também os contornos de uma aula virtual, descrita em uma tela de computador, sua estrutura é a linguagem em um campo que permite a distribuição de conhecimentos sem que, necessariamente, todos os estudantes estejam presentes em um mesmo local, é uma “nova forma de linguagem e de cultura” (KENSKI, 2010, p. 56). Para acompanhar todo esse ritmo ditado pela nova era, a escola precisa gestar sua atuação a partir dessas inovações tecnológicas e o professor transforma-se em pesquisador, tendo um conhecimento em permanente estado de ebulição, sendo preciso também a formulação de políticas públicas adequadas. Portanto, dentro desse universo, as aulas presenciais já não são as únicas possibilidades de ensino. As aulas virtualmente ministradas já se mostram como alternativas para um grande universo de pessoas impossibilitadas de responder às exigências de uma aula presencial. Além da inclusão social que o ensino a distância permite, estabelece-se também, a partir dele, uma relação interinstitucional, o que contribui para a formação de um cidadão participativo. Todas as mudanças decorrentes da interatividade virtual interferem na forma de pensar, raciocinar e interagir, os espaços virtuais ocupados pelos internautas passam a fazer parte do seu mundo, mexem com sua estrutura mental e sua personalidade. É o ciberespaço que surge e se mostra como outra possibilidade de territorialização. As comunidades mediadas pelo computador também interferem nas relações políticas e nas participações democráticas e possuem capacidade para enfrentar o monopólio dos meios de comunicação.

A interação e o ensino sempre se interligaram e as tecnologias em nada diminuem esse elo, portanto os novos espaços virtuais de interação em busca de aprendizagem são formas diferentes e diversificadas de comunicação voltadas para o ensino, no entanto, o que poderá revolucionar o ensino é a forma de utilização das tecnologias, seja o livro, o giz ou computadores em rede. No entanto, é o dinamismo da aula e a participação cooperativa que fará a diferença. Para tanto, é necessário ter clareza da importância do sistema cooperativo na elaboração de cursos em rede e também em cursos presenciais e semipresenciais. Para que se tenha uma aprendizagem envolta na colaboração, é necessário que alguns princípios básicos sejam observados, conforme cita a autora: a interdependência do grupo, a interação, o pensamento divergente e a avaliação. São novos mecanismos de aprendizagem que vão exigir novos métodos radicalmente diferentes de ensinar, nos quais o professor é o maestro e “a música é feita por todos”.

Dessa maneira, o texto percorre o universo das tecnologias e sua relação com o ensino, focando nos desafios atuais para a integração da escola com as inovações tecnológicas. É um livro que apresenta, com precisão, as indispensáveis reformulações que o ensino deve obter, a partir de políticas públicas sérias e realmente comprometidas com a democratização do conhecimento. A autora ratifica os imprescindíveis investimentos na qualificação do professor, sintonizada com os novos tempos, que seja eficaz e que ofereça condições para enfrentar os desafios de uma sociedade tecnológica, globalizada e, portanto, dinâmica, veloz e em contínuo movimento de mudanças. Em todo o livro, a autora fala com autoridade de quem conhece o ambiente educacional e tece opiniões procedentes. As análises apresentadas no livro, se levadas em consideração nas reformulações das políticas públicas voltadas para o ensino, em muito poderão contribuir para efetivas mudanças na educação. Apresenta, ainda, textos objetivos e de fácil leitura, possibilitando ao leitor compreender o universo das tecnologias, e ajuda a construir uma relação mais crítica com o contexto virtual. Em alguns momentos, as definições e ou pequenos trechos parecem repetitivos, ou seja, parecem apresentar em alguns capítulos definições já lidas em outros capítulos; algo justificável, já que o livro é uma coletânea de diversos artigos produzidos e publicados pela autora em eventos, periódicos e capítulos de outros livros. A leitura é sugerida para profissionais da educação de todos os níveis e, principalmente, para aqueles que trabalham com a inclusão tecnológica e buscam compreender e apreender sobre o novo mundo permeado pelo uso das Tecnologias da Informação e Comunicação.

Referência

KENSKI, Vani Moreira. Tecnologias e ensino presencial e a distância. Campinas: 8ª Ed. Papirus, (2010).


Resenhista

Irabel Lago de Oliveira – Professora de Português do Ensino Fundamental II e do Ensino Médio da escola pública estadual. Licenciada em Letras com Inglês pela Universidade da Cidade do Salvador (UNIFACS), especialista em Educação de Jovens e Adultos (EJA), Educação a Distância, Tecnologias e Educação e Mestre em Educação e Sociedade pelo ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

KENSKI, Vani Moreira. Tecnologias e ensino presencial e a distância. 8ª Ed. Campinas: Papirus, 2010. Resenha de: OLIVEIRA, Irabel Lago de. Revista Aprendizagem em EAD. Taguatinga, v.7, n.1, novembro, 2018. Acessar publicação original [DR]

A liturgia escolar na idade moderna – BOTO (RBHE)

BOTO, Carlota A liturgia escolar na idade moderna. CAMPINAS, SP: PAPIRUS. Dóris Bittencourt Almeida Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil, 2017. Resenha de: Almeida, D. B. A liturgia escolar na Idade Moderna. Revista Brasileira de História da Educação, n.18(48) 2018.

“A escola é a sua existência. E, portanto, a escola é sua história […] para pensar na escola que desejamos, é necessário meditar na escola que recebemos” (p. 23). É a partir dessas palavras que Carlota Boto faz um convite ao leitor a ingressar em outra temporalidade e aprofundar os conhecimentos acerca da constituição do processo de escolarização, como fenômeno social que marca os séculos XVI e XVII, no continente europeu.

Ao mobilizar uma vasta quantidade de autores, clássicos e contemporâneos, a autora produz um texto que contempla dois atributos: densidade teórica e generosidade acadêmica. Preocupada constantemente em didatizar, a pesquisadora, aos poucos, mas em um crescente, esclarece ao leitor como emerge na Europa um novo modelo de escola, “[…] com uma fisionomia própria, que a diferencia de suas antecessoras” (p. 21). O livro destina-se a todos os interessados em história da educação, sobretudo, a estudantes e professores, envolvidos com o ensino/aprendizagem/pesquisa nesse campo de conhecimento.

Ainda na introdução, apresentam-se, para além dos objetivos, preceitos teóricos e metodológicos presentes na obra, como se pode notar na referência a Norbert Elias, no sentido de aproximar o discurso pedagógico à construção de um modelo civilizador europeu, entre os séculos XV a XVII. Metodologicamente, o texto se constitui por meio de revisões bibliográficas, estudo de textos de autores clássicos no período estudado.

O livro está dividido em seis capítulos, inicia pela reflexão acerca do contexto europeu renascentista que fomentou o advento do livro impresso e a constituição de um conceito moderno para a infância. Na sequência, uma discussão acerca do processo civilizador, engendrado na Europa, atrelado a uma nova concepção que se delineava referente à educação escolarizada. Nesse sentido, tematiza-se o pensamento pedagógico, preconizado por Erasmo, Montaigne, Vives e Comenius, considerando-se as afinidades entre todos eles. Por fim, apresentam-se os colégios jesuíticos e as escolas lassalistas, emblemas de muitos preceitos da educação escolar, dos quais somos herdeiros.

Em termos contextuais, a autora demonstra as condições que permitiram a emergência da modernidade europeia. Discute a relação entre escola, Reforma Protestante e cultura escrita. Importa lembrar que um dos princípios da Reforma Protestante era a leitura das Escrituras, que não mais passaria pela clivagem de qualquer mediador. O advento da cultura impressa também imprimiu alterações em relação aos modos de apreender o mundo, por meio de crescente formação de novas comunidades leitoras. O aumento de leitores, atrelado ao desenvolvimento da cultura impressa, paulatinamente, teve profunda ressonância no modelo de escola que se instituía, tendo em vista que o ensino se colocava entre duas práticas: a oralidade, herança do passado medieval, e a escrita, que representa a modernidade.

Ainda sobre o cenário europeu, o livro reconhece as inter-relações entre a gênese do capitalismo comercial, princípios de secularização e regulação de costumes. Todas essas são evidências que conduzem a uma maior privacidade nos estilos de viver, afetando diretamente os conceitos de família nuclear e os entendimentos que se tinha a respeito da criança. Mesmo ainda não se conhecendo em profundidade as singularidades da criança, percebiam-se suas diferenças em relação aos adultos e essas percepções inscrevem-se nesse ambiente da Europa dos séculos XVI e XVII.

Nessa perspectiva, enfatiza-se que a família moderna não dispunha de instrumentos para educar, sozinha, as gerações mais jovens. A escola, como instituição educativa, constitui-se como lugar intermediário entre família e escola, legitima-se e passa a ser solicitada pelas populações de diferentes países da Europa, a ela caberá “[…] instruir, formar, educar” (p. 21). E é assim que, em vários países da Europa, multiplicaram-se os colégios, assumindo significados distintos na modernidade. No passado, entre os séculos XIII e XIV, eram espécies de asilo para estudantes pobres, mantidos, sobretudo, por ordens religiosas. No início do século XV, passam a ter caráter formativo, mantendo um rigoroso sistema disciplina, aliando instrução e moralização, tendo como referências a proteção à criança, por meio do isolamento do convívio comunitário.

Constituída sobre dois pilares, ensinar saberes e formar comportamentos, a nova escola tem na produção de civilidades um eixo forte de sustentação, atrelado ao movimento humanista que se fortalecia a partir do século XVI, valorizando as individualidades, em um processo singular de secularização da vida humana. Assim, à educação, em uma perspectiva moderna, cumpriria produzir, transmitir e reproduzir determinado padrão cultural e intelectual das pessoas, por isso a importância do refinamento dos costumes, atrelado a determinado modo de ser europeu. É possível dizer que a cultura da escola moderna do Ocidente é imediatamente conectada ao processo civilizador.

De acordo com Boto, “[…] há uma pedagogia da escrita na Renascença” (p. 80), o reconhecimento das especificidades da criança faz emergir os manuais de civilidade, desde o século XVI que circulavam em larga escala, prescreviam e regravam os cuidados com essa infância, até então praticamente desconhecida, sob a máxima “[…] educar os filhos, torná-los civis” (p. 85). Entretanto não passa despercebido pela autora o fato de que, apesar do alargamento da ideia de infância, apenas algumas crianças serão atingidas por tal sentimento, filhas de nobres e burgueses, “[…] havia outra criança, aquela que é identificada ao povoe para a qual não há proteção” (p. 51).

Inúmeros foram os tratados que, sob o gênero de civilidade, tiveram lugar na produção impressa. O tratado de Erasmo, A civilidade pueril, foi o primeiro texto da era moderna dirigido às crianças, diretamente voltado à formação civil e às boas maneiras e que evidencia o surgimento da moderna sensibilidade social da infância.

Outro pensador a quem é dado destaque no livro é Montaigne. Entre seus postulados, condena o fato de o ensino das atitudes estar secundário em relação ao ensino de outros saberes. Sobre a didática de seu tempo, afirma que o aprendizado precisaria ter significados, “[…] saber de cor não é saber” (p. 81), a competência livresca, para ele, pode servir de ornamento, mas não de fundamentos. Defende a importância de um preceptor, destacado pela civilidade, mais do que por sua competência intelectual.

Na sequência, a autora inclui o pensamento de Vives, um dos poucos humanistas a se preocupar com a formação dos comportamentos e da instrução na perspectiva do ensino coletivo. Este acreditava no valor intrínseco das práticas de escolarização, quando a maior parte dos humanistas ainda condenava o ensino coletivo como algo que corromperia os costumes.

Considerado precursor de Comenius na sistematização dos métodos de ensino, censurava a escola de seu tempo, por não conseguir acompanhar o desenvolvimento da cultura letrada. Afirmou que “[…] pouco era ensinado, quase nada era aprendido” (p. 133). Enfatizava a necessidade de se fertilizar a memória com o exercício, bem como a importância do método, que confere significados ao processo de ensinar. Para Vives, o segredo do aprendizado estaria posto na capacidade de anotar as informações ministradas pelo mestre ou as informações colhidas no livro durante a aula.

Além disso, antecipava a ideia do edifício escolar construído para fins pedagógicos, como ícone do moderno conceito de escola. Discutia as condições arquitetônicas necessárias para o prédio escolar, tendo como características a vigilância e o isolamento. Por fim, ainda cabe lembrar que, para Vives, educar e ensinar eram habilidades que requeriam o conhecer os estudantes, bem como o conhecimento da matéria a ser ensinada. Sua obra abordava o cotidiano da escolarização, defendia o aprendizado pela imitação, daí a importância do exemplo de pais e mestres. Entusiasta do lugar progressista que a escola ocupava no tabuleiro social, dizia que lá também era lugar de fazer amigos. Considerava imprescindível observar comparativamente produções escritas do mesmo aluno em épocas diferentes para avaliar o desenvolvimento do seu aprendizado. Seguindo as ideias da produção de civilidades, afirmava que a escola era a instituição precípua para habilitar o sujeito a portar-se bem em sociedade.

Chega-se, então, ao século XVII, e os escritos de Boto realçam o pensamento de Ratke e de Comenius, pela relevância de ambos nas concepções de escola, sobretudo da didática. Ratke, precursor de Comenius, antecipa em 40 anos a idealização de uma escola para todos, pautada em um ensino coletivo. Assim como fez Vives e como fará Comenius posteriormente, Ratke desenvolve uma percepção das escolas de seu tempo, pautada em uma série de questionamentos. Procura compreender por que eram diminutas as iniciativas em prol da escolarização, por que as escolas que existiam não tinham sucesso e por que havia tanta evasão escolar. Acredita que boa parte desses problemas seria sanada se houvesse maior preocupação com os métodos de ensinar.

E, finalmente, Comenius comparece no texto, considerando as reflexões de seus antecessores, sistematiza o conceito de um saber estritamente pedagógico, materializado com a Didática magna. Para ele, “[…] o método era a chave para a escolarização moderna” (p. 186). Imbuído de princípios cartesianos de acumulação progressiva de conhecimentos, afirma a importância do encadeamento dos conteúdos, partindo do simples até atingir maior complexidade. Valendo-se da metáfora do relógio, prevê um reordenamento do tempo e do espaço escolar, assim, os alunos seriam divididos em classes conforme níveis de aprendizagem e as matérias, distribuídas por horários. É um precursor do método simultâneo, declara que o “[…] professor deveria imitar o Sol” (p. 188), e, assim, irradiar-se igualmente sobre todos os seus alunos. Critica aos exercícios de memorização que não viessem acompanhados pela prévia compreensão. É contrario ao excesso de horas na escola, acreditando que o exagero do tempo escolar acarreta perda da concentração. Desse modo, pode-se dizer que Comenius confere determinada precisão à vida escolar, por meio da colocação de regras claras que deveriam ser internalizadas por discentes e docentes.

O texto avança e apresenta concepções dos colégios jesuíticos, no século XVI, e das escolas para crianças pobres concebidas por La Salle, em fins do século XVII. Em comum, os discursos dessas instituições, que disciplinam o saber, modelam corpos e mentes, como produtos do pensamento pedagógico anteriormente discutido no livro. A autora afirma que os colégios jesuíticos constituem referência para pensar a acepção de colégio que ainda há hoje, e o modelo lassalista constitui iniciativa pioneira para projetar aquilo que tempos depois seria denominado de escola primária.

Entre os objetivos primordiais dos colégios jesuíticos, estava o de formar uma elite letrada, eram, portanto, instituições destinadas às camadas sociais superiores, preocupadas em adquirir uma cultura geral. As aulas eram organizadas em explicações teóricas e em disputas, desdobradas em preleção, repetição, declamação, memorização e imitações literárias. Como princípios básicos, a subtração do tempo de convívio familiar, a ambientação em um espaço especificamente pedagógico, tendo-se em vista que os colégios eram geralmente internatos. Pretendia-se criar uma espécie de ambiente purificado, marcado pela vigilância no sentido de moldar os estudantes. O primeiro colégio jesuítico estabeleceu-se na cidade de Messina, em 1548, teve como inspiração os métodos de ensino da Universidade de Paris, pautados na preleção e repetição. Em 1599, sistematiza-se o Ratio studiorum, por influência de Erasmo e Vives, sobretudo, constitui-se em um programa escolar, pautado na ordem e na divisão dos estudos. É o produto de dezenas de anos de debates, um texto produzido a partir da recolha do que se acreditava serem as experiências de ensino bem-sucedidas.

Com relação às escolas dos Irmãos das Escolas Cristãs, liderados por La Salle, explica-se que foram iniciativas originais para as crianças do povo, raras naquela temporalidade. Tratava-se de um projeto de ensino elementar para as camadas populares, entretanto atraiu crianças de outras camadas sociais. Denominadas escolas de caridade, fundamentadas nos ensinamentos de leitura, escrita e cálculo, concebiam o princípio da simultaneidade e sucessão do ensino. Assim, primeiro se aprendia a ler, só depois as crianças seriam apresentadas à escrita, sendo primeira a letra bastão e depois a cursiva. Por último, os cálculos. Todos esses ensinamentos aconteceriam em meio a um ambiente permeado pela catequese e civilidade. Boto explica que, diante da falta de conhecimento de como ensinar tudo a todos, procurou-se separar grupos de alunos liderados por monitores mais avançados, essa prática seria o embrião do ensino mútuo, método de ensino desenvolvido posteriormente. Em termos da liturgia escolar, valorizava-se o silêncio que reverenciava, ao mesmo tempo, Deus e a instituição. A escola colocava-se como um local intermediário da vida: entre os assuntos mundanos e os divinos estaria a essência do conhecimento.

O livro se encaminha para o final, e sua autora produz uma reflexão acerca da quase invisibilidade das transformações que acontecem nos processos de escolarização, no passado e no presente. A escola moderna cria, em alguma medida, seu ritual de organização, trabalhando simultaneamente saberes e valores, estabelecendo rotinas, disciplina, hábitos de civilidade, permeados de racionalização. Reforça a tese da inscrição da instituição escolar no processo de construção do Estado moderno. Alerta para a construção desse novo lugar social ocupado pela escolarização, em uma Europa que se urbaniza sob a égide do capitalismo comercial, da Reforma Protestante e do advento da cultura impressa. Nesse sentido, a escola é a instituição que se dá a ver como lugar primeiro do cultivo da racionalidade e da civilidade.

Para concluir, desafia o leitor a problematizar a escola contemporânea, conduz a pensar naquilo que pode parece natural a todos nós, sujeitos escolarizados, mas que carrega marcas da historicidade dos processos educativos. A liturgia escolar, que comporta ritualidades, é tramada pela autora, ao longo das páginas desse livro. Por meio de uma apropriação de sentidos do texto, que se traduz na resenha, pretende-se incitar o leitor a ir além dessas palavras e desenvolver a leitura da obra em questão. Encerramos, como iniciamos, trazendo as palavras de Carlota Boto, “[…] é preciso mudar o que estiver obsoleto. É preciso preservar o que considerar valoroso. É fundamental haver o fortalecimento de projetos políticos-pedagógicos democráticos. A transformação desejada é obra dos próprios agentes envolvidos na instituição escolar” (p. 293).

Notas

1. B Almeida foi responsável pela concepção, delineamento, análise e interpretação dos dados; redação do manuscrito, revisão crítica do conteúdo e aprovação da versão final a ser publicada.

Dóris Bittencourt Almeida – Doutora em Educação, Professora Associada I de História da Educação da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação/UFRGS. E-mail: [email protected]

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A geometria nos primeiros anos escolares: história e perspectivas atuais – SILVA; VALENTE (Bo)

SILVA, M.C.L. da; VALENTE, W.R. (Orgs.). A geometria nos primeiros anos escolares: história e perspectivas atuais. Campinas: Papirus, 2014. 141p.  Resenha de: GARNICA, Antonio Vicente Marafoti. Alterações e Manutenções: leituras sobre a geometria como saber escolar. BOLEMA, Rio Claro, v. 29, n.51, p.403-414, abr., 2015.

Dentre os historiadores que abraçam concepções contemporâneas sobre história, três princípios já enunciados em Bloch parecem indiscutíveis: aceitar que a origem de uma narrativa historiográfica é sempre arbitrada, atendendo a uma disposição do narrador; concordar que a origem não justifica a permanência; entender que as circunstâncias humanas do passado – que a história pretende prender num emaranhado de significados entrelaçados – são analisadas à luz do presente, numa dinâmica de manutenções e alterações que não ocorrem linearmente nem são guiadas pela ideia de progresso.

O recente livro organizado por Maria Célia Leme da Silva e Wagner Rodrigues Valente, A geometria nos primeiros anos escolares: história e perspectivas atuais, nos permite um exercício sobre essas concepções que, segundo penso, seria importante a todos os que escrevem história e, mais particularmente, história da Educação Matemática. Seu tema: como, no ensino primário brasileiro, se constitui e se mantém – em meio a uma dinâmica intensa de transformações – uma geometria escolar.

Ainda que o livro – como enunciam explicitamente tanto o prefácio, de Ana Maria Kaleff, quanto os próprios autores, na Introdução – tenha como público-alvo o professor que ensina Matemática para os anos iniciais, segundo os autores; e/ou os cursos de formação de professores, segundo Kaleff, o pesquisador do campo da História da Educação Matemática, não apenas por ser, também, professor que ensina Matemática – pode aproveitá-lo do mesmo modo, dada a diversidade de fontes nele disponibilizadas, os exercícios de análise sobre essas fontes e as possibilidades de problematização que ele abre, seja em relação à prática de escrever história ou às práticas didáticas relativas à Matemática.

Deve-se ressaltar, entretanto, que nem todos os quatro capítulos do texto são marcados pela mesma disposição historiográfica, viés acentuado nos três capítulos iniciais, que tecem como que um fio sequencial desde os primórdios do ensino de geometria nos anos iniciais (este o título do primeiro capítulo, que já arbitra aquela origem da narrativa da qual falávamos), passando pelo Ensino de Geometria nos Grupos Escolares, segundo capítulo, escrito por Silva e Valente, até chegar à perspectiva do Movimento Matemática Moderna, terceiro capítulo, escrito por Pinto e Valente. O quarto capítulo, redigido por Lima e Carvalho, – no qual há um diálogo mais direto com o professor que ensina Matemática acerca de conceitos geométricos e de formas possíveis de tratá-los em sala de aula, mas que, talvez por priorizar esse diálogo no presente não esteja entrecortado por uma perspectiva, digamos, histórica, nem teça relações com os capítulos anteriores, como fazem os três primeiros textos da coletânea – talvez esteja representado, no subtítulo da obra, pela expressão perspectivas atuais, ao passo que os demais capítulos respondem ao termo história, que consta do mesmo subtítulo. A conclusão, elaborada por Wagner Rodrigues Valente, explica a presença desse quarto capítulo, advogando por um vínculo entre ele e os capítulos anteriores: posto que coube aos primeiros capítulos analisar como a geometria se constitui em saber escolar para a escola primária brasileira, em meio a transformações e interferências dos mais variados matizes, seria necessário analisar, no presente,

[…] as referências tidas como importantes, tendo em vista a geometria escolar para o ensino fundamental, com destaque para os anos iniciais, em relação a como e ao que abordar nos primeiros contatos com a geometria, E, neste caso [do quarto capítulo], os temas tratados, conteúdos presentes para serem ensinados nos primeiros anos escolares, foram considerados de um ponto de vista mais avançado, sistematizados e com dose maior de rigor matemático (VALENTE, 2014, p. 129).

Segundo Silva e Valente, as primeiras discussões sobre o ensino de Geometria nos cursos primários brasileiros pode ser encontrada em texto de Martim Francisco d’Andrada – Memórias sobre a reforma de estudos da Capitania de São Paulo –, que defende proposta similar – uma quase tradução – àquela do Cinco memórias sobre a instrução pública, de Condorcet (2008) “o conteúdo desse ensino deve articular-se com a prática da agrimensura: um ensino de geometria para a prática, uma geometria prática para a primeira etapa da escolarização”. Desejando arbitrar um momento anterior à narrativa sobre a constituição, no Brasil, de um saber escolar relativo à geometria, o leitor poderia procurar aprofundar suas leituras acerca da posição do Marquês de Condorcet e dos Iluministas acerca da Instrução pública e, nela, das propostas para o ensino de geometria. Silva e Valente, entretanto, escrevendo para o professor que ensina matemática, sensatamente dão ao leitor apenas algumas indicações gerais acerca da posição de Condorcet sobre o assunto, e seguem em seu texto para abordar o primeiro fórum de discussão educacional instalado a partir da Independência: os debates parlamentares sobre a instrução popular.

O projeto da Casa Legislativa fixa, não sem controvérsias, que nas escolas primárias, “os professores ensinarão a ler, escrever, as quatro operações da aritmética, prática dos quebrados, decimais e proporções, as noções mais gerais de geometria prática, a gramática da língua nacional” (grifo dos autores). Sai vencedora dos debates, portanto, a linha dos parlamentares que, de alguma forma, abraçam a proposta de Martim Francisco, incluindo, em decorrência, a geometria dentre os saberes a serem ensinados na escola primária. Além disso, abraçam também, de alguma forma, aquela proposta condorcetiana que enfatiza o ensino dessa geometria prática. Interessante notar que se trata de um ponto de vista defendido pelo intelectual francês que, antes do período revolucionário, adepto das posições de Rousseau, Locke e Condillac, defendia o preceptorado, a instrução privada, para a educação da infância, e para o qual, apenas anos mais tarde, “a instrução pública passa a se configurar […] como uma resposta direta à contingência histórica, como alternativa anticlerical” (GOMES, 2008, p. 226). Interessante, também, notar que o plano de Concorcet – o Informe sobre a organização da instrução pública, baseado nas Cinco Memórias –, sequer votado pela Assembléia Legislativa do governo revolucionário, esteve na pauta de vários outros planos posteriores para a instrução pública da França, até fixar-se em solo brasileiro, na Lei de 15 de Outubro de 1827, marco historiográfico da educação nacional.

A lei de 1827 cria a escola primária em todas as cidades e vilas e aposta na adoção do método mútuo, do que decorre a publicação de livros que pudessem ajudar os mestres na tarefa que agora era deles exigida. Nesse cenário, surge a obra de Holanda Cavalcanti de Albuquerque, uma tradução/adaptação do Desenho Linear e Agrimensura, para todas as escolas primárias, qualquer que seja o modo de instrução que seja seguido, de 1819, referência para o ensino em Portugal e no Brasil, e cujo autor, Louis-Benjamin Francoeur, é pioneiro em sistematizar os conteúdos de desenho para as escolas de ensino mútuo. Mas, segundo Silva e Valente (p. 31)

[…] a análise do livro de Holanda Cavalcanti […] mostra que a geometria será prática se os alunos forem levados a trabalhar com as figuras geométricas. […] associar a esse ensino de geometria a agrimensura, a medição de terrenos, como é a intenção inicial de Condorcet, parece ter sido deixado de lado. […]. A representação do caráter prático migra, ao que parece, de atividades rurais – como a medição de terrenos – para as profissões que têm lugar nas vilas e cidades francesas ao tempo da escrita da obra de Francoeur. E mais: a forma prática dessa geometria deverá ser demonstrada no âmbito escolar: a atividade dos alunos com o desenho das formas geométricas. Não mais o campo, o terreno, como lugar da ação dos alunos é prova do caráter prático. Assim, nesses tempos iniciais, logo ficam à mostra as transformações de significado da geometria prática: nasce, desse modo, uma geometria escolar.

A cadeia de transformações pela qual passa a geometria ensinada nas escolas primárias leva, portanto, de uma geometria prática (essencialmente vinculada à agrimensura, como propunha Condorcet) ao desenho linear (uma prática relativa ao aprendizado da construção de linhas à mão livre. Uma prática de adestramento do olhar, rumo à precisão dos traçados) e, deste, à abordagem1 que aponta como saberes a serem ensinados “a caracterização e a nomenclatura dos objetos geométricos. […] Às aritméticas, agrega-se a geometria considerada mínima para o curso primário: os seus primeiros elementos, as primeiras definições” (SILVA; VALENTE, 2014, p. 38-9).

Pode-se notar, nos parágrafos anteriores (que nada mais são que uma síntese tosca das detalhadas análises realizadas no primeiro capítulo do livro aqui resenhado) esse processo de apropriação e transformação de ideias2 que servem de exemplo àquela não-linearidade a que nos referimos no início deste artigo e que cabe à historiografia estudar: por mais que a elaboração textual teime em exigir uma linearidade na apresentação, as ideias apresentadas explicitam o tortuoso caminho para que uma determinada apreensão se estabeleça, criando vínculos e impondo-se como referência, entre permanências e alterações. Trata-se, percebe-se, de uma defesa constante da prática como aliada à geometria escolar, ainda que essa prática possa ser (e efetivamente seja) lida de modo diferente com o correr do tempo. Os interessados em historiografia – e, especificamente, os interessados ou especialistas em História da Educação Matemática que, reiterando, não são (mas bem poderiam ser) o público-alvo do livro organizado por Silva e Valente – podem, a partir desse livro, destrinchar o emaranhado de linhas que conduzem ora a um resultado, ora a outro; que partem de uma mesma compreensão para criar diferentes versões, incluindo aquela que, num movimento homeopático e subversivo, tornar-se-á, de alguma forma, a versão hegemônica ou preponderante. Por outro lado, mesmo para o público-alvo do livro – os professores que ensinam Matemática – talvez fosse interessante problematizar – ou aventar perspectivas possíveis e plausíveis – sobre o que leva uma proposta de teor nitidamente prático – o ensino de geometria vinculado à agrimensura – deformar-se a ponto de se aproximar de uma apreensão mais teórica, mais elementar (no sentido euclidiano)3, como aquela veiculada nos manuais escolares de Souza Lobo (publicados na segunda metade do século XIX mas com edições até os anos de 1930, estudados em Silva e Valente). Uma dessas possibilidades, parece-me, traz à tona uma faceta da comunidade à qual o livro de Silva e Valente se dirige: trata-se da formação de professores. Se não, vejamos: mesmo Condorcet, que não era favorável aos livros de elementos para as crianças, recomendava aos professores dessas crianças as obras de Aritmética e Álgebra do padre Bossut e uma tradução francesa dos Elementos de Euclides (GOMES, 2008). Sabe-se que, passado um século da época de Condorcet, já na Inglaterra Vitoriana, o surgimento de manuais de Geometria para o ensino, alternativos ao de Euclides, causou vasta polêmica envolvendo a comunidade de matemáticos e educadores (MONTOITO, 2013). Nessa polêmica envolve-se, por exemplo, Lewis Carroll, cuja obra Euclides e seus rivais modernos, de 1879, é uma veemente defesa da manutenção dos Elementos como texto-base nas escolas inglesas. Não é polêmica – de modo geral, e não apenas à luz desses dois exemplos – a permanência da obra de Euclides no pensamento ocidental, seja na filosofia (como uma apreensão ao que seria Matemática) (MONTOITO; GARNICA, 2014), seja como estratégia de ensino para as salas de aula. Formados segundo essas concepções de uma Matemática que só têm sentido na órbita euclidiana4, não seria implausível pensar no papel que os autores dos Manuais escolares do passado desempenham ao elaborar suas obras: cuidam de deslizar para a prática didática as abordagens da prática científica segundo a qual eram formados. São, portanto, agenciadores. Esse debate, ainda bastante atual, pode ser levantado a partir da leitura do texto aqui resenhado, e poderia mesmo dele fazer parte, como questionamento explícito das práticas de agenciamento efetivadas por aqueles aos quais esse mesmo texto se destina.

Tratados esses primórdios, são os ventos republicanos e seu modelo específico de organização educacional – os Grupos Escolares – que constituem o pano de fundo do que o leitor encontrará no segundo capítulo. Fundamental para a organização e consolidação do ensino primário, não só no estado de São Paulo onde foram inicialmente criados ao final do século XIX, os Grupos Escolares são parte do esforço republicano, junto à criação de outros símbolos específicos, para a popularização do sistema político então vigente. Sabe-se que, ao contrário do que ocorreu na França, a República brasileira foi uma estratégia das elites, implantada sem a participação popular. Era preciso, pois, extravasar a república para fora do campo da elite, popularizar as potencialidades do novo regime. Para isso, a Educação foi, desde o princípio, chave fundamental. Esse extravasamento “não poderia ser feito por meio do discurso, inacessível a um público com baixo nível de educação formal. Ele teria de ser feito mediante sinais mais universais, de leitura mais fácil, como as imagens, as alegorias, os símbolos, os mitos” (CARVALHO, 2006, p.10). A construção de prédios monumentais foi decorrência dessa necessidade de formar almas, difundindo uma instrução nova, que seguiria uma legislação também nova, diametralmente oposta – pretendiam os republicanos – à da estrutura educacional mantida pelo Império. O método intuitivo, preconizado por Rui Barbosa, que traduzira o livro Lições de Coisas, de Norman Allison Calkins, passava a ser

[…] exaltado como o elemento mais importante dessas novas propostas educacionais”, e junto à geometria introduzia-se a taquimetria, “definida por Rui Barbosa como ‘concretização da geometria’, é o ensino da geometria pela evidência material […]: é a lição de coisas aplicada à medida das extensões e volumes’ (SILVA; VALENTE, 2014, p. 43-4)

O programa de ensino que implantaria essas e outras disposições foi elaborado por “Oscar Thompson, Benedito Tolosa e Antonio Rodrigues Alves [e] oficializado pelo decreto 248 de 26 de junho de 1894.” Trata-se de um programa extenso que cobre os quatro anos de instrução, e no qual o desenho aparece como “apoio importante para a geometria e um auxiliar poderoso à observação”. Notam Silva e Valente, porém, que a mobilização do desenho de forma vinculada ao ensino de geometria não é uma novidade no ensino, posto já estar presente em obras didáticas do final do Império (como, por exemplo, no conhecido Desenho Linear ou elementos de geometria prática popular, do Barão de Macaúbas). Trata-se, pois, de outra manutenção em meio a uma dinâmica de alterações5. Do mesmo modo, mesmo ausente na letra da lei, a expressão Geometria Prática continuava a frequentar o título de manuais como os de Olavo Freire (a primeira obra didática para o ensino primário de geometria em tempos republicanos, publicada em 1894)6. Agora, no tempo dos Grupos Escolares, porém, a geometria prática passa a ser caracterizada pelas construções geométricas com régua e compasso, enquanto que o desenho, apartado, torna-se desenho natural, em que se observam e desenham objetos da vida da criança e não mais as figuras geométricas. Se a reforma de 1905 estabelece, além dessa dissociação entre geometria e desenho, uma inversão no desenvolvimento dos conteúdos de ensino da geometria (passa-se a iniciar o ensino, nos primeiro e segundo anos, pelo estudo das figuras espaciais até chegar aos elementos de geometria plana, nos terceiro e quarto anos) que se mantém até meados do século XX, a reforma de 1925 insere no programa uma nova matéria, Formas, para os dois anos iniciais, “configurada como ensino intuitivo, prático, de exploração, manipulação de objetos, sem denominações e construções”, reservando aos últimos dois anos a matéria geometria, “caracterizada por definições, propriedades geométricas, construções com utilização de régua e compasso e medidas de áreas e volumes.

Marcas da geometria escolar no ensino primário da época dos Grupos Escolares são, portanto, o novo significado atribuído à expressão Geometria Prática, anunciando a “chegada de instrumentos de construção ao ensino de geometria primário” e “a separação de conteúdos e procedimentos de ensino da geometria e do desenho, num primeiro momento, e de geometria e formas, num segundo período”.

Fica-se com a impressão, portanto, a partir das argumentações e análises de Silva e Valente, que, aparentemente, o ensino de geometria não estaria completo, ou não seria adequado, se a abordagem mais intuitiva, mais elementar, mais introdutória, mais prática (qualquer que seja o sentido que se dê a este último termo) não fosse transcendida por uma perspectiva mais sistemática, como que iniciando uma abordagem formal e, em decorrência, mais rigorosa (do ponto de vista tradicional em Matemática) dos objetos da geometria. Essa perspectiva, de forma clara, mas vestida com uma roupagem emprestada da Psicologia que se alia às perspectivas matemáticas vistas como modernas e altamente rigorosas – a proposta de Bourbaki – será o tema do terceiro capítulo da coletânea organizada por Silva e Valente: chegamos aos tempos da Matemática Moderna.

O Movimento Matemática Moderna (MMM) foi, como se sabe, tema de um projeto de grande envergadura conduzido pelo GHEMAT, Grupo de Pesquisa de História da Educação Matemática no Brasil, coordenados (pesquisa e grupo) por Valente e do qual participaram ativamente os autores dos três primeiros capítulos do livro aqui resenhado. Boa parte dos estudos em História da Educação Matemática sobre esse tema, principalmente em tempos mais recentes, foi desenvolvida dentro desse projeto e, portanto, essa experiência prévia permite que uma síntese aprofundada desse período e, nele, do MMM, seja feita na produção mais recente de Silva e Valente. A familiaridade dessa experiência prévia, me parece, faz com que temas como o estruturalismo na matemática e a abordagem piagetiana a este estruturalismo, bem como uma história da constituição e desenvolvimento do MMM, sejam apresentados de modo breve, mas adequado em seu detalhamento, de modo a conduzir o leitor para a discussão sobre a geometria nesses tempos de modernização do ensino.

Dos livros didáticos para o ensino primário destacam-se aqueles produzidos por Anna Franchi, Lucília Bechara Sanchez e Manhúcia Perelberg Liberman7, “verdadeiros best-sellers do ponto de vista da quantidade de exemplares vendidos ao tempo do MMM”. Sintetizando, os autores desse capítulo afirmam que “numa análise breve, pode-se dizer que, pelo menos em termos das normas para o trabalho pedagógico, altera-se substancialmente a organização dos conteúdos escolares matemáticos a serem ensinados para as crianças. Ainda que os dois primeiros livros desse Curso Moderno de Franchi, Sanchez e Liberman não abordem – ou tratem de forma brevíssima, como no caso do segundo volume – o tema geometria, o terceiro volume, no seu item Noções de Geometria, inaugura “o estudo de conceitos topológicos como dentro, fora, aberto e fechado, regiões, que se caracterizam como inovadores para o ensino primário. […] [e] pode-se dizer que a articulação entre os conceitos topológicos e a geometria euclidiana se dá por meio da linguagem dos conjuntos”.

A disposição em incluir temas da topologia – ou apostar numa abordagem topológica em detrimento da perspectiva euclidiana, apenas –, que serviria para outras coleções e livros do mesmo período, radica-se na proposta fundamentadora do MMM, estruturalista (e) piagetiana8, cuja ênfase foi marcada por três eixos matemáticos que guiariam a forma dos programas escolares e suas diretrizes psicopedagógicas: as estruturas algébricas, as noções topológicas e a relação de ordem.

A cultura escolar estabelecida, com seus valores, concepções e estratégias arraigados, entretanto, subverte homeopaticamente essas disposições revolucionárias, e acentua, mesmo nesses tempos de modernização – que não demorarão muito para se exaurir –, a abordagem euclidiana: trata-se, aqui, de outro exemplo de como as alterações e manutenções – cerne dos estudos historiográficos, reitero – ocorrem no universo da escola:

Mesmo em meio a um contexto revolucionário de propostas de mudança da matemática escolar, [sintetizam os autores], o MMM encontrou o cotidiano pronto para incorporar novos elementos da geometria sem que efetivamente tenha sido abandonada a referência da geometria euclidiana. Por entre as páginas e páginas dos livros didáticos que enfatizavam os elementos da teoria dos conjuntos, logo viria a geometria com os primeiros itens da topologia. Mas esses elementos mesclaram-se, servindo como rápida introdução para o estudo das figuras geométricas [numa abordagem] euclidiana (PINTO; VALENTE in SILVA; VALENTE, 2014, p. 81-2).

A experiência dos autores sobre o MMM e o ensino de determinados conteúdos matemáticos na órbita desse movimento, já o dissemos, permite que temas muito diversificados sejam abordados de forma sintética, mas correta e adequada para permitir um encadeamento de ideias que, em consequência, retrata, em sua dinâmica de alterações e manutenções, o ensino de geometria no ensino primário brasileiro nas cercanias dos anos de 1960. Essa mesma experiência, porém, pode justificar o que eu percebo como sendo um certo afastamento em relação ao leitor que se tem em mente para o livro: o professor que ensina matemática.

Dos três capítulos até aqui analisados, este, o terceiro, é o que mais se aproxima de uma abordagem acadêmica – seja em sua forma, seja no modo de tratar a literatura que surge como apoio às ideias apresentadas ou, ainda, no que diz respeito aos conteúdos (ou, mais propriamente, à abordagem proposta para os conteúdos) tratados na escola sob a égide do MMM. Essa opção pelo tom – mais acadêmico que o dos dois primeiros capítulos9 – não é, sob meu ponto de vista, tão problemática para o público-alvo posto que, embora mais cifrada em seus conceitos, a elaboração textual é sempre clara. Entretanto, a alusão demasiado frequente a conceitos aparentemente desconhecidos (ou, pelo menos, mais distantes) dos professores que ensinam matemática é, sim, problemática. Notemos, por exemplo, o uso reiterado do termo topologia e suas variações (estruturas topológicas, estágio topológico, conceitos topológicos, distinção entre geometria euclidiana e topologia etc)10. Sabe-se que o professor que ensina matemática não necessariamente passou pelos bancos escolares em cursos de Licenciatura em Matemática, e mesmo aos licenciandos em Matemática, na quase totalidade dos cursos atualmente vigentes no país, não é oferecida a disciplina Topologia, nem sua introdução mais óbvia na cadeia dos conteúdos matemáticos sistematizados, o tratamento dos espaços métricos. Sem esse feedback, esses leitores potenciais dificilmente darão conta de, com esse capítulo, entender o que subjaz à proposta do MMM e, em decorrência, terão dificuldade de identificar, no tratamento dos livros da época, por exemplo, a diferenciação ou aproximação subversora entre euclidiano e topológico. A experiência dos autores, obviamente, permitiria tratar com mais detalhamento esses termos e expressões aparentemente delicados sem comprometer o fluxo do texto. Poder-se-ia, talvez, sugerir ao leitor-alvo, de forma mais incisiva, leituras complementares ou, ainda, incorporar ao livro um apêndice com uma série de verbetes (ao modo de um pequeno glossário) que serviria de guia básico para esses leitores. Ficam, aqui, essas sugestões para as edições futuras que, certamente, serão produzidas.

O último e o mais longo dos quatro capítulos do livro, de autoria de Paulo Figueiredo Lima e João Bosco Pitombeira de Carvalho, é, segundo minha perspectiva, oposto, em seu tom, ao capítulo anterior. Seu subtítulo, Conversas com o professor que ensina matemática, anuncia, exatamente, o que o leitor encontrará nele: um diálogo muito cuidadoso com os professores sobre os conteúdos e os modos de trabalhar esses conteúdos nas salas de aula do ensino inicial. Os temas abordados são bastante variados: a ideia de dimensão em geometria, as representações gráficas, as projeções, as perspectivas e a classificação das figuras geométricas. O tratamento é rigoroso, mas não formalizado a ponto de afastar o leitor não muito familiarizado com a matemática. Ao contrário, o capítulo foi elaborado ao modo de um guia que pode auxiliar professores, futuros professores e até mesmo autores de livros didáticos em suas dúvidas ou intenções de produzir materiais ou discutir temas relativos ao ensino de geometria. A experiência de ambos os autores desse capítulo não só quanto à pesquisa em Matemática ou em Educação Matemática e – talvez mais decisivamente – a vinculação de ambos à avaliação de livros didáticos de matemática brasileiros, no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), resultam num texto cujo viés é mais de natureza didática que propriamente historiográfica: o capítulo ensina e esclarece alguns elementos básicos de geometria que constam dos atuais programas de ensino para a escolaridade inicial, e faz isso de forma muito clara. Assim, ainda que destoe dos demais capítulos em sua natureza, dialoga com eles em sua intenção de ter como interlocutor o professor que ensina matemática.

A conclusão dessa sequência de esforços para compreender o ensino de geometria e as dinâmicas de transformação desse saber escolar ao longo do tempo sintetiza alguns ingredientes fundamentais discutidos no livro, e enuncia, de forma clara, aquilo que penso ser uma das maiores contribuições do estudo. Trata-se de uma caracterização do fazer do professor que ensina matemática que, embora já tenha sido referenciada por Kaleff em sua apresentação ao texto, nesse momento, nas conclusões, ganha densidade por surgir como resultado da série de construções argumentativas que ocuparam todo o volume: a geometria escolar constitui-se num percurso pleno de contraposições e incorporações no qual foram elaborados e reelaborados ingredientes didático-pedagógicos que a constituem num saber transitório que faculta o acesso ao saber sistematizado da geometria, à geometria da matemática. Essa caracterização da geometria escolar, por sua vez, permite que se compreenda “que o professor que ensina matemática não é um especialista em matemática; sua especialidade liga-se à condução dos alunos a progressivamente apropriarem-se de uma cultura transitória que dá acesso aos saberes científicos”. Essa conclusão, embora não decorra apenas dos estudos historiográficos acerca do ensino de matemática que encontramos nessa coletânea organizada por Silva e Valente, pode apoiar-se de forma inequívoca nesses estudos, o que torna esse livro uma contribuição preciosa não só para professores que ensinam matemática ou professores em formação (que ensinarão matemática), mas aos interessados em História da Educação Matemática e aos pesquisadores que, mantendo ou não uma aproximação com a historiografia, dedicam-se ao estudo da formação e da atuação docente no Brasil.

Notas

1 O representante desse viés é o Manual Enciclopédico para uso das escolas de instrução primária, do português Emílio Achilles Monteverde, que parece fazer escola para outros livros (como, por exemplo, os livros do brasileiro Souza Lobo).

2 Pode-se notar, por exemplo, que em seu Reflexões e notas sobre a educação, do final do século XVIII, Condorcet já explicita um programa de estudos, estabelecendo a ordem a ser seguida no ensino. A primeira das ciências a ser estudada seria a aritmética, seguida da geometria (“explicar-se-lhe-iam [às crianças] as proporções sobre as linhas, sobre as superfícies, sobre os sólidos que se podem entender sem a teoria das proporções” (GOMES, 2008, p.222). Lacroix, um contemporâneo muito próximo de Condorcet, em sua obra autobiográfica sobre a instrução pública francesa no século XVIII, confessando sua ignorância acerca do ensino das crianças na primeira idade, mas não abrindo mão de opinar sobre isso, sentencia que seria conveniente, quanto às primeiras instruções dadas na infância, “empregar tanto quanto possível o testemunho dos sentidos” (LACROIX, 2013, p.147), no que não há discordância com o Marquês. Em seguida, porém, complementa: “A Geometria é, talvez, de todas as partes da Matemática, aquela que se deve aprender primeiro. Ela me parece muito adequada para atrair as crianças, desde que seja apresentada principalmente com relação às suas aplicações, tanto teóricas quanto práticas. As operações de traçado e de medição certamente agradarão aos alunos e os conduzirão, em seguida, como que pela mão, ao raciocínio. Aqui [neste meu livro] não é lugar para desenvolver essas ideias, que estão expostas de maneira tão verdadeira quanto eloquente no final do segundo livro do Emílio”. Para Lacroix, o costume de ensinar primeiro a ciência dos números – a Aritmética – prevaleceu apenas por serem mais frequentes as aplicações do “cálculo numérico” (LACROIX, 2013, p. 244-5).

3 Os tempos revolucionários, na França, marcaram também uma nova apreensão ao adjetivo elementar que, frequentemente, caracterizava os livros de Matemática. Antes desse período, a expressão Elementos de… indicava, mais frequentemente, obras cujo modelo era os Elementos de Euclides, ou seja, obras nas quais da apresentação e discussão de uma série de resultados essenciais a uma certa área decorriam outros resultados, também centrais a essa área. O conjunto dessas proposições essenciais com suas decorrências, ao qual algumas vezes vinculavam-se exemplos, constituía o corpo de uma determinada disciplina, seus elementos (no sentido euclidiano). Ao final do século XVIII, Elementos de… passaram a indicar livros elementares, no sentido mais usual do termo: obras voltadas ao ensino, com os conteúdos básicos de um determinado campo (Aritmética, Álgebra, Geometria etc.).

4 Opera exatamente nesse sentido a consideração feita por Lacroix ao discutir suas intenções, como autor, em seu Elementos de Geometria: “Se a dificuldade de fazer bons tratados, em qualquer que seja a ciência, é muito grande, há várias razões que a aumentam ainda mais com relação aos tratados de Geometria: primeiro, a concorrência com um autor consagrado pelas marcas da antiguidade (Euclides), sempre perigosa para um autor moderno, independentemente das razões que este último possa trazer em favor do plano que adota […]” (LACROIX, 2013, p. 221-2).

5 Já na primeira reforma do ensino primário nos Grupos Escolares, ocorrida em 1905, “a proximidade [da geometria] com o desenho não existe mais, as figuras geométricas que eram estudadas e desenhadas como passo inicial no processo de aquisição para desenhos aplicados não constam mais da lista de conteúdos”.

6 Além da obra de Olavo Freire, este segundo capítulo de Silva e Valente considera, também, a coleção (composta de quatro volumes, um para cada ano) Manual do Ensino Primário, de Miguel Milano.

7 Trata-se da coleção Curso moderno de matemática para a escola elementar, cujo primeiro dos cinco volumes foi lançado entre 1966 e 1967 (as edições publicadas quando já em vigor a lei 5692 têm o título alterado para Curso moderno de matemática para o ensino de 1º. grau, atendendo à nova nomenclatura da seriação escolar, imposta a partir de 1971). Um dentre os tantos diferenciais que tornam emblemática essa coleção é a formação das autoras: “a elaboração de obras didáticas para o ensino das primeiras letras, em especial aquelas de matemática, até meados da década de 1960, não tem autoria de professores formados em cursos de licenciatura em matemática. Liberman, Franchi e Bechara têm essa formação”.

8 De acordo com Inhelder e Piaget, segundo os autores deste capítulo, “a criança passa primeiro pelo estágio topológico, antes do euclidiano, na apropriação do espaço. /…/ Dever-se-ia [então] abandonar a milenar ideia do ensino dos rudimentos dos elementos de Euclides, voltando-se a atenção para os elementos de topologia”.  9 Notemos que os dois primeiros capítulos, ainda que não tenham um “tom acadêmico”, valendo-se, ao contrário, de uma linguagem e de um modo de mobilização de conceitos mais próximos à linguagem usual – conseguem prender tanto a atenção do especialista quanto do leigo interessado nos temas neles apresentados, sem que haja concessões quanto à profundidade, pertinência ou correção das ideias discutidas, ainda que alguns elementos mais propriamente teóricos – digamos assim –, reconhecíveis à comunidade de pesquisadores, mas estranhos ou não usuais a outras comunidades, fiquem necessariamente subjacentes, dada a opção por um determinado público-alvo.  10 A mesma consideração se aplica para outros termos, próprios da linguagem matemática, como Estruturas Algébricas e ordem, por exemplo, mas obviamente não se aplicam a termos como conjuntos, ângulos, retas perpendiculares etc, que frequentam a escolarização em todos os níveis, enquanto aqueles, quando muito, frequentam apenas os cursos superiores de Matemática, sendo, entretanto, mais essenciais para entender a proposta do MMM, tema do capítulo.

Referências

CARVALHO, J. M. de. A formação das almas: o imaginário da república no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.  CONDORCET. Cinco Memórias sobre a instrução pública. São Paulo: Editora UNESP, 2008.  GOMES, M. L. M. Quatro visões iluministas sobre a educação matemática. Campinas: Editora UNICAMP, 2008.

LACROIX, S. F. Ensaios sobre o ensino em geral e o de matemática em particular. São Paulo: Editora UNESP, 2013.  LIMA, P. F.; CARVALHO, J. B. P. de . A Geometria Escolar hoje: conversas com o professor que ensina matemáticas In: SILVA, M. C. L. da; VALENTE, W. R. (Org.). A geometria nos primeiros anos escolares: história e perspectivas atuais. Campinas: Papirus, 2014. p. 83-128.

MONTOITO, R. Euclid and his modern rivals (1879), de Lewis Carroll: tradução e crítica. 2013. Tese (Doutorado em Ensino de Ciências e Matemática) – Programa de Pós-graduação em Educação para a Ciência, Faculdade de Ciências, UNESP, Bauru, 2013.

MONTOITO, R.; GARNICA, A. V. M. Ecos de Euclides: notas sobre a influência d’Os Elementos a partir de algumas doutrinas filosóficas. Educação Matemática Pesquisa. São Paulo, v. 16, n. 1, p. 95-123, 2014.

PINTO, N.B.; VALENTE, W.R.. Quando a Geomeria tornou-se moderna: tempos do MMM. In: SILVA, M. C. L. da; VALENTE, W. R. (Org.). A geometria nos primeiros anos escolares: história e perspectivas atuais. Campinas: Papirus, 2014. p. 65-82.

SILVA. M.C.L. da; VALENTE, W.R. A Geometria nos Grupos Escolares. In: SILVA, M. C. L. da; VALENTE, W. R. (Org.). A geometria nos primeiros anos escolares: história e perspectivas atuais. Campinas: Papirus, 2014. p. 41-64.

VALENTE, W.R.; SILVA, M.C.L. da. Primórdios do Ensino de Geometria nos Anos Iniciais. In: SILVA, M. C. L. da; VALENTE, W. R. (Org.). A geometria nos primeiros anos escolares: história e perspectivas atuais. Campinas: Papirus, 2014. p. 17-40.

Antonio Vicente Marafioti Garnica – Docente do Departamento de Matemática da Faculdade de Ciências da UNESP de Bauru e dos Programas de Pós-graduação em Educação Matemática (UNESP-Rio Claro) e Educação para a Ciência (UNESP-Bauru). Endereço para correspondência: Departamento de Matemática. Avenida Luiz E. C. Coube, s/n. 17033-360. Bauru-SP. E-mail: [email protected].

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Multidões em cena. Propaganda política no varguismo e no peronismo | Maria H. R. Capelato

Na presente obra, Maria Helena Rolim Capelato, apresenta uma análise comparada entre a propaganda política varguista no Estado Novo (1937-1945) e o peronismo (1945-1955). O objetivo é mostrar como o conteúdo e a forma das mensagens propagandísticas circularam da Europa para o Brasil e a Argentina, onde foram reproduzidas com sentido novo, relacionado às conjunturas históricas particulares.

Utilizando-se de vasta documentação e conceitos como representação e imaginário social, Capelato procurou resgatar o significado da propaganda política idealizada e posta em prática por Getúlio Vargas e Juan Domingo Perón na configuração de governos autoritários em momentos históricos distintos de Brasil e Argentina. Destaca-se, contudo, que a propaganda política torna-se estratégia em qualquer regime, porém, adquire força maior naqueles em que o Estado detém o monopólio dos meios de comunicação, caso exemplar do Estado Novo e do peronismo. Leia Mais

A questão do sentido em psicoterapia – FRANKL (ARF)

FRANKL, Victor. A questão do sentido em psicoterapia. Campinas: Papirus, 1990. Resenha de: CARVALHO, José Maurício de. Argumentos – Revista de Filosofia, Fortaleza, n.5, 2011.

O livro de Victor Frankl foi publicado há muitos anos, mas conserva atualidade pelo diálogo que obriga entre a Filosofia e a Psicologia. Ele possui introdução, três conferências e um esboço autobiográfico. Nestes textos enfrenta uma questão fundamental que ocupou parte significativa dos filósofos no século XX: possui a vida humana um sentido? Esta questão se mistura a outras de caráter existencial que ajudam a clareá-la.

Eis algumas: será que a finitude da existência aniquila seu sentido? O sofrimento físico e mental contribui para a elaboração do sen tido ou o destrói? Como pensar o sentido diante daquilo que nos acontece? Exemplo do que nos ocorre é uma doença incurável ou ser levado para o campo de extermínio.

É para enfrentar estas questões que Frankl escreveu este livro. A pergunta é essencial- mente filosófica e ela será tratada assim. No entanto, o autor estende as conseqüências da meditação para o campo da Psicologia ao colocar a questão do sentido como eixo orientador de uma abordagem psicológica que ele desenvolve. Entender o modo como filosoficamente Frankl pensa o problema do sentido e depois perceber os resultados que daí deriva para a Psicologia é o que confere nexo ao livro.

Victor Frankl começa sua obra retomando a questão que Albert Camus consagrou como a única digna de ser efetivamente meditada: como é o sentido da vida humana? A vida vale a pena ou o suicídio é o que se nos oferece como alternativa mais plausível? O filósofo francês trata a questão do sentido nos romances A Peste e O Estrangeiro, bem como nas peças de teatro Calígula e Os Justos . Ao optar pelo sentido construído pelo existente coloca em evidência o problema da liberdade humana, pois nela reside o sentido e não numa construção lingüística rebuscada ou erudita. Este sentido da vida como expressão de liberdade é assunto fundamental dos existencialistas observa outro filósofo francês Roger Garaudy. A vida não tem um sentido prévio ou pronto, ele diz, “como se tem uma casa ou uma conta no banco. Seria (se assim fosse) um cenário já escrito, fora de nós e sem nós; teríamos apenas que representar aparentando crer em nossa liberdade.” ( Palavra de homem , p. 52).

A questão do sentido para Frankl vai além da meditação filosófica porque o problema expresso pelo sentimento de vazio de sentido obrigou as pessoas hoje em dia a procurar o psicólogo e o psiquiatra. O vazio existencial e a depressão são as doenças do século XXI e isto aumenta o interesse pelo livro de Frankl. O homem não sabe o que quer e esta ignorância não apenas serve para ele meditar melhor sobre a vida, “a sensação de falta de sentido é patogênica, isto é, leva a doenças, a neuroses específicas.” (p. 20). Este A rgumentos , Ano 3, N°. 5 – 2011 181 sentimento se manifesta de muitos modos como: na chamada crise de meia idade ou no medo do domingo tão comum em nosso tempo. Em ambos os fenômenos o que verdadeiramente aparece é a falta de sentido.

Esta falta de sentido coloca em evidência o problema de ir além de si, trata-se da auto – transcendência sem a qual a vida parece ficar sem sentido. Afirma o autor: O homem não é apenas um ser que reage e abreage, mas também que se autotranscende. E a existência humana aponta para além de si mesma, mostra sempre algo que não é de novo ela mesma – a algo ou alguém, a um sentido, ou a um ser companheiro. (p. 29).

O que há de singular nesta posição de Frankl é que ele coloca a questão do sentido como sendo de interesse primário do homem e não como meditação que lhe confere algo a mais, algo que lhe adensa o sentido, mas sem o qual é possível viver. O sentido para Frankl é questão fundamental. Ao referir- se ao comportamento dos prisioneiros nos campos de concentração fica claro o que ele quer dizer: “não foi menos importante a lição que eu pude levar para casa de Auschwitz e Dachau: que os mais capazes, inclusive de sobreviver a tais situações-limite, eram os direcionados para o futuro, para algo ou alguém que os esperava.” (p. 34). Esta questão filosófica fundamental foi deixada de lado pelos psicólogos, comenta o autor. Os psicanalistas a consideram parte dos processos psicodinâmicos e os comportamentalistas um tipo de aprendizagem que precisa ser removido para que o sujeito fique “espontaneamente curado.” (p. 37). Ora o problema não pode ser resolvido deste modo, a falta de sentido é um tipo de sofrimento, mas não uma doença no sentido médico ou uma ignorância a ser suprimida. Também não se confunde falta de sentido com desespero, pois este último só ocorre quando a pessoa não enxerga sentido para o sofrimento. E aqui surgem questões fundamentais: A vida tem sentido e se tem podemos nós comunicá-lo? Frankl considera que a vida tem sentido e que podemos percebê-lo. Com isto não invalida o trabalho dos psicanalistas, pois muita coisa tida como sentido deve ser desmascarada, mas tentar desmascarar o problema do sentido produz uma deshumanização, porque estamos diante de “um fenômeno que não se deixa desmascarar porque é autêntico” (p.41). A conclusão de Frankl é que “o homem é um ser à procura de sentido” (p. 45). E considera que esta questão fundamental da filosofia existencial seja o centro de sua uma orientação psicológica. A raiz desta linha psicológica é a intencionalidade no sentido de Bren- tano, Husserl e Scheler, que produz a relação com os sujeitos intencionais, ou seja, entre os atos intencionais que deles provém e os objetos intencionais. Tão logo deixemos de contemplar o ser sujeito do sujeito, nós perdemos de vista que ele tem objetos próprios. (p. 35).

Trata-se, portanto, de uma psicologia fenomenológica como as de Karl Jaspers, Ludwig Binswanger, o representante da Es- cola gestáltica de Berlim Wolfgang Köhler, além do que escreveu o existencialista e personalista Gabriel Marcel, filósofos e psi- cólogos cujos nomes Frankl cita textualmente em sua autobiografia, o último dos textos do livro (p. 112).

As questões associadas ao sentido fo – ram desenvolvidas em três conferências que Frankl pronunciou sobre o sentido e valor da vida na Universidade para o povo em Viena- Ottaring. Ele entende que o pensamento europeu reconheceu a dignidade humana com a formulação ética de Immanuel Kant, mas depois vieram as guerras e em especial a Segunda Guerra Mundial onde o homem foi colocado a serviço da morte. Nos campos de refugiados os presos não valiam o prato de sopa e a vida humana foi exterminada em massa, a sociedade européia desonerou- se da dignidade. Esta atitude não foi uma decisão coletiva, o reconhecimento do valor da vida é singular. Isto se demonstra pela atitude do chefe nazista que gastava o próprio dinheiro para comprar remédio para os doentes do campo. No mesmo Campo havia prisioneiros mais antigos que maltratavam os companheiros recém-chegados. A direção fundamental assumida por Frankl remonta a Kant, viver é um dever. Há alegria na vida, mas ela não é um fim, apenas o resultado.

José Mauricio de Carvalho – Doutor em Filosofia e Professor da UFSJ-MG.

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Abecedário: educação da diferença – CORAZZA (ER)

AQUINO, Julio Groppa; CORAZZA, Sandra Mara (Org.). Abecedário: educação da diferença. Campinas, SP: Papirus, 2009. Resenha de: MENEZES, Antonio Basilio Novaes Thomaz de. Abecedário: educação da diferença. Educação & Realidade, Porto Alegre, v.35 n.2, p.323-326 maio/ago., 2010.

Vocábulo da língua portuguesa, abecedário significa alfabeto: um “conjunto de signos gráficos, letras e diacríticos utilizados para representar os sons de uma língua”, ou, ainda, na forma vernacular, “qualquer sistema de signo gráficos, visuais ou sonoros”, de acordo com o Dicionário Larrousse. Isto por si só bastaria para enunciar todo o conteúdo pressuposto no título, não fosse o livro um esboço da construção coletiva e individual de todo um vocabulário inerente àquilo que lhe complementa o significado com a expressão educação da diferença. Entretanto, não se trata aqui de mais uma simples coletânea que reúne textos de diversos autores ou uma coleção de vocábulos e temas dispersos agrupados num volume. Trata-se, antes de tudo, de uma obra, um constructo que traduz, na decomposição da ordem vocabular, a composição da multiplicidade, dos múltiplos significados dos verbetes e do próprio léxico, daquilo que emerge cifrado como a composição de muitas vozes, no desafio de uma nova forma de pensar a educação.

A referência à forma típica dos dicionários, inclusive daqueles específicos à Filosofia e à Educação, revela uma inversão do significado do termo abecedário, subvertendo o estatuto estabelecido na sua própria lógica de ordenação. Heterogênea e heterotópica, a série alfabética das noções, dos conceitos e dos temas rabisca as primeiras letras daquilo que se experimenta como educação da diferença frente à concepção modal da educação vigente.
A capa negra com letras brancas apresenta o Abecedário na forma invertida de um espelho refletido nas letras negras das suas páginas brancas. Seus detalhes gráficos em cinza e em vermelho apontam para a norma e seu avesso, seja num retângulo cinza destacando o prefixo ab, neste caso prefixo da ausência na ordem do alfabeto, seja nas letras em vermelho que singularizam a educação da diferença. Isto que, na última capa às costas do volume, já prenuncia “33 autores imaginando e fabulando em 46 verbetes, as questões: O que é a educação? O que é a pedagogia? O que é pensar?”.

Urdidura em rede, a coletânea dos temas que lhe servem de conteúdo desenha um labirinto cujo descentramento das diferentes formulações constitui um ponto de fuga no quadro dos postulados teóricos. Neste, o pensamento se lança livre, formando constelações de noções e conceitos em torno do que se pode chamar de um plano projetivo da educação pela diferença. As questões apontam marcos de referência, sem qualquer pressuposto de identidade, numa cartografia de imaginações e fabulações que descrevem a leitura como um espaço da produção do pensamento.

A leitura do Abecedário constitui um desafio para o leitor que caminha pelas primeiras letras e se introduz na dinâmica de construção do pensamento. O livro produz novas séries de sentidos, configurados no uso dos parênteses, por exemplo, em verbetes como: “(o) Fora”, “(o) Que é a Filosofia?”, “(o) Que é a Pedagogia?”, “(o) X da questão”, que correspondem às diferentes formas de subversão do código ou de elisão da ordem na gramática do significado em verbetes como “Regimento (escolar)”, “(des)Territorialização” ou “(trans)Valoriz- ação do magistério”.

O livro exige do leitor colocar-se na condição da criança que, frente ao fascínio quase mágico das letras, põe-se a brincar com elas, não fossem elas imaginações e fabulações experimentadas como conceitos nas diferentes dimensões do seu conteúdo. O Abecedário tem como precondição de leitura a liberdade de pensar.

Universo tridimensional das constelações de noções e conceitos que lhe dão volume à perspectiva da educação da diferença, a obra compõe as peças de um quebra-cabeça nos seus diferentes modos de montar. Tomada sob o eixo tríplice das suas questões centrais, a perspectiva da diferença é aquela do múltiplo, daquilo que se lhe apresenta como superfície e se lhe configura como dado, expectativa ou probabilidade de um significado. O Abecedário resiste à redução dos cânones, incapsulável na sua totalidade fragmentada.

Muitas são as matrizes encontradas na construção da obra: Filosofia, Literatura, Semiótica, cinema… Desde a inspiração do título, no “Abécédaire” de Deleuze, cujo pensamento perpassa a obra, até as vozes recorrentes de Nietzsche, Platão, Bergson, Foucault, Espinosa, que ressoam em algumas páginas; bem como nas passagens ocasionais por Kafka, Barthes, Pessoa, Borges, Pasolini e Artaud, apenas para citar algumas notas; o livro mostra a sua originalidade na dodecafonia da sua composição. Antes, daquilo que num primeiro movimento nos parece inaudível.

Uma após a outra as letras se sucedem no Abecedário, e os verbetes multiplicam-se, incitando as imaginações às novas fabulações. Há uma superfície na qual se organizam os enunciados dispersos. Auto-organização da vida, da matéria do pensamento… Há, na forma de interação das partículas, uma correspondência entre os diferentes níveis de organização da matéria e aqueles que são possíveis na leitura do livro.

As questões centrais do livro (“O que é a educação?”; “O que é a pedagogia?”; “O que é pensar?”) divisam o horizonte de um enquadramento teórico, matriz histórica do pensamento educacional e fundamento da sua concepção moderna. As perguntas pelo significado da Educação e da Pedagogia como propostas do seu conteúdo remetem à distinção destas em fins do século XIX e início do século XX, tal como aparece, por exemplo, em 1885, no “Cours de pédagogie theórique et pratique”, de Gabriel Compayré. Deste modo, a pergunta pelo significado de ambas recoloca a questão do caráter da Educação como formação e da prática que define o ensino como ato pedagógico na sua acepção genérica.
De outro modo, na esteira da tradição consolidada, a divisa da educação da diferença produz a ruptura com a épistèmé moderna, quando no seu próprio quadro de definições coloca a pergunta pelo significado do pensar: “O que é pensar?”. A pergunta se põe à própria condição do pensamento como exercício e de invenção da Educação como esforço de criação do novo. Ela parte da existência do pensamento na Arte, na Ciência e na Filosofia, possibilitando, por um lado, interferências, repercussões e ressonâncias; ressaltando, por outro lado, as especificidades dos saberes, suas questões e condições próprias. Exercício do pensamento… Jogo de adivinha… Experimento mental… Afinal… O que o livro tem a dizer?

A composição da obra corresponde às variações possíveis em torno da leitura e aproximações do que se pensa diferença. Fragmentos da criação de um mosaico, totalidade fragmentada, possibilidades de séries e séries de possibilidades, o Abecedário se define nos modos de usar.
Lê-lo é colocar-se sob a perspectiva da exterioridade, do exercício do pensar a educação da diferença, a partir dos encontros, das conexões, das intercessões, das articulações e dos agenciamentos, tanto no domínio educacional quanto em conceitos, noções e elementos de outros domínios.

A leitura constitui-se num jogo probabilístico; dentre muitos, uma possibilidade de se estabelecer uma gramática própria ao Abecedário, a partir das suas redes de relações. Estas que relacionam os conceitos aos vocábulos do pensamento; as áreas de vizinhança aos outros domínios do saber; os substantivos à produção da materialidade do processo; as adjetivações à expressão das especificidades, às aproximações; e, por fim, os próprios verbos, a todo o processo da criação. Assim, a gramática fragmentada articula na forma da sintaxe vocabular a instância da criação de novos significados, assinalados em verbetes como “Rizoma”, cujo conceito aponta para o duplo aspecto do modelo e decalque transcendente, da configuração da identidade simultânea ao processo imanente da produção da diferença e da singularidade no domínio educacional.

Paralelo aos conceitos, a mesma gramática permite áreas de vizinhança nas quais as intercessões reverberam nos verbetes, a exemplo de “Plano” e “Zero”, oriundos de outros domínios, estabelecidos numa nova perspectiva, em torno de problemas específicos postos em relações topológicas e de variação de posições. Ei-los então, os conceitos de “Plano” e “Zero”, que atravessam o domínio da educação naquilo que concerne à prática e à vivência.

De outro modo, verbetes como “Sala de aula”, “Universidade”, “Máquina”, “Xerox” denunciam os substantivos na materialidade das práticas, daquilo que se faz por materializar a produção de objetos ou de um sistema d objetos que compõem o quadro da Educação. Emolduramento de uma percepção da realidade, aos substantivos se seguem as adjetivações como forma de sintaxe do que se apresenta e decorre da materialidade dos objetos em sistema, isto é, os referenciais da identidade avaliados na superfície em que se encontram, a exemplo dos verbetes “Sociedade de controle”, “Tecnologia educacional”, “Metodologia do ensino”, “Formação de professores”, “Inclusão escolar” etc.
A gramática fragmentada dos verbetes possibilita ainda uma leitura na direção daquilo que o Abecedário indica como “Zona de variação contínua”, de diferentes forças que interagem, constituem e atravessam o espaço da produção. Outros verbetes, como “Univocidade do ser”, “Geologia da moral” e “Esquizoanálise” são expressão de agenciamentos e conexões sobre aquilo que o pensamento suscita na prática educacional, por meio de novas aproximações, que permitem vislumbrar a perspectiva da diferença.

Assim, na diferença e na repetição dos verbetes, encontram-se os verbos “Aprender”, “Brincar”, “Ensinar”, fragmentos centrais nesta gramática de leitura processos afirmativos que caracterizam a singularidade no cerne da criação, daquilo que se reúne em torno da educação da diferença: devir.

Antonio Basilio Novaes Thomaz de Menezes – Editor da Revista Saberes: Filosofia e Educação. É chefe do Departamento de Filosofia, professor do Programa do Pós-Graduação em Educação, membro do Grupo de Pesquisa Fundamentos da Educação e Práticas Culturais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: [email protected]

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Desafios da Reflexão em Educação Matemática Crítica – SKOVSMOSE (Bo)

SKOVSMOSE, Ole. Desafios da Reflexão em Educação Matemática Crítica. Tradução de Orlando de Andrade Figueiredo e Jonei Cerqueira Barbosa. Campinas: Papirus, 2008. Resenha de: KISTEMANN JR, Marco Aurélio. BOLEMA, v. 23 n. 37, 2010.

Na introdução de seu livro, Ole Skovsmose afirma que a Educação Matemática Crítica está se desenvolvendo, apresenta as etapas de sua evolução e narra como surgiu seu interesse por este tema, nos anos 1970. Segundo Skovsmose (2000, p.12), “a educação crítica desencadeou uma reação contra o currículo conduzido pelo professor e contra as aclamadas neutralidade e objetividade da ciência”.

A idéia de educação crítica espalhou-se por todos os níveis do sistema educacional, influenciando, substancialmente, a educação matemática e o ensino de ciências, fazendo surgir a educação matemática crítica. O autor apresenta de forma sucinta as inspirações teóricas que embasaram a educação crítica e, por extensão, influenciaram a educação matemática crítica. Visando a cumprir o objetivo emancipatório2, cita Paulo Freire referindo-se à relevância da noção de diálogo na caracterização dos processos educacionais. Outra fonte de inspiração importante é a Teoria Crítica elaborada pela Escola de Frankfurt que propaga a idéia de uma educação crítica como uma educação orientada pela emancipação.

Ao longo da Introdução, Skovsmose segue relatando que a abordagem por ele formulada, em contexto europeu, nos anos 1970 e 1980, e apresentada no livro Towards a philosophy of critical mathematics education, de 1994, não se adequava em alguns outros contextos, tendo sido necessário reformulá-la. Visitando o Programa de Pós- Graduação em Educação Matemática da UNESP, em Rio Claro, Skovsmose toma consciência do que pode significar a preocupação da educação matemática com a diversidade e os conflitos culturais. Assevera que distintas correntes de pensamento fazem parte desse enfrentamento e que a noção de globalização suscita uma discussão em torno de qual seria o papel da educação matemática em contextos sócio-políticos, econômicos e culturais distintos.

No primeiro capítulo, “Cenários para Investigação”, o autor relata que, em grande parte das salas de aula, a educação tradicional enquadra-se no que ele denomina “paradigma do exercício”, no qual a premissa central seria a de que em cada exercício existe uma e somente uma resposta correta. Contrapondo-se a esse paradigma, o autor propõe a abordagem de investigação passível de tomar variadas formas.

Para o pesquisador, uma abordagem de investigação relaciona-se diretamente com a educação matemática crítica, no desenvolvimento da materacia, ou seja, desenvolver a capacidade de interpretar e analisar sinais e códigos, de propor e utilizar modelos na vida cotidiana, de elaborar abstrações sobre representações do real, além de cuidar das habilidades matemáticas, preocupando-se com as competências referentes à interpretação e à ação numa situação social e política estruturada pela matemática.

Assim, a educação matemática crítica interessa-se pelo desenvolvimento da educação matemática como suporte da democracia, implicando que os grupos de investigação (microssociedades) de salas de aulas de matemática devem também pautarse por parâmetros democráticos.

Um “cenário para investigação” é uma propriedade relacional envolvendo o professor e seus alunos, mas os alunos são os principais responsáveis pelo processo investigativo. Neste contexto, percebe-se, pelas ideias expostas, que as salas de aula baseadas em cenários para investigação diferem-se significativamente daquelas fundadas no paradigma do exercício. As diferenças entre elas relacionam-se às “referências” que visam a levar os estudantes a produzir significados para atividades e conceitos matemáticos. Categorizando de forma bastante didática, ambas as abordagens, Skovsmose as referencia sob três óticas: a da Matemática Pura, a da Semi-Realidade e a da Realidade. Para cada uma das duas abordagens (a parametrizada pelo paradigma do exercício e a dos cenários de investigação), apresentam-se variados exemplos com rica caracterização, descrevendo as ações docentes e discentes, os tipos de exercícios e os ambientes de sala de aula de matemática onde se desenvolvem as ações. Enfatiza-se, ainda que, os projetos apresentam diferentes aspectos do ambiente de aprendizagem do tipo “Cenários de Investigação”, com amplas referências à realidade das situações. As referências são reais, tornando possível aos alunos produzir diferentes significados para as atividades e não somente para os conceitos.

Fica explícito que o professor, no contexto dos “Cenários”, tem o papel de orientar os alunos nas investigações, de forma que a reflexão crítica sobre a matemática e a modelagem matemática ganha um novo significado. Skovsmose não pretende oferecer uma classificação estática e rígida sobre “Exercícios” e “Cenários para Investigação”, mas, sobretudo, elaborar uma idéia do que sejam “Ambientes de Aprendizagem”, com vista a facilitar as discussões sobre mudanças na Educação Matemática.

Skovsmose (2000) afirma que, em geral, melhorias na educação matemática estão intimamente ligadas à quebra de contrato didático. Quando inicialmente sugeri desafiar o Paradigma do Exercício, isso pode ser visto também como uma sugestão de quebrar o contrato da tradição da matemática escolar. (p. 63)

Da perspectiva dos professores, isso caracteriza o movimento de uma zona de conforto para uma zona de risco3, segundo a terminologia de Penteado. Para Skovsmose, o movimento entre os diferentes ambientes possíveis de aprendizagem e a ênfase especial no Cenário para Investigação causarão certa incerteza que não deve ser eliminada, mas, sobretudo enfrentada, diagnosticada e investigada4.

Encerra-se o primeiro capítulo com questionamentos referentes aos modos de se buscar desenvolver uma Educação Matemática preocupada com a democracia numa sociedade estruturada por tecnologias, uma Educação Matemática que não torne opaca a introdução, aos alunos, do pensamento matemático, mas que os leve a reconhecer suas próprias capacidades matemáticas, conscientizando-se da forma pela qual a Matemática opera em certas estruturas tecnológicas, militares, econômicas e políticas5.

O segundo capítulo – intitulado “Riscos trazem possibilidades” –, uma coautoria com Miriam Godoy Penteado, tem como propósito principal discutir o emprego de computadores em salas de aula. Para tal, os autores optam por usar as noções de Quarto Mundo e sociedade em rede, expressões cunhadas por Manuel Castells6.

Skovsmose e Penteado pretendem analisar a introdução da tecnologia da informação e comunicação (TIC) nas escolas como uma possibilidade para que os jovens aproximemse da sociedade em rede como usuários, bem como discutir possibilidades e implicações da presença da TIC em escolas de fronteira7 com base no caso das escolas brasileiras.

Os pesquisadores discutem de forma bastante aprofundada o modo como os computadores estão sendo usados por um grupo particular de professores de matemática nas escolas estaduais de São Paulo. Tais professores pertencem à Rede Interlink8. São ressaltadas as dificuldades enfrentadas, pelas escolas, para adoção da TIC, uma vez que a estrutura não favorece muitas vezes a participação conjunta de todos os alunos e que há o problema da manutenção das máquinas e, muitas vezes, aqueles causados pela frágil segurança dos estabelecimentos de ensino (PENTEADO; SKOVSMOSE, 2002).

Finalizando o segundo capítulo, dois pontos são explicitados pelos pesquisadores e merecem destaque. O primeiro ressalta que a introdução dos computadores em salas de aula não deve ter como única preocupação os ganhos de aprendizagem, mas sim sua potencialidade de provocar discussões e reflexões de e sobre uma ótica sociopolítica. O segundo ponto diz respeito aos riscos que os professores têm de enfrentar quando da introdução da TIC no seu cotidiano de ensinoaprendizagem (quando vêm à cena as noções das zonas de Risco e de Conforto).

O capítulo terceiro, “Desafios da Reflexão”, inicia-se com a afirmação sobre a dificuldade de se definir “reflexão”. No entanto, Skovsmose desenvolve a noção de reflexão concernente à aprendizagem e à matemática optando por ponderar sobre aquilo que pode servir de objeto de reflexão e, mais especificamente, sobre as reflexões sobre ações. Em seguida, Skovsmose define o que entende por matemática em ação, referindo-se às práticas que incluem a matemática como parte constituinte de si mesmas como, por exemplo, a inovação tecnológica, a produção, a automação, o gerenciamento e a tomada de decisão, as transações financeiras, a estimativa de riscos, as análises de custo-benefício etc. De acordo com o pesquisador, a matemática em ação está implícita em procedimentos mecanizados, o que a torna passível de ser objetos de reflexão.

Neste mesmo capítulo, no tópico “A necessidade da reflexão”, Skovsmose questiona o leitor sobre a necessidade de se refletir sobre a matemática e sobre sua aplicação nos diversos ramos da atividade humana. Oferece ricos argumentos que ratificam a importância das reflexões, buscando refugar dos domínios da matemática qualquer forma de banalidade presente na especialização. No tópico seguinte, o pesquisador ressalta o papel que os sistemas educacionais possuem de suprir mão-deobra qualificada de acordo com uma matriz que representa a demanda social por competências. Finalizando o capítulo, o pesquisador defende alguns pontos primordiais para guiar as discussões acerca das reflexões que devem permear a prática de uma educação matemática crítica e reflexiva.

O penúltimo capítulo, “Racionalidade sob Suspeita”, Skovsmose inicia seu questionamento citando John Dewey sobre a ciência como força motriz do progresso. Para Dewey (1996), o método científico tem resultados pródigos e prolíferos que extrapolam as fronteiras da ciência, e a educação faz progressos quando incorpora esse método do que se conclui, portanto, que a lógica da ciência nos coloca na direção da democracia. O autor do livro aponta duas questões que servirão como guia às considerações deste capítulo: “Como podemos entender os possíveis papéis sociopolíticos da racionalidade baseada em Matemática?” e “Como podemos entender os possíveis papéis sociopolíticos da Educação Matemática?”.

Eximindo-se de abraçar o otimismo exacerbado de Dewey, Skovsmose tece suas análises buscando não partir de premissas alicerçadas sobre a racionalidade baseada em matemática. Para tal faz-se necessário, segundo o pesquisador, esclarecer o que se entende por “racionalidade baseada em matemática”. Para ele, a matemática é a grande representante de um tipo de racionalidade impregnada em nossa tecnonatureza e em nossos mundos-vida. Para defender seu ponto de vista, detalhadamente e de forma precisa, interroga-se sobre como a fabricação de possibilidades, estratégias, fatos, contingências e perspectivas ocorre atreladamente à Matemática.

Ao longo do capítulo, Skovsmose ainda aborda temas relevantes ligados à tradição matemática escolar e às funções dessa tradição em relação aos desenvolvimentos social, econômico e tecnológico. Ressalta que, na sociedade do conhecimento, Classificação e Diferenciação emergem como ações identificadoras de competências, e que a avaliação e a classificação dos alunos, como ocorrem na escola, fazem surgir as constantes preocupações com testes e mensurações, bem como a defesa da noção de competências. Finalizando o capítulo são abordados temas que envolvem a educação matemática e sua prática: filtragem ética, cidadania crítica e empowerment9.

O capítulo 5, “Educação Matemática Crítica rumo ao futuro”, encerra o livro com os seguintes questionamentos de Skovsmose: “A educação matemática crítica representa uma forma de pensamento para a qual não há mais espaço no mundo contemporâneo?” “É ela um resquício de um movimento de esquerda que existiu na educação e está ultrapassado?” “E, se não for, qual é o significado de educação matemática crítica hoje?” “E o que dizer de seu futuro?“. Examina-se a proposição “A educação matemática é crítica” antes de tentar esclarecer, de modo mais definitivo, a noção de “educação matemática crítica”, ressaltando as preocupações dessa matemática crítica os processos de globalização e guetorização, as premissas da modernidade, a “matemática em ação” e suas ponderações sobre poder e matemática, as formas de submissão aplicadas por meio da educação matemática, e a relação entre educação matemática, empowerment e disempowerment (SKOVSMOSE; ALRØ, 2006).

Finalizando o capítulo, o autor tece reflexões acerca das premissas da modernidade, questionando-as e enfatizando não ser possível pressupor que haja uma ligação intrínseca entre o progresso científico e o progresso sociopolítico em geral. Para o pesquisador, conhecimento e poder interpenetram-se, e, no coração dessa interpenetração, encontra-se a “matemática em ação”. Não podemos eliminar a  “matemática em ação” que impulsiona nosso desenvolvimento sociotecnológico, mas é necessário discutir a globalização, a formação de guetos, as propostas de superação das premissas da modernidade, analisar a relação “matemática e poder” e tratar as noções de empowerment e disempowerment sob uma fundamentação teórica e epistemológica sólida. Lidar com tais preocupações implica reconhecer a incerteza: a incerteza acompanha a educação matemática crítica rumo ao futuro.

O livro de Ole Skovsmose, Desafios da Reflexão em Educação Matemática Crítica, é leitura obrigatória para todos os educadores, sejam da área de matemática ou não, pois aborda temas concernentes a práticas docentes, na medida em que tem como objeto as práticas pedagógicas e enfatiza a importância da reflexão nas ações em educação. Skovsmose nos convida a rever posturas e buscar novos caminhos para a escola e a sala de aula de Matemática do século XXI.

Notas

2 O processo emancipatório freireano decorre de uma intencionalidade política declarada e assumida por todos aqueles que são comprometidos com a transformação das condições e de situações de vida e existência de oprimidos, contrariamente ao pessimismo e fatalismo autoritário defendidos pela pósmodernidade e ao mecanismo etapista do marxismo ortodoxo, que afirma o processo de transformação social como sendo certo e inevitável. O objetivo emancipatório defendido por Paulo Freire e, por extensão, por Skovsmose, também contempla o chamado multiculturalismo, no qual o direito de ser e de agir diferente numa sociedade dita democrática, enquanto uma liberdade conquistada de cada cultura, também deve proporcionar um diálogo crítico entre as diversas culturas, tendo por fim ampliar e consolidar os processos de emancipação.

3 Essa noção foi introduzida por Penteado (2004) em seu estudo sobre as experiências do professor num novo meio de aprendizagem no qual os computadores representam um papel crucial. Em particular, quando o professor deixa a zona de risco ele elimina possibilidades de aprendizagem associadas à idéia de computadores como reorganizadores do ambiente de aprendizagem.

4 Os computadores na Educação Matemática têm auxiliado o estabelecimento de novos cenários para investigação, desafiando a autoridade do professor (tradicional) de Matemática. Como descrevem Borba e Villareal (2005), os computadores reorganizam nosso pensamento, influenciando muitas coisas, em particular a forma como o significado é produzido. A idéia completa de “reorganização” liga-se fortemente à idéia de “zona de risco”. De acordo com a pesquisa de Penteado (2004), uma condição importante para os professores se sentirem capazes de atuar na zona de risco é o estabelecimento de novas formas de trabalho colaborativo.

5 A expectativa de Skovsmose estabelece-se na busca de um caminho entre os diferentes ambientes de aprendizagem, proporcionando novos recursos para levar os alunos a agir e a refletir, oferecendo, dessa maneira, uma Educação Matemática de dimensão crítica (SKOVSMOSE, 2000).

6 Quarto Mundo e sociedade em rede são expressões fortemente relacionadas, visto que o Quarto Mundo representa a parcela da sociedade excluída da sociedade de rede. A sociedade em rede é também denominada, muitas vezes, sociedade da informação. A sociedade em rede e o Quarto Mundo estão no centro das discussões sobre inclusão e exclusão.

7 Entende-se por Escolas de Fronteira aqueles estabelecimentos de ensino nos quais tanto a sociedade em rede quanto o Quarto Mundo estão presentes, face a face.

8 A Interlink é uma rede de professores, pesquisadores e licenciandos interessados no uso da TIC em Educação Matemática. Esta rede congrega professores de escolas públicas que dedicam de uma a três horas semanais para atividades pedagógicas conjuntas, a fim de planejarem práticas para a sala de aula.

Adicionalmente, existe um canal de comunicação virtual baseado em ferramentas da internet: e-mail, homepages e a lista de discussão (http://www.rc.unesp.br/igce/matematica/interlk). A maioria das escolas associadas à Rede Interlink representam o que os pesquisadores chamam de Escolas de Fronteira. O objetivo da rede Interlink é explorar a relação entre teoria e prática na educação matemática. Seu foco principal é a implementação do uso de tecnologia da informação e comunicação na constituição de espaços educacionais.O grupo se comunica através de uma lista eletrônica.A rede Interlink é coordenada pela professora Miriam Godoy Penteado, livre-docente do Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática, Departamento de Matemática, IGCE – UNESP – Campus de Rio Claro – SP.

9 Este termo significa dar poder a, dinamizar a potencialidade do sujeito ou investir-se de poder para agir.

Referências

BORBA, M.C.; VILLAREAL, M. Humans-with-media and a reorganization of mathematical thinking: information and communication. Technologies, modeling, experimentation and visualization. Nova York: Springer, 2005.

DEWEY, J. Democracy and Education: an introductionto to the philosophy education. Nova York/Londres: Free Press, 1996.

PENTEADO, M.G.; SKOVSMOSE, O. Risks includes possibilities. Publication, Copenhage, Roskilde e Aalborg, Centre for Research in Learning Mathematics, Danish University of Education, Aalborg University, v.1, n.34, p. 63-85, 2002).

PENTEADO, M. G. Redes de trabalho: expansão das possibilidades da informática na educação matemática da escola básica. In: BICUDO, M.A.V; BORBA, M.C. (Orgs.). Educação Matemática em movimento. São Paulo: Cortez, 2004. p. 283-295.

SKOVSMOSE, O. Towards a philosophy of critical mathematics education. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1994.

SKOVSMOSE, O. Cenários para investigação. BOLEMA, Rio Claro, v. 13, n.14, p.66- 91, 2000.

SKOVSMOSE, O.; ALRØ, H. Diálogo e Aprendizagem em Educação Matemática. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

Marco Aurélio Kistemann Jr. – Doutorando em Educação Matemática – UNESP – Rio Claro. Email: [email protected]

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[MLPDB]

Adultos com síndrome de Down: A deficiência mental como produção social – CARNEIRO (REE)

CARNEIRO, Maria Sylvia Cardoso. Adultos com síndrome de Down: A deficiência mental como produção social. Campinas, SP: Papirus, 2008. Resenha de: CRESPO, Fernanda de Azevedo. Revista Educação Especial, Santa Maria, v.22, n.35, p.409-410, set./dez., 2009.

Refletindo sobre a deficiência mental de adultos com síndrome de Down, que imagens visualizamos? Quem são esses sujeitos? O que podemos pensar e falar sobre eles? Quando enfatizamos a abordagem histórico-cultural, especialmente as contribuições de Vygotsky, a marca das relações sociais influencia os fatores maturacionais uma vez que o meio está relacionado com as conquistas de cada sujeito.
O citado livro apresenta três histórias de adultos com síndrome de Down oriundas da interação da autora com cada narrador que, utilizando o método narrativo, valoriza a experiência subjetiva, singular incorporando elementos como as emoções de cada sujeito da pesquisa.
A contribuição da autora na área da educação especial é importante por salientar que ter síndrome de Down e constituir-se como sujeito adulto sem o diagnóstico de deficiência mental é possível e remetem aos sujeitos de sua pesquisa.

Esta questão é o que mais chama atenção em sua obra uma vez que os adultos que foram pesquisados, apesar de todas as dificuldades, se mantiveram em escola comum e deram continuidade aos estudos em nível técnico ou graduação o que é incomum em nossa sociedade.
Aos poucos vamos conhecendo histórias como estas, de luta diária e confronto com uma sociedade que vem abrindo espaço para diferença.
Por mais que a inclusão venha sendo gradativamente discutida, histórias como estas são únicas e difíceis de encontrarmos em nossas escolas e universidades.

A importância da obra decorre do fato da autora conseguir apresentar as trajetórias destes três adultos com síndrome de Down como sujeitos únicos que em comum têm o diagnóstico, mas experiências e aprendizagens que foram sendo construídas com suas relações sociais.
É um livro interessante para todos que atuam na educação especial, pois valorizam a construção do conhecimento oportunizando novas produções específicas sobre adultos com necessidades educativas especiais em nosso mundo que está constantemente em movimento .

Fernanda de Azevedo Crespo – Professora da rede municipal de ensino. Prefeitura Municipal de Cachoeirinha (RS). E-mail: [email protected]

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Escritos sobre educação/ comunicação e cultura – PRETTO (RF)

PRETTO, Nelson De Lucca. Escritos sobre educação, comunicação e cultura. São Paulo: Papirus, 2008. 240 p. Resenha de: OLIVEIRA, Rosa Meire Carvalho. Revista FACED, Salvador, n.15, jan./jul. 2009.

Escritos sobre educação, comunicação e cultura, de autoria do professor Nelson De Luca Pretto, doutor em Comunicação pela Universidade de São Paulo e pós-doutorado em Londres, Inglaterra, foi editado em 2008 pela Papirus. De cunho aparentemente despretensioso, a obra reflete, no entanto, a militância do educador Nelson Pretto, que, com o próprio exemplo, demonstra como construir uma prática que defenda a atuação do professor como intelectual da cultura.

É essa perspectiva que vemos consolidada ao longo de todo o livro, que apresenta um conjunto de textos datados entre 1983 e 2006. São artigos – publicados ou não – e entrevistas em diversos órgãos de imprensa local e nacional, além de discursos e escritos de antigos panfletos. É por meio deles que vemos reiterados, não só o espírito transformador que tem animado as práticas acadêmicas, universitárias e do cidadão Nelson Pretto, mas as ideias que vêm consubstanciando ao longo de mais de duas décadas a que os textos nos remetem, a ação de um educador ocupado em transformar pela práxis, a realidade de processos vitais para a educação, a comunicação e a cultura.

O alcance dessa práxis é revelada nas 240 páginas do livro, que é dividido em sete partes. E como bem aponta o educador português António Nóvoa, a quem coube a apresentação da obra: “Nelson Pretto exerce um olhar crítico e obriga-nos a pensar para além das esquadrias habituais. Este livro não deixa ninguém indiferente.
Faz-nos pensar. Dá o que pensar. Não será esse o objetivo primeiro de um intelectual? E, ao mesmo tempo, convida-nos a agir. Não será essa a missão principal de um educador?” (p. 11), indaga.

Nóvoa observa não ser à toa que o livro começa com um texto de Paulo Freire para quem o ato de educar é um ato de comunicação. É dessa mesma estirpe que se revela Pretto em suas itinerâncias, ao trabalhar a perspectiva de aproximar a educação da comunicação, trazendo desde seus primórdios um novo olhar que recoloca os cidadãos, em primeiro plano, e os professores como mediadores de uma cultura estruturalmente tecnologizada, em um novo patamar de ação. É nesse sentido que Pretto constata: “[…] Imaginava e continuo imaginando – hoje mais ainda! – que um professor deve ser, antes de tudo, uma liderança comunitária e intelectual […] fazer o processo educativo algo questionador, que extrapole o espaço das edificações escolares, uma ação que ganhe, literalmente, o mundo”. (p. 13) Nesse sentido, ganha espaço entre as várias seções do livro princípios defendidos por Pretto que compreende os imensos desafios colocados aos professores nesses tempos de comunicação em redes digitais globalizadas, cuja internet é o marco, e da imensa distância entre a cultura escolar e a cultura produzida fora dos muros da escola. Para ele, há dois pontos “importantíssimos” a considerar: primeiro, que a rede traz a possibilidade de interação entre o local e o não-local, a partir da valorização da cultura de origem; depois, pela “ocupação” dos espaços midiáticos, sejam os tradicionais (jornal, televisão, rádio, etc.) ou das novas mídias (a internet) por parte da escola. “Temos, portanto, de fortalecer os nós de conexão, de forma a fazer com que local e não-local interajam em pé de igualdade. Por isso sempre digo que não queremos internet nas escolas, mas sim escolas na internet” (p. 39), diz.

A Educação pelos meios e para os meios (BELLONI, 2001), ganha assim nas ideias de Pretto em Escritos em educação, comunicação e cultura a atualidade necessária à compreensão crítica dos fenômenos mediáticos da contemporaneidade, especialmente aqueles que envolvem a Teoria da Cibercultura e sua aproximação com a Educação, quando marca bem a qualidade dos processos comunicativos em redes digitais, suas características e o imenso potencial que é oferecido aos professores como mediadores da cultura, na tarefa de produzir coletivamente conhecimento em sala de aula, em lugar de simplesmente reproduzi-lo.
Daí que, para Pretto, as tecnologias digitais promovem um novo modo de ser e de agir da sociedade e ampliam os desafios de professores em sua missão diária. “[…] Apropriar-se dessas tecnologias como uma mera ferramenta, do meu ponto de vista, é jogar dinheiro fora. Colocar computador, recursos multimídia e não sei mais o que para a mesma educação tradicional, de consumo de informações, é um equívoco” (p. 49), observa. Na defesa de uma educação que contemple o local e o não local, as culturas de dentro e fora da escola e as possibilidades dos professores como intelectuais da cultura, Pretto acredita ser necessário uma maior presença da escola nos meios de comunicação, não apenas como consumidor, mas como produtor de informação. “Precisamos preparar professores que trabalhem na formação de uma juventude que possa atuar de forma plena na sociedade. Não apenas como consumidora mais qualificada, mas como produtora. Esse é o desafio!” (p. 40) O livro Escritos em educação, comunicação e cultura é revelador, portanto, da práxis que anima o pensamento instigante do educador Nelson Pretto. Quem, como nós, acompanha de perto um pouco da dinâmica de seus processos, consegue enxergar na obra a sua alma de pesquisador, de intelectual envolvido com questões que lhe são caras, seja na possibilidade de intervenção discursiva, a partir de suas convicções externadas em suas diversas produções textuais, seja pela capacidade de ocupar espaços acadêmicos, universitários e sociais, como cidadão comprometido com processos de mudanças.

É assim que nas sete seções de Educação, comunicação e cultura essas itinerâncias se constituem e revelam as diversas facetas do irrequieto professor. “A atitude de Nelson Pretto é coerente com a perspectiva de um intelectual que questiona aquilo que “já sabe” para, assim, abrir caminho a novas possibilidades e novos desígnios”, observa António Nóvoa em seu prefácio. (p. 11) Na primeira seção do livro, intitulada Entrevistas e Discursos, é assim que Pretto surge a nos abrir novas possibilidades reflexivas em relação a temas como o avanço das tecnologias de informação e comunicação (TIC) e sua relação com a educação, a partir da criação da Rede Bahia – uma “perna baiana” da internet; o futuro da escola e as transformações exigidas nos métodos e modelos de ensino-aprendizagem impelidas pelas TIC, como a relação com as novas gerações de nativos digitais (ou geração alt tab); inclusão digital; e a construção de uma escola “sem rumo”. Esta buscaria dialogar com os complexos e rápidos processos de um novo tempo social, cultural e econômico, na tentativa de promover novas educações.

Sua base epistemológica ancorar-se-ia na pedagogia da diferença, em lugar de uma pedagogia da assimilação, com o firme propósito de eliminar o que Pretto chama de “apartheid social”.

Em Escritos: Educação, que intitula a segunda seção do livro, o autor agrupa os textos que considera mais voltados para a educação, publicados ou não em forma de artigos para jornais. É nesse espaço também onde aparece a forte veia política e ativista, de um intelectual preocupado com temas caros aos rumos da educação brasileira e baiana, como a formação de professores, as condições da escola e da Universidade Pública, especialmente da UFBa, seus problemas e sua expansão. São textos datados a partir de 1983, que traduzem a preocupação de Pretto com a qualidade das políticas públicas para a educação, dentre as quais aquelas relacionadas ao livro didático, assunto que por muito tempo ocupou as reflexões do autor.

A temática dos livros didáticos, inclusive, intitula a terceira seção do livro, chamada Educação: Livros Didáticos. A parte é formada por seis artigos escritos por ocasiões e fins diversos – um deles publicado em 1996 pelo jornal Folha de São Paulo – e resume a preocupação do autor com as políticas (ou sua falta) para o livro didático. O tom dos textos é sempre de perplexidade e denúncia, com reflexões envolvendo pontos como a falta de inclusão dos professores nos debates realizados pelo governo sobre a questão e as posturas dos editores, que estariam mais preocupados, segundo o autor, em termos de quantidade e não na qualidade do livro didático produzido no Brasil. “Sabíamos que um programa de governo teria de contemplar a questão da quantidade, mas considerando que a questão da qualidade era fundamental, ela teria que ser atacada com a mesma firmeza com que se atacou a questão da quantidade” (p. 129), sustenta no texto que prefacia o livro Que sabemos sobre o livro didático, editado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais e publicado em 1989 pela editora da Unicamp. Na ocasião da pesquisa que resulta no livro, o autor ocupava a coordenação do órgão (1986/1987).

A Cultura: o cuidado com a cidade e as gentes é o título da seção quatro, que resgata a produção do autor no campo da cultura.

Editado em ordem cronológica de aparecimento dos textos em jornais baianos, especialmente em A Tarde, e de outros estados, além de orelha de livros – como é o caso de Homem satélite, texto escrito em 2000 e publicado em livro homônimo do professor Edvaldo Couto. Buscou-se uma articulação entre os textos que tratam das mais variadas abordagens, tendo como afirma o autor, um “enorme” vínculo com a educação. Em verdade, os textos, muitos em estilo de crônica, traçam uma espécie de visão do autor e seus vínculos com a cultura baiana.

A seção é aberta com uma crônica de uma viagem à cidade de Lençois (BA), em busca de uma certa Cachoeira Glass. Relata percalços e encontros inusitados, como aquele estabelecido com seu Biça. Também circulam por ali lembranças da apresentação da Banda Afro Olodum, no Circo Voador, do Rio de Janeiro, A lavagem (festa típica baiana) da localidade de Jauá, no litoral Norte de Salvador, entre referências a outras festas populares, entre outros aspectos da típica cultura baiana. São ao todo 15 crônicas da vida da cidade, repletas de baianidade, onde o autor não deixa de manifestar o amor à cidade – que adotou aos 11 anos com a mudança da família de Porto Alegre para a Bahia. Neste particular, a crônica Velhos tempos que não voltam mais homenageia a cidade onde viveu até os cinco anos, Joaçaba, em Santa Catarina.

Na quinta seção, três textos compõem a parte dedicada à Ciência e Tecnologia. O primeiro deles trata de Ciência e televisão, refletindo sobre o papel educativo da televisão, seja pública ou comercial. O autor reflete sobre o que são em verdade programas educativos e o surgimento dos mesmos na TV brasileira.
Num panfleto sobre o Globo Ciência, programa produzido pela Globo, Pretto faz uma crítica à qualidade do que se considera ciência, aludindo à espetacularização da ciência pela produção do programa. A seção é encerrada com artigo sobre a realização da Reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em Salvador.

A sexta seção, penúltima do livro Escritos em educação, comunicação e cultura, apresenta uma série de 22 artigos sobre a presença das tecnologias de informação e comunicação no mundo contemporâneo. O título A tecnologia da informação: e chegaram os bytes, traz embutido seu valor, especialmente memorial, por registrar o desenvolvimento da rede internet na Bahia, com a reunião de um consórcio para este fim, com a participação da UFBA, governos estadual e municipal, antiga Telebahia e órgãos e entidades do estado. No artigo intitulado A Bahia já caiu na rede, publicado em 18/5/1995 – primórdios da internet comercial no Brasil – Pretto informava: “Hoje nosso número de usuários gira em torno de dois mil. Já temos uma estrutura descentralizada como é a filosofia da internet.” (p. 177) Os textos abordam pontos de vista variados sobre o desenvolvimento das novas tecnologias de comunicação e informação (TIC), descrevendo avanços na comunicação digital e de sua relação com a cultura e a educação. Nesse último aspecto, que viria a se tornar objeto do pensamento e da reflexão de Nelson nos últimos 15 anos, o autor nessa seção, sustenta mais uma vez a filosofia de uma educação democrática e inclusiva. Cobra políticas de democratização e acesso às TIC, como a aplicabilidade dos recursos do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust), que prometia destinação de recursos oriundos das empresas de serviços de telecomunicações para financiar a ampliação do espectro de acesso dos brasileiros à internet.

“Conectar as escolas públicas à internet é o caminho para fortalecer a produção de conhecimento e de cultura das crianças, jovens, adolescentes, professores e comunidade (p. 197)”, sentencia.

É esse conjunto de reflexões que resume o livro Escritos em educação, comunicação e cultura, que se encerra com a sétima seção, intitulada Escritos Com…. A seção não recebe ares de conclusão, mas, ao contrário, insinua uma continuidade, seja nas parcerias que os textos apresentam, seja nas temáticas discutidas, temáticas essas que se mantêm atuais na agenda de reflexões daqueles que cotidianamente lidam com os “caminhos cruzados” da educação e da comunicação.
É esse compromisso que parece apontar Pretto, ao escolher para fechar o livro textos que demonstram sua opção por melhores rumos para a Sociedade da Informação, a formação de professores, a inclusão digital, novas educações com escolas e universidade sem rumos. Esta última bem aos moldes do que idealizava o companheiro de itinerâncias, professor Luiz Felippe Serpa, reitor da UFBa por dois períodos, em sua incansável defesa da pluralidade, diversidade e de novas educações, a quem homenageia postumamente ao longo do livro e em dois artigos nesta seção final.

Referências

_________ BELLONI, Maria Luiza. O que é mídia-educação. Campinas, SP: Autores Associados, 2001. 116 p.

Rosa Meire Carvalho de Oliveira – Doutoranda em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: [email protected]

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Fragmentos da História Intelectual: entre questionamentos e perspectivas – SILVA (VH)

SILVA, Helenice Rodrigues da. Fragmentos da História Intelectual: entre questionamentos e perspectivas. Campinas: Papirus, 2002. Resenha de: LOPES, Marcos Antônio. O mapa de um labirinto: a História Intelectual, seus problemas, seus métodos e incertezas. Varia História, Belo Horizonte, v.18, n.28, p. 225-229, dez., 2002.

Em Fragmentos da História Intelectual Helenice Rodrigues da Silva apresenta ao leitor brasileiro campos temáticos e domínios teóricos em relação aos quais ainda não há “fronteiras” bem definidas. Como campo de pesquisa relativamente recente na França, as temáticas e os métodos de abordagem da História Intelectual ainda estão por ser fixadas. Segundo a autora, isto faz da História Intelectual um campo de estudos marcado pela indeterminação dos objetos e à procura de uma verdadeira identidade.

Gênero historiográfico forte na Inglaterra e nos Estados Unidos, países nos quais a expressão História Intelectual possui sentidos muitos diferentes, a variante francesa apresenta diferenciais que a particularizam, tornando-a um “desvio” fecundo e revelador de aspectos novos que as obras de pensamento podem propiciar. Mesmo que aguarde por uma definição de seus estatutos e pela conquista de seus direitos de cidade, a História Intelectual francesa, a julgar por este livro, não se afigura como um passo em falso, como uma disciplina que se desloca em terreno movediço.

Os oito textos densos e instigantes reunidos sob a marca despretensiosa de “fragmentos” demonstram que o gênero pode não possuir as suas cartas de nobreza, principalmente quando comparado à grande tradição de outros ramos da pesquisa histórica no país de Michelet. Mas esses “fragmentos” de Helenice Rodrigues demonstram, com um excesso espantoso de evidências, que a História Intelectual francesa já conseguiu definir traços bem pronunciados de identidade. Neste sentido, ela não pode ser confundida com a Intelectual History norte-americana de Martin Jay e de Dominique LaCapra como também não pode ser aproximada, sem reservas, da História Intelectual inglesa praticada pelo círculo de Cambridge, apesar de alguns elementos compartilhados com esta última vertente.

Certamente, ao fazer alianças teóricas ou ao recusá-las, nota-se que a História Intelectual francesa já entrou em seus anos de maioridade. Sem dúvida, os temas, os problemas e os métodos da História intelectual aparecem, neste livro, formulados com muito vigor e sofisticação. Não há nada que lembre uma narrativa empírica ao acaso das evidências. Pelo contrário, a autora vai tecendo a sua complexa tapeçaria matizando-a com um aparato teórico que impressiona. Assim é que, por “fragmentos da história intelectual” devemos compreender, muito antes, um conjunto multifacetado de nuanças do que um agrupamento de objetos dispersos.

Entretanto, riqueza temática e sofisticação teórica podem apresentar um peso excessivo, cobrando preço elevado ao leitor. Curto mas denso, rápido porém complexo, o livro de Helenice Rodrigues é uma panorâmica na qual se justapõem, por uma opção autoral lúcida e muito apropriada, o movimento das idéias e a dinâmica da história efetiva francesa em cinco décadas de embates dos intelectuais entre si e em meio às lutas de seu tempo. À diversificação temática do livro, que devemos compreender por riqueza de nuanças, alia-se a simplicidade e a elegância da escrita da autora. Certamente que a sua editora poderia ter se esmerado um pouco mais na revisão dos originais, pois as sucessões de gralhas ao longo do texto hão de provocar algum desconforto nos leitores que apreciam conteúdo e forma. A ausência de hifenização, as grafias incorretas dos nomes de autores e uma série de pequenos problemas de tradução, como é o caso do livro do filósofo francês Julien Benda — A traição dos clérigos, quando o mais razoável seria A traição dos letrados ou mesmo A traição dos intelectuais — poderiam ter merecido uma maior atenção.

Em seu texto, a autora dá mostras de se esforçar em não elidir a trajetória dos intelectuais do mundo histórico e das circunstâncias sobre as quais viveram e atuaram. Ao destacar a importância da produção, da recepção dos textos e das intervenções públicas dos intelectuais franceses, ela revela toda a sua preocupação em distinguir a História Intelectual de uma história de sistemas formais de pensamento, esta última desenraizada da vida social e sem conexões com a realidade às vezes cruel e selvagem da história efetiva do mundo contemporâneo. Este é particularmente o caso dos capítulos sobre Hannah Arendt e Jean-Paul Sartre, em que a barbárie do nazismo e a opressão do colonialismo revelam a face negra da civilizada Europa.

Esta orientação teórica, ou antes, esta opção de foco, definida com ênfase no ensaio de abertura “História Intelectual: condições de possibilidades e espaços possíveis” pode parecer um esforço preventivo elementar, mas na prática não o é. Ora, quando movimentadas pelos historiadores, muitas vezes, as idéias tendem a ganhar uma força centrífuga que, em geral, guiam-nas para áreas de escape sem base consistente de apoio. São as derrapagens comuns dos historiadores que acabam centrando suas abordagens em circuitos analíticos que se esgotam no próprio sistema de idéias e na arte pedregosa de sua interpretação. É o que se tem denominado por internalismo, com um fraco impulso para a integração do texto ao mundo histórico que o gerou e uma quase total carência de indagações pertinentes à pesquisa histórica.

Creio que a autora tenciona deixar uma mensagem não completamente explicitada: o mundo da pesquisa histórica está cheio de boas intenções para estabelecer a perfeita síntese entre teoria e objeto. Isto pode significar que as tais boas intenções criteriosamente expostas em páginas e páginas em que o plano teórico certo e seguro é celebrado como instrumento eficaz de conexão das idéias com a realidade histórica que as gerou, nem sempre é seguido à risca por aqueles que as costumam enunciar. Desse modo, a História Intelectual pode fazer com que as idéias desfilem nuas por um longo tempo, quando despidas de sua armadura natural, ou seja, quando separadas de seu contexto. E por contexto não devemos compreender apenas o chamado circuito da tradição interpretativa dos textos, mas preocuparmos com os problemas reais do mundo histórico do autor. Além disso, é preciso cercar as análises dos textos de uma teoria da ação.

Sem dúvida, este esforço de enraizamento, de contextualização, pode ser uma virtude real da História Intelectual francesa. E tanto mais ainda se a compararmos às tendências pós-estruturalistas, em que o apego à análise textual é a nota forte. Tudo é texto, ou melhor, discurso, parece ser o principal argumento dessa história de extração internalista. Ora, hoje há consenso de que a História é um tipo específico de discurso. Mas um tipo específico de discurso sobre o quê? Ora, sempre houve ou existirá uma realidade fora do texto que requer a parcela mais substancial da atenção dos historiadores. Cabe distinguir, então, que se um documento histórico, de qualquer natureza, deve ser apreendido pelo historiador como algo que nunca representa a verdade — é apenas uma representação de realidades contingentes e, portanto, um “monumento” da capacidade de representação humana — o discurso define algo como a “alma” do texto: uma matéria opaca que apenas tornar-se-á legível pelo esforço da operação interpretativa. Como afirma Ricoeur, o estruturalismo tende a estudar a linguagem poupando o sujeito, a ação, os eventos. A História Intelectual, segundo a defesa de Helenice Rodrigues, investe na capacidade do locutor, na força ilocucionária dos discursos, na capacidade do sujeito em situar-se como ator no mundo, como um agente ativo que se opõe a interlocutores reais, como um coeficiente de força que quer atingir um alvo em sua existência histórica concreta.

Outro mérito destes Fragmentos… é que, além de retratar a complexidade do universo de relações dos intelectuais em meio aos escombros do pós-guerra e dos dilemas das três décadas gloriosas da retomada econômica da França (1945-75), o livro é também uma bem fundamentada exposição de teoria e metodologia da história. Nesse sentido, constitui-se num elenco de abordagens de autores que, apesar de não serem historiadores de ofício, prestaram um grande contributo ao desenvolvimento da história-disciplina: Bourdieu, Elias, Cassirer, etc.

Surpreendente pelas tramas e tensões que revela ao leitor, e, sobretudo, pela novidade e originalidade das análises, é preciso confessar a sensação de perplexidade diante de um conjunto temático tão rico e, consequentemente, tão difícil de devassar. Sempre explorando temas candentes da história francesa contemporânea, questões geradoras de intensos debates e grandes mobilizações sociais (reflexos do nazismo, a revolta de 68, a independência da Argélia, a divisão identitária da Revolução Francesa), Helenice Rodrigues se aproxima bastante de uma história social das idéias, ao destacar as correntes intelectuais que influenciaram e contribuíram para dar “forma” às representações coletivas dos franceses na segunda metade do século XX.

Inegavelmente, há um grande esforço em levar a bom termo uma História Intelectual empenhada em demonstrar a gênese e a difusão das idéias e da influência exercida por alguns intelectuais em determinadas conjunturas. A autora demonstra como os acontecimentos políticos, econômicos, sociais e culturais foram influenciados pelo movimento das idéias (e vice-versa), por certos “climas” intelectuais que lhes antecedem no tempo e que, em certa medida, lhes preparam o terreno. Mas, não tendo a intenção de enfocar as idéias sob o ângulo de uma história dos intelectuais, a autora não explora qual foi a real força transformadora do intelectual interventor (caso de Sartre) que brande a pena como uma espada afiada. E não demonstra, por exemplo, como as idéias de Sartre agiram como uma espécie de “doutrina preparatória” (caso da guerra de independência da Argélia) que, combinadas à linhagem de marxismo adotada pelo intelectual engajado, atuaram como uma força desagregadora do autoritarismo e da opressão colonial.

Em a Traição dos intelectuais, o filósofo francês Julien Benda demonstrou como estas doutrinas preparatórias atingem um potencial de transformação a partir do momento em que os vulgarizadores de idéias entram em cena. É o que Benda chamou por “expressão derivada” da obra intelectual, que os intelectuais engajados “digerem”, reformulam e difundem. A título de ilustração, trata-se, por exemplo, do uso pragmático que o leninismo e mais tarde o stalinismo fizeram da obra de Marx, deformando algumas de suas idéias originais para melhor empregá-las no processo de convencimento de seus adeptos. As idéias, assim reapropriadas, e, em certa medida, transformadas em sua natureza original por uma confraria de discípulos, se difundem entre as massas, podendo levar a transformações. Mas aqui vale a regra de que não se pode esperar do autor o que ele não prometeu levar a cabo. Identificar todos os nós de uma rede, para usarmos um termo tomado de empréstimo a Foucault, talvez seja mesmo extrapolar os limites impostos à problemática da obra: “questionamentos e perspectivas”.

Em síntese, os problemas formulados por esta História Intelectual, da forma como a pratica Helenice Rodrigues, são todos legítimos e pertinentes de pesquisa e de reflexão. O único equívoco será mesmo o de continuar dissertando sobre o livro, de cuja energia galvanizadora extraímos estas tortas linhas. Insistir nisto é algo assim como fazer a autêntica obra do “escavador de precipícios”, para recordarmos a irônica expressão que Voltaire gostava de empregar ao caracterizar os personagens mais equivocados de seus textos históricos e de seus contos filosóficos.

Marcos Antônio Lopes – Departamento de Ciências Sociais/Universidade Estadual de Londrina.

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[DR]

 

Representações. Contribuições a um debate transdisciplinar – CARDOSO; MALERBA (RBH)

CARDOSO, Ciro Flamarion; MALERBA, Jurandir (orgs.). Representações. Contribuições a um debate transdisciplinar. Campinas: Papirus, 2000. 288p. Resenha de: PELEGRINI, Sandra C. A. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.22, n.43, 2002.

A organização de uma coletânea voltada para o debate acerca das representações configura um projeto ambicioso, dada a complexidade que o próprio tema encerra. A obra, além de contemplar o necessário equacionamento do conceito, indica diferenciadas tendências teóricas e contribui para o aprofundamento da reflexão no âmbito da pesquisa histórica, sua natureza epistemológica e hermenêutica. Se uma ressalva pudesse ser feita, apontar-se-ia a ausência de uma detida análise sobre as relações entre a história das artes e as representações ¾ um terreno fértil, mas pouco explorado pela historiografia, especialmente no campo das produções pictóricas e da plasticidade.

No seu conjunto, o volume reúne ensaios que, mediante distintas interpretações, apresenta abordagens que enfocam desde as implicações da representação como objeto histórico até a constatação de sua dimensão lingüística na produção historiográfica. Embora aponte os riscos da utilização indiscriminada da noção supracitada e de determinados paradigmas teóricos sem as devidas precauções metodológicas, o trabalho parte do reconhecimento de que a representação tornou-se uma das pedras angulares do discurso histórico contemporâneo e, como tal, procura caracterizar sua índole e função cognitiva.

Entre as contribuições do volume, chama especial atenção a análise do conceito de representação política na esfera da produção historiográfica brasileira, efetuada por Maria Helena Rolim Capelato e Eliana Regina de Freitas Dutra. As autoras reconhecem a multiplicidade das abordagens, objetos e referenciais metodológicos que têm sido alvo das investigações no âmbito do político, todavia advertem que tal fato não deve ser atribuído aos modismos historiográficos passageiros que tendem a privilegiar os estudos voltados para as representações do poder e do exercício político e sua articulação com a vida social brasileira. Muito pelo contrário, esse deslocamento, do ponto de vista das historiadoras, resulta das aberturas epistemológicas e da operacionalidade proposta pelo estruturalismo e pós-estruturalismo. Nesse contexto, a análise proposta volta-se inicialmente para a identificação dos caminhos percorridos pelo conceito de representações, sua dimensão epistemológica e prática no campo das investigações históricas. E, num segundo momento, procura verificar o impacto do mesmo em cerca de uma centena de dissertações de mestrado e teses de doutorado concluídas nos anos 90, no Brasil.

Com o intento de promover um balanço historiográfico dessa produção, a reflexão abarca desde a análise do elenco dos temas abordados1 até o cômputo das fontes utilizadas nos referidos trabalhos2. A incidência de um confronto entre as posturas adotadas nesses trabalhos e os pressupostos teóricos que informaram as produções dos períodos anteriores às analisadas revelou a tentativa desses pesquisadores estabelecerem um exercício de interlocução com as tendências historiográficas internacionais. Se, por um lado, como salientam as autoras, percebe-se que o resultado de tais iniciativas parecem ter-se reduzido a um tratamento descritivo e pouco analítico, que em última instância revelou significativa dificuldade de compreensão do espaço da política. Por outro, a referida pesquisa possibilitou constatar a importância desse novo campo para a historiografia nacional, além da incorporação de novas fontes e objetos.

Não obstante a constatação do esforço dos profissionais brasileiros, torna-se imperioso admitir, segundo Capelato e Dutra, que mesmo os estudos portadores de maior eficácia empírica e metodológica, não conseguem superar as armadilhas inerentes às simplificações e demonstram uma efetiva dificuldade de aprofundamento teórico pertinente aos conceitos formadores da explanação do conhecimento histórico. Tal assertiva fundamenta-se no rastreamento da noção de representação e na instrumentalização do termo associada às teorias semiolingüísticas consolidadas nos anos 60 e vinculadas à lógica das articulações entre linguagem, símbolo, imaginário e representação. Na trilha dos suportes que embasaram teórica e metodologicamente as pesquisas no campo das humanidades, as autoras pontificam os encaminhamentos propostos por destacados pensadores como Marin, Castoriadis, Lefort, entre outros expoentes.

Nessa direção, a proposta de Capelato e Dutra termina intercruzando-se com as inferências implícitas no texto de Francisco J. C. Falcon, que se ocupa prioritariamente da discussão das matrizes teóricas que informam a construção do conceito de representações. Este, por sua vez, apropriadamente, antes de investigar as acepções das representações, propõe-se a pontuar a concepção do discurso histórico mediante a análise de distintas correntes historiográficas, mais precisamente, na perspectiva dos modernos e na dos pós-modernos. De um extremo ao outro, tende a sublinhar o trânsito do conceito: para esses últimos a representação figuraria como negação do conhecimento histórico, enquanto para os primeiros seria reconhecida como parte integrante do próprio discurso da disciplina. Enveredando pelo circunstanciamento dessa problemática no campo da história cultural, Falcon recupera usos e interpretações do conceito na historiografia atual. Assim, termina resgatando etimológica e cognitivamente acepções do termo e do conceito, ocupando-se das articulações entre representações, ideologia e imaginário, e também do mapeamento de algumas das principais obras dedicadas ao tema em questão.

Assim como Falcon, Helenice Rodrigues da Silva empenha-se na recuperação genealógica das representações e seus sentidos na disciplina histórica, debatendo a operacionalidade da noção de representação na esfera da historiografia francesa. Ao procurar acompanhar a trajetória na qual os estudiosos da história cultural e da história política foram atribuindo primazia ao conceito, ao longo da década de 1970, a autora alerta para a necessidade de se relativizar a importância da noção de representação na prática histórica. Nesse horizonte, ressalta que no universo das renovações teóricas e metodológicas processadas nessa área, a história das representações tendeu a firmar-se como complemento e nova orientação da história cultural, uma vez que significou, para os herdeiros da tradição dos Annales, a possibilidade de integração dos atores individuais ao social e histórico. Desse modo, como propõe Roger Chartier, o conceito permitiria a associação entre antigas categorias que a história social, a história das mentalidades e a história política mantinham separadas3. Em síntese, Silva procura evidenciar como a noção de representação, largamente utilizada em disciplinas como a sociologia e a psicologia (entre outras), tendeu a substituir o conceito de mentalidades na pesquisa histórica e de que forma viria a contribuir para a integração dos distintos domínios da disciplina.

Reportando-se às múltiplas facetas que o conceito implica, Ciro Flamarion Cardoso principia sua análise por intermédio de uma tentativa de perceber as motivações que informaram a denominada “virada cultural” na produção histórica da atualidade. Nesse sentido, detecta as implicações de três dos seus desdobramentos na esfera da nova história cultural4. Do seu ponto de vista, essas tendências tenderiam a inverter as premissas estruturais e explicativas do marxismo e dos Annales, terminando por promover a confecção de uma história cultural do social, em detrimento de uma história social da cultura.

Apesar de entender que as representações contribuem para a edificação de uma dada inteligibilidade do passado, Cardoso mostra-se temeroso em relação à crescente negação do realismo epistemológico, identificado em um número significativo de estudos na área das ciências humanas. Nessa direção, desnuda uma série de vícios que tem informado as pesquisas nessa área do conhecimento, analisa os pressupostos teóricos que fundamentam a obra de Roger Chartier e, posteriormente, debruça-se sobre um minucioso acompanhamento dos usos das representações nos horizontes da psicologia social.

Numa trilha similar, mas apresentando o tema do ponto de vista do sociólogo Norbert Elias, Jurandir Malerba analisa a apropriação que a história vem realizando da noção de representação. Considerando que essa questão deva ser deslocada para o campo da narratividade, o autor busca problematizar os procedimentos mais comuns nessa área. Assim, debate os ditames que orientam a indiscriminada utilização do conceito na historiografia contemporânea, reconduzindo a temática para uma síntese distinta das proposições mais recorrentes. Esse encaminhamento privilegia as articulações entre a teoria simbólica de Elias e a definição de habitus proposta por Pierre Bourdier.

Para Malerba, a teoria simbólica de Elias sugere uma leitura de representações que supera os limites circunstanciais da oposição maniqueísta entre o mundo real e o mundo representado. Nessa linha de argumentação, tal enfoque possibilita a incorporação do homem à natureza escapando de falsos dilemas, processados na edificação da teoria processual do conhecimento e da linguagem, de modo a permitir uma compreensão diferenciada do hábito social. Este, por sua vez, contempla a recuperação de visões da experiência de vida dos indivíduos em sociedade5.

Não menos relevantes são as assertivas de Lúcia Helena C. Z Pulino, Graciela Chamorro e Gustavo Blázquez. Enquanto Pulino equaciona o problema das representações em filosofia a partir da obra de Richard Rorty, Chamorro estabelece as possíveis articulações entre o referido conceito e a teologia, rastreando as representações de Deus na história, apontando as relações da teologia feminista com múltiplas formas do simbolismo (paterno e materno). Por seu turno, Blázquez aborda a maneira como a antropologia social tem-se relacionado com a noção de representação.

À guisa de conclusão, Jurandir Malerba reporta-se, por um lado, à proposta de alinhar possíveis conexões entre os textos que compõem a coletânea, respeitando as particularidades das análises propostas em cada um deles, e por outro, ao desconforto cunhado nas abordagens que tendem a limitar os efeitos das representações em toda e qualquer problemática. Oportunamente, acaba apontando os paradoxos de uma história que se propõe nova, mas enfrenta uma crise de “consciência” da própria disciplina. Para tanto, enfoca tantos os impasses teóricos enfrentados pela história como os problemas inerentes ao estatuto epistemológico da história cultural.

Curiosamente, as evidências ilustram o fato de que a abertura do diálogo da história com outras áreas do conhecimento, a conseqüente ampliação de seus objetos, o corpus documental e as estratégias metodológicas deflagraram aquela que poderíamos nomear como crise de identidade da disciplina e um intenso processo de fragmentação da mesma em múltiplas histórias, tomadas como eixo norteador da explicação sobre as contínuas transformações da sociedade moderna.

Por certo, as razões que motivaram o surgimento desse impasse teórico diante das constantes mutações do objeto histórico passam pela questão do narrativismo histórico. Mas, no contexto de tais transformações, a reflexão acerca das representações tornou-se providencial e seus aportes ganharam, cada vez mais, relevância e interesse por parte dos profissionais da área. Contudo, os excessos unilaterais detectados nas formas de interpretação histórica têm se circunscrito a modismos transitórios e efêmeros.

Sem dúvida, tais contingências explicitam a necessidade de se buscar soluções intermediárias para a abordagem das demandas mais urgentes da sociedade humana, suscitando paradigmas explicativos alternativos. Numa visão de conjunto, torna-se forçoso admitir que as restrições ao conceito de mentalidade propiciaram aos historiadores da cultura a busca de premissas alternativas àquelas assentadas na ambigüidade e na imprecisão, observadas nas articulações entre o mental e o social.

A nova história cultural, longe de tomar como objeto preponderante as interpretações dos expoentes filosóficos e as manifestações formais de cultura (como a arte e a literatura), demonstrou sua “estima” pelas práticas populares ou pelas manifestações das massas inominadas expressas nos rituais religiosos, crenças, festas e resistências cotidianas ao poder instituído.

No terreno da história social e política, o descontentamento com os modelos tradicionais impulsionou também a revisão de axiomas pautados por obnubilantes explicações globais. Desse modo, talvez a conjugação entre o poder e as representações venham a assinalar novos dispositivos de apreensão do saber histórico, sejam eles centrados no estudo do imaginário ou da simbologia política.

Por fim, não se deve furtar de proclamar que os resultados dessa coletânea foram plenamente satisfatórios. Ao superar os propósitos iniciais do projeto, com certeza esse volume se tornará uma obra de referência na esfera da produção historiográfica contemporânea.

Notas

1 Identidade nacional, imagens do poder, representações da política, espetáculos políticos, imagens e símbolos do progresso/modernidade/modernização/desenvolvimento capitalista, produção artística, veículos de propaganda política; instrumentos pedagógicos e meios de comunicação e imagens da cidades, são os temas diagnosticados pelo levantamento efetuado. CARDOSO, Ciro Flamarion e MALERBA, Jurandir (orgs.). Representações. Contribuições a um debate transdisciplinar. Campinas: Papirus, 2000, p. 247.

2 Entre as fontes mais citadas destacaram-se: jornais/revistas/pasquins/relatos jornalísticos; obras literárias/narrativas/crônicas/dramaturgia; memórias/diários/biografias/autobiografias/relatos de viagens; discursos/mensagens/manifestos/escritos políticos; depoimentos; iconografia; fotografia; correspondência; música; estátuas/monumentos/obras arquitetônicas/planos urbanísticos; filmes; álbuns; almanaques; objetos simbólicos/moedas, bandeiras, escudos, emblemas, cartazes; rádio/TV; publicidade; mapas e plantas. Idem, p.249.

3 Idem, pp. 82-83.

4 O autor as nomeia como “virada lingüística”, “virada para o interior” e “virada para exterior”, indicando os respectivos representantes de cada uma delas. Idem, p.11.

5 Idem, p. 218.

Sandra C. A. Pelegrini – Universidade Estadual de Maringá.

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Representações. Contribuições a um debate transdisciplinar | Ciro Flamarion Cardoso e Jurandir Malerba

Não tenho dúvida de que a publicação desta obra coletiva é oportuna ante o debate e as tendências narrativas observadas na historiografia. É oportuna também em razão da pouca importância dada ao tema pela comunidade de historiadores. Somente nos últimos anos essa comunidade despertou para esse aspecto, e ainda assim de forma tímida, apesar de as representações estarem presentes em todos os objetos de pesquisa e nas formas estruturantes das narrativas historiográficas. Decorre também desse aspecto a dificuldade momentânea de resenhar um livro que contém autores e textos com orientações temáticas e epistemológicas distintas. Na verdade, a obra já recebeu, em seu próprio conjunto, uma resenha do professor Malerba, o qual, na conclusão (p. 269-288), com o intuito de estabelecer a conexão do conjunto de ensaios, propõe um conjunto de idéias para além dos próprios textos. E aqui é necessário fazer-se uma primeira distinção: as representações como objeto histórico para a reconstituição do passado e as representações como objeto narrativo da análise historiográfica. Essa distinção é fundamental, pois ela implica em configurações metodológicas diferentes, as quais, não obstante, podem estar intercambiadas. Talvez o subtítulo do livro “Contribuição a um debate transdisciplinar” possa sugerir um encaminhamento nessa direção. Leia Mais

Famílias Abandonadas: Assistência à criança de camadas populares no Rio de Janeiro e em Salvador – séculos XVIII e XIX | Renato Pinto Venâncio

A infância como objeto de pesquisa dos historiadores só apareceu com o livro de Philippe Ariès, L’enfant et la vie familiale sous l’Ancien Régime (Paris: 1960). Na seqüência dos estudos relativos à criança, surge o interesse pela história das crianças enjeitadas ou abandonadas, como nos referimos atualmente.

Na década de setenta, refletindo a atenção que historiadores e principalmente historiadores-demógrafos davam ao tema da criança (abandonada ou não), foi publicado pela Societé de Démographie Historique um número consagrado ao novo campo de investigação que se abria: a história da infância. Leia Mais

Multidões em cena: propaganda política no varguismo e peronismo | Maria Helena Rolim Capelato

Conhecida pela sua larga produção intelectual, a profª. Maria Helena Capelato é autora de O Bravo Matutino, Imprensa e ldeologia: O Jornal ”O Estado de São Paulo”, (em co-autoria com Maria Lígia Prado), O movimento de 1932: A causa Paulista, (em co-autoria com Carlos Guilherme Mota), Imprensa e História do Brasil, e Os Arautos do Liberalismo: Imprensa Paulista 1920-l94. Como se pode notar, teve sua preocupação centrada nos anos 30 e em especial no Estado Novo e na análise da imprensa no período, e agora apresenta-nos mais este livro, que é um estudo sobre o varguismo e o peronismo.

Multidões em cena tem como objeto o estudo comparado entre o varguismo e o peronismo no tocante ao significado da propaganda política idealizada e posta em prática, tanto pelo Estado Novo (1937) como pelo Peronismo (1945-1955). Estes regimes, por sua vez, inspiram-se nos métodos de propaganda nazista e fascista, adaptados para a realidade histórica brasileira e argentina, pois, nesse período, estes países têm necessidades de projetar-se enquanto Estado-Nação, e dessa maneira, nada mais adequado do que inspirar-se nas nações ditas civilizadas, daí, a inter-relação de idéias que havia no período do entre-guerras nos países que adotaram políticas antiliberais. Leia Mais

Caminhos da História Ensinada – FONSECA (RBH)

FONSECA, Selva Guimarães. Caminhos da História Ensinada. Campinas: Papirus, 1993. Resenha de: VERÍSSIMO, Mara Rúbia A. M. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.13, n.25/26, p.277-282, set.1992/ago.1993.

Mara Rúbia A. M. Veríssimo – Professora de Metodologia do Departamento de Princípios e Organização da Prática Pedagógica da UFU.

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