A invenção do profissionalismo no futebol: tensões e efeitos no Rio de Janeiro (1933-1941) | Eduardo de Souza Gomes

Luciano do Valle
Luciano do Valle| Imagem: Ludopedio/Band

Apesar da inserção recente nas pesquisas historiográficas,2 o esporte vem se tornando um objeto de estudo rotineiramente utilizado pelos historiadores que visualizam neste fenômeno uma rica veia de possibilidades para compreender diversas manifestações sociais, culturais e econômicas. Esta obra resenhada, escrita pelo historiador brasileiro Dr. Eduardo de Souza Gomes se inclui nesse contexto ao utilizar o futebol para problematizar aspectos históricos ligados à profissionalização da modalidade esportiva no Rio de Janeiro (Brasil) e na Colômbia.

O livro está organizado em três capítulos, amparados por pressupostos metodológicos da história comparada.3 Neles, o autor aborda o processo de profissionalização do futebol na Colômbia e na cidade do Rio de Janeiro que, na época investigada, era a capital federal do Brasil e tinha influência na movimentação política e social ao nível nacional. Além disso, o autor ressaltou a impossibilidade de tratar a profissionalização no Brasil como um todo, visto as disparidades desse processo entre os estados brasileiros. A Colômbia, por sua vez, conforme o Gomes, possuiu um processo de profissionalização que abrangeu o país como um todo, facilitando tratar esse processo em âmbito nacional. Leia Mais

As ações de liberdade no Tribunal da Relação do Rio de Janeiro no período entre 1871 e 1888 | Carlos Henrique Antunes da Silva

Muito se discute atualmente sobre o papel do Poder Judiciário no Brasil. Em fins do século XIX, permearam as instâncias e as decisões judiciais ações cíveis cujo objeto era a liberdade de escravos. Sem os meios de comunicação de que hoje dispomos, ainda assim parte da sociedade estava atenta ao assunto. Para além da opinião pública e dos movimentos sociais de então, o trabalho que temos em mãos tem como ponto de partida um elemento bastante presente nas fontes utilizadas para o estudo da escravidão, mas nem sempre em evidência nas investigações relacionadas ao tema: o Estado. De que modo os agentes atuantes na estrutura judiciária do Império lidaram com os processos impetrados pela liberdade de homens e mulheres na condição de escravos? Que instrumental advogados e desembargadores operaram em suas argumentações e decisões?

O livro que nos coloca essas e outras questões é resultado de uma pesquisa de mestrado em História defendida na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) em 2015. Seu autor, Carlos Henrique Antunes da Silva, é formado em Direito, História e Filosofia, adentrando também a Sociologia do Direito neste estudo. O referencial teórico adotado por ele está na obra do sociólogo Pierre Bourdieu, em sua reflexão sobre as representações e relações simbólicas de poder. A noção “campo jurídico”, particularmente, busca dar a ver o movimento de definição do Poder Judiciário durante o Brasil Império, sem deixar de lado as especificidades da época, como a vigência da escravidão de africanos e descendentes. Leia Mais

Concebendo a liberdade: mulheres de cor, gênero e abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro | Camillia Cowling

A edição brasileira do livro “Concebendo a Liberdade: mulheres de cor, gênero e abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro” da historiadora inglesa Camillia Cowling, professora de história da América Latina da Universidade de Warwick, foi lançada em 2018 pela editora da Universidade Estadual de Campinas, São Paulo. O livro é uma tradução do original intitulado Conceiving Freedom: Women of Color, Gender, and the Abolition of Slavery in Havana and Rio de Janeiro, lançado em 2013 pela University of North Carolina Press e, desde 2010, partes da obra já vinham sendo divulgadas em publicações internacionais pela autora.

Cowling trouxe para o centro desta narrativa as histórias de vida (ou pelo menos parte das histórias) de duas mulheres libertas: Ramona Oliva e Josepha Gonçalves de Moraes. Elas transcorrem por toda a obra, desde a introdução, quando a autora nos transporta para os respectivos dias em que estas mulheres, a primeira em Havana, a segunda no Rio de Janeiro, entraram com pedido de custódia de seus filhos nas instâncias judiciais máximas de cada uma destas cidades: Ramona no Gobierno General em Havana em busca de libertar seus quatro filhos María Fabiana, Agustina, Luis e María de las Nieves, e Josepha no tribunal local de primeira instância e depois no Tribunal de Relação no Rio de Janeiro, um tribunal de apelação, em busca de liberta sua filha Maria. Ramona teve que enfrentar “um dia escaldante do verão caribenho de 1883” e Josepha, diferentemente da cubana, “provavelmente sentiu arrepios de frio […] enquanto caminhava pelas ruas da cidade [do Rio de Janeiro]”, em agosto de 1884, quando é inverno na cidade. (COWLING, 2018, p. 23) Leia Mais

Rio legal. Ensaios sobre uma cidade em movimento | David Cardeman e Rogerio Goldfeld Cardeman

Ao andar por cidades brasileiras, um observador atento perceberá edificações de diferentes épocas, formas, tamanhos e tipologias. Um urbanista poderá reconhecer que esta diversidade não é aleatória, mas sim resultado da sucessão de planos e regras vigentes em cada momento em cada região da cidade. E, na cidade do Rio de Janeiro, ninguém melhor do que David e Rogerio Cardeman para explicar os detalhes desta transformação ao longo do tempo, explicando a história do desenvolvimento urbano da cidade através das suas leis urbanísticas, arquitetônicas e construtivas.

O olhar apurado e o entendimento profundo dos autores sobre a evolução da regulação urbana na cidade do Rio de Janeiro nos permitem entender como a sucessão de planos e leis interferiram na forma edificada em todas suas nuances que, por sua vez, impactou retroativamente no desenvolvimento da cidade. Como surgiram os grandes embasamentos para automóveis? Os afastamentos frontais separando as edificações das calçadas? As varandas em balanço? As áreas de recreação nos condomínios? Ao contrário da imaginação popular, tais resultados formais não se devem necessariamente às decisões individuais de arquitetos ou incorporadores, e algumas das respostas são desvendadas no histórico legislativo da cidade. Leia Mais

Metrópole à beira-mar. O Rio moderno dos anos 20 | Ruy Castro

Terminei de ler Metrópole à beira-mar – o Rio moderno dos anos 20, de Ruy Castro, publicado pela editora Cia. das Letras em 2019.

Posso estar enganado, mas a impressão que o livro traz é a de que Castro se adiantou a provar que o Rio de Janeiro já era moderno antes de São Paulo e da Semana de Arte Moderna de 1922, antecipando-se, assim, às homenagens pelos 100 anos da dita Semana (para os distraídos, ocorrida em São Paulo em 1922). Leia Mais

Usos e sentidos no Patrimônio Cultural no Projeto Porto Maravilha, Rio de Janeiro | Leopoldo Guilherme Pio

1. Do Patrimônio cultural ao Porto Maravilha

O livro de Leopoldo Guilherme Pio se constituiu em uma contribuição importante para se pensar o patrimônio cultural, atualização e sua utilização no contexto das transformações urbanas ocorridas ao longo da última década na região central do munícipio do Rio de Janeiro.

Cabe o apontamento da situação específica desta cidade, sendo fortemente caracterizada como uma metrópole que se desenvolveu a partir de um incremento de suas potencialidades como polo de turismo e de demais eventos, neste caso, esportivos. Desta forma, buscou-se reforçar as estratégias para tornar o Rio de Janeiro como um centro atrator de negócios e atividades correlatas.

Nesta direção, o autor destacou a preocupação central de sua proposta que consistiu em compreender como a memória, contida nos patrimônios históricos, foi utilizada como recurso no contexto da estratégia de revitalização e modernização da região, a partir da proposta de desenvolvimento do Rio de Janeiro.

Tal processo ocorreu a partir da atribuição a cultura e ao patrimônio novas competências para revitalizar áreas degradadas, promovendo uma melhor qualidade de vida. Posteriormente, decidiu-se pelo foco na utilização da categoria patrimônio cultural como um instrumento de promoção do desenvolvimento econômico no interior da proposta do Porto Maravilha.

Para obter este intento, Pio (2017) se utilizou da categoria Patrimônio Cultural como elemento constituinte do patrimônio, presente na cidade do Rio de Janeiro desde os anos 1990, seja, por meio do o projeto do Corredor Cultural, seja com a proposta de 1 instalação do Museu Guggenheim, já sinalizando para o atual 2 momento, mesmo que timidamente. Neste ponto, Pio (2017) considera em seu livro, os termos “usos e sentidos” funcionando como ferramentas que classificam “os principais significados do patrimônio: o patrimônio como oportunidade econômica; como capital de inovação; como instrumento de gestão do espaço público e como símbolo de harmonia social e qualidade de vida”. (PIO, 2017, p.6)

O emprego do patrimônio como ferramenta para se pensar a imagem da cidade como elemento a ser comercializado, inseriu em uma dinâmica de mercado ao destacar pontos positivos e omitindo os negativos. No caso em questão, serão desenvolvidos os pontos positivos que passaram a ser valorizados nesta nova lógica de utilização do espaço urbano.

Tal processo é compreendido pelo autor como “patrimonialização, ou seja, a produção de processos que criam patrimônios, neste caso, na região em que se localiza o Porto Maravilha, em que se destaca o Circuito Histórico Arqueológico de Celebração da Cultura Africana, como representante deste processo.

O próprio autor salienta que a “organização do patrimônio como ramo fundamental da indústria de lugares e do turismo é um indicador desta mudança de paradigma … que se constituiu em mais um legado do que de recuperação de uma herança”. (PIO, 2017, p.59).

Este posicionamento ressaltou a presentificação do patrimônio e da patrimonialização acabando por conectar patrimônio e “marketing das cidades”.

Tal conexão permitiu perceber a aplicação do patrimônio como instrumento que pode funcionar como um “atrativo locacional” (CICCOLELLA, 1996), ou seja, um potencial a ser explorado, neste caso, o patrimônio histórico como uma oportunidade de negócios, como defende Pio (2017).

A partir das linhas gerais do autor, é possível salientar dois pontos relevantes como a implementação de uma proposta de city marketing, termo defendido por Vainer (1999) e Sanchez (2001) e a ênfase em um patrimônio, associado as classes populares, que adquire uma nova funcionalidade.

A primeira delas explica-se pelo fato destes projetos serem elaborados a partir de premissas do city marketing, ou seja, baseado na proposta que adotou o desenvolvimento econômico a partir da valorização de atrativos locacionais que uma cidade possua. No caso carioca, a área a ser “revitalizada”, ou utilizando os próprios termos de Pio (2017), a receber novos “usos” como parte da região portuária do Rio que convencionou-se denominar como Porto Maravilha.

Como pontos a serem desenvolvidos a partir da reflexão de Pio (2017), podemos desenvolver uma intensificação do city marketing e uma “revitalização” que explora uma área “marginal” que compõe uma região mais ampla que possui um projeto com uma perspectiva mais global.

A primeira delas consiste em uma adaptação do “city marketing” para uma área periférica da região central, discutida por Pio (2017) de forma inovadora no seu foco na dinâmica cultural como indutor de desenvolvimento na região do Porto Maravilha.

Esta linha pode ser um caminho valioso, mesmo ao ser aplicado em uma área que possui forte tradição associada a cultura negra como a Pequena Àfrica que passaram a se revalorizados, 3 evidenciando a possibilidade de estimular outras culturas e/ou grupos sociais que não possuem voz, a destoarem dos projetos de city marketing que predominantemente valorizam cultura erudita ou o setor de negócios.

Nesta direção, a discussão de Pio (2017) sinaliza para o reforço na valorização da cultura, neste caso, popular como caminho para se pensar estratégias alternativas para discutir formas de estímulo ao desenvolvimento econômico.

Já o segundo ponto, pensado de forma complementar ao primeiro, trata da revitalização de uma área periférica do centro carioca, suscitando duas questões: o termo “revitalização”, colocado como se não existe vida anteriormente e que daquele momento em diante, tivesse “recuperado” a vida, ou como destacou ABREU (1998), pretendeu-se valorizar uma memória urbana, por meio da “valorização atual do passado” como observado na reflexão de Pio (2017).

Assim, a busca por valorizar o passado, representado na memória urbana, defendida por Abreu(1998), como forma de reforçar uma identidade, neste caso, aquela relacionada a cultura negra, que hoje, por exemplo, instalou-se nos bairros em questão, Saúde, Gamboa e Santo Cristo, como locais símbolos de uma cultura negra que foi recuperado, mas não se criou uma vida nova, mas reforçar a memória urbana relacionado a cultura negra que hoje se tornou um 4 local de valorização e de resistência deste grupo.

Desta forma, a reflexão de Pio (2017) contribui consideravelmente tanto por se referir a oferta de questões quanto na proposição de novos caminhos para discutir o patrimônio, sua re-elaboração e em sua inserção de uma lógica de “comércio” das cidades e de seus espaços diversos.

Notas

1 Consistiu em um conjunto de iniciativas, criadas na região central carioca no decorrer dos anos 1980 até o início dos anos 1990, em que foi incentivada a revitalização desta por meio da utilização de seu patrimônio artísticos, arquitetônico e cultural.

2 Foi uma proposta de revitalização da região portuária da cidade, criada no final dos anos 1990, por meio da implementação de equipamentos culturais como museus, centros culturais e congêneres que sejam indutores de desenvolvimento no entorno da região em que são instalados.

3Esta área foi uma área que possui uma tradicional ocupação de população negra a partir do século XVIII e que continuou no bairro, mas sem valorizar esta tradição, sendo está recuperada nas duas últimas décadas, pela ação do movimento negro.

4 Representado por um passado, que vai desde um local de chegada de escravos negros até locais de interação e de resistência de negros e de sua cultura.

Referências

ABREU, Maurício. Sobre a memória das cidades in Revista da Faculdade de Letras – Geografia, 1 ª série, volume XIV, Porto, p.77-97, 1998.

CICOLLELA, Pablo. Las metrópoles latino-americanas en el contexto de la globalizacion: las mutaciones de las áreas centrais in Para Onde – UFRGS, Porto Alegre, 9 (1), p.01-09, janeiro – julho de 2015.

SANCHEZ, Fernanda. A reinvenção das cidades na virada do século: agentes, estratégias e escalas de ação política in Revista Sociologia e Política, Curitiba, 16, p.31-49, junho de 2001.

VAINER, Carlos. Pátria, mercado e mercadorias – notas sobre a estratégia discursivas do planejamento estratégico urbano in Anais dos VIII Encontro Nacional da ANPUR, Natal, 1999.

Fábio Peixoto – Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais. E-mail: [email protected]


PIO, Leopoldo Guilherme. Usos e sentidos no Patrimônio Cultural no Projeto Porto Maravilha, Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Gramma, 2017. Resenha de: PEIXOTO, Fábio. O patrimônio cultural no âmbito do porto maravilha: novos usos de “antigos” lugares. Urbana. Campinas, v.12, 2020. Acessar publicação original [DR]

 

Concebendo a liberdade / Camillia Cowling

O livro de Camillia Cowling publicado nos Estados Unidos, em 2013, e recentemente traduzido para o português já se constitui uma leitura obrigatória para historiadoras, historiadores e demais pessoas interessadas em conhecer aspectos da luta de pessoas escravizadas na Diáspora. Em Concebendo a liberdade a autora apresentou uma pesquisa comparativa entre Havana (Cuba) e Rio de Janeiro (Brasil) na qual “mulheres de cor” apareciam na linha de frente da luta por liberdade legal para elas próprias e suas crianças nas décadas de 1870 e 1880.

Ao prefaciar a obra Sidney Chalhoub foi muito feliz ao lembrar a acolhida que o livro de Rebeca Scott a Emancipação Escrava em Cuba teve no Brasil, ainda na década de 1980, evidenciando o interesse do público brasileiro em saber mais sobre este processo em Cuba, colônia Espanhola que assim como o Brasil e Porto Rico foi um dos últimos redutos da escravidão nas Américas.

Mais de três décadas desde a tradução do livro de Scott, a pesquisa de Cowling chegou ao Brasil em um momento que embora já possamos contar com vários estudos de referência para o conhecimento a respeito da escravidão e da liberdade muitos lacunas ainda estão por serem preenchidas, a exemplo, das especificidades da experiência das mulheres – escravizadas, libertas e “livres cor”.

Felizmente, o alerta das feministas negras, especialmente a partir da década de 1980 de que as mulheres negras tinham um jeito específico de estar no mundo ganhou novo impulso nos últimos anos, notadamente, devido ao processo que resultou na Primeira Marcha Nacional de Mulheres Negras, ocorrida no Brasil, em 2015, cujos desdobramentos já podem ser percebidos na sociedade brasileira e tem inspirado pesquisadoras e pesquisadores no desafio de reconstituir esse passado.

Inserida no campo da história social e utilizando uma escala de tempo pequena para descortinar a agência feminina negra, Cowling esteve atenta também para questões mais amplas do período investigado como às conexões atlânticas entre Cuba e Brasil no contexto da “segunda escravidão”. Isso permite que a leitora e o leitor possam notar que embora tivessem optado por um processo de abolição gradual da escravidão ambos vivenciaram processos paralelos e distintos um do outro.

A obra foi dividida em três partes e subdividido em 8 capítulos. Neste texto destaco alguns aspectos, dentre vários outros, que chamaram minha atenção de maneira especial. Primeiramente, saliento que Cowling conseguiu remontar o itinerário de duas libertas tornado visíveis as marcas deixadas por elas tanto em Havana como no Rio de Janeiro, de modo que personagens tradicionalmente invisibilizadas pela documentação e, até mesmo, pela historiografia tiveram seu ponto de vista descortinado nas páginas de seu livro.

Os fragmentos da experiência de Romana Oliva e Josepha Gonçalves de Moraes remontados pela autora é a demonstração de um esforço investigativo de fôlego e bem sucedido. As questões levantadas e o exercício de imaginação histórica da pesquisadora tornaram possíveis que a partir do ponto de vista dessas mulheres possamos saber como pensavam várias outras de seu tempo e compreender os sentidos de suas escolhas, bem como daquelas feitas por seus familiares, escrivães, curadores e integrantes do movimento abolicionista.

A liberta Romana que comprara a própria liberdade um ano antes de migrar para Havana, em 1883, encaminhou uma petição dirigida ao governo-geral de Cuba reivindicando a liberdade de suas 4 crianças, María Fabiana, Agustina, Luis e María de las Nieves que estavam em poder de seu ex-senhor, Manuel Oliva. Quase um ano depois, foi a vez da liberta Josepha dar início a uma ação de liberdade na cidade do Rio de Janeiro com o objetivo de retirar sua filha, Maria, ingênua, com apenas 10 anos, do domínio de seus ex-senhores José Gonçalves de Pinho e sua esposa, Maria Amélia da Silva Pinho.

Assim como outras tantas pessoas, Romana e Josepha eram migrantes que a despeito das dificuldades das cidades, usaram a seu favor as possibilidades que as mesmas ofereciam na busca pela liberdade, além disso, como ressaltou a autora as chances de uma pessoa escravizada conseguir a liberdade morando nas áreas urbanas eram maiores do que aquelas que moravam nas áreas rurais.

De acordo com Cowling as duas libertas se apegaram as brechas da lei e fizeram omesmo tipo de alegação para contestar a legitimidade do domínio senhorial. EnquantoRomana declarou que sua filha era vítima de negligência e abuso sexual, Josepha alegou que suas crianças não estavam recebendo educação. Foi com base nessas denúncias que os senhores foram acusados de maus tratos, o que implicava na perda do domínio sobre as mencionadas crianças, conforme a legislação de Cuba e do Brasil respectivamente determinava.

No livro de Cowling, a leitora e o leitor interessado no tema pode verificar que as perguntas feitas a documentos como petições, ações judiciais, correspondências, jornais, obras literárias, imagens e legislação explicitam que as mulheres escravizadas, libertas e “livres de cor” sempre estiveram no centro da luta por liberdade legal. Isso porque as noções de gênero foram determinantes para o modo como elas vivenciaram a escravidão e consequentemente influenciaram em suas escolhas na luta pela conquista da manumissão. Além disso, especialmente nas décadas de 1870 e 1880, elas que sempre estiveram na linha de frente das disputas judiciais foram colocadas ainda mais no centro do processo da abolição gradual da escravidão.

As Romanas e as Josephas foram muitas nas duas cidades portuárias investigadas pela autora e com o objetivo de conseguir a própria liberdade e de suas crianças, elas se apegaram a argumentos legais tomando como base a legislação, como a Lei Moret de 1870 e a Lei do Patronato de 1880, em Cuba; e a Lei do Ventre Livre de 1871, no Brasil, mas também se apegaram a argumentos extralegais baseados em valores culturais como o“sagrado” direito a maternidade, apelando para piedade e a caridade das autoridadespara os quais levaram suas demandas de liberdade para serem julgadas.

Para Cowling, sobretudo, a retórica da maternidade era tão forte que era utilizada tanto por mulheres ao reivindicarem a liberdade de suas filhas e filhos como nos casos em que eram os filhos que buscavam libertar suas mães, e mesmo, nos casos em que os pais apareceram junto com as mães tentando libertar suas crianças, a opção era por colocar a maternidade no centro.

Não poderia deixar de trazer para este texto aquele que a meu ver é um dos pontos mais fortes da obra. Trata-se da opção da autora de enfrentar o tema da violência sexual contra “mulheres de cor”, aspecto da vida de muitas dessas personagens, ainda pouco explorado pela historiografia brasileira, seja devido ao sub-registro dessa violência na documentação disponível que era escrita em sua maioria por homens da elite e autoridades muitos dos quais também proprietários de cativas, seja devido à própria tradição de priorizar outros aspectos da experiência das pessoas.

Para a autora a tradição de violar o corpo de “mulheres de cor” era naturalizada entre os senhores e os homens da lei tanto que os primeiros não viam qualquer impedimento à prática de estuprá-las. Por isso mesmo, a falta de proteção extrapolava a condição de cativas e nem mesmo a liberdade legal era garantia de proteção ou reparação contra aqueles que as forçassem a ter relações sexuais com eles ou com outros (muitas escravizadas eram forçadas a prostituição por suas proprietárias e proprietários).

No entanto, se por um lado, ao se depararem com denúncias de violência sexual as autoridades geralmente posicionavam-se a favor dos agressores, inclusive responsabilizando as próprias “mulheres de cor”, prática que tinha a ver com a imagem que esses homens de maneira geral faziam desse grupo social considerado por eles como lascívias e corruptoras das famílias da elite. Por outro, ao procurar à justiça para denunciar a violência sexual elas explicitavam sua própria compreensão sobre si mesmas. Ao fazer isso Romana e várias outras estavam dizendo que acreditavam ter conquistado para si e para suas filhas o direito de poder dizer não para um homem com quem não quisessem fazer sexo.

Cheguei ao epílogo da obra convencida por Cowling de que embora Romana e Josepha tenham vivido em lugares diferentes e nem se quer se conhecessem, caso tivessem tido a oportunidade de se encontrar naqueles anos cruciais de suas vidas, elas teriam muito que conversar. Inevitavelmente suspeito ainda que várias mulheres negras do século XXI que tiverem acesso as minúcias do itinerário das personagens trazidas no trabalho terão a sensação de que também poderiam participar da conversa.

Por fim, acredito que as questões levantadas ao longo da obra sob vários aspectos servirão de inspiração para historiadoras e historiadores empenhados na reconstituição tanto quanto possível da vida de mulheres escravizadas, libertas e “livres de cor”, bem como de seus familiares e das pessoas com as quais elas se aliaram na construção de outros tantos processos coletivos de luta por liberdade legal.

Karine Teixeira Damasceno – Pós-Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura (PUC-Rio), Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).


COWLING, Camillia. Concebendo a liberdade: mulheres de cor, gênero e a abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro. Tradução: Patrícia Ramos Geremias e Clemente Penna. Campinas: UNICAMP, 2018. 440p.. Resenha de: DAMASCENO Karine Teixeira. “Mulheres de cor” no centro da luta por liberdade legal em Havana e no Rio de Janeiro. Canoa do Tempo, Manaus, v.11, n.2, p.294-297, out./dez., 2019. Acessar publicação original.

A Ilustração (1884-1892): Circulação de Textos e Imagens entre Paris, Lisboa e Rio De Janeiro | Tania Regina de Luca

A Nova História Cultural tem proposto abordagens com foco na mediação e nas trocas culturais e simbólicas, ocorridas desde o século XVI até os dias atuais, entre a Europa e o continente americano, sobretudo na região do cone sul. Neste sentido está a obra A Ilustração (1884-1892): circulação de textos e imagens, entre Paris, Lisboa e Rio de Janeiro que expõe a intensa relação estabelecida entre Paris, Lisboa e Rio de Janeiro a partir do entendimento da difusão cultural cujo polo irradiador era a França, país mundialmente conhecido por manter refinados modos, costumes e progressos técnicos. O objetivo do livro é analisar sistematicamente o periódico e demonstrar a lógica da circulação através do Atlântico, além dos projetos culturais e políticos que envolveram a revista e seu principal responsável, Mariano Pina (1860-1899).

O estudo da publicação esteve circunscrito num projeto maior de pesquisa, intitulado “Circulação Transatlântica dos Impressos – a globalização da cultura no século XIX”, coordenado por Jean-Yves Mollier (Université Saint-Quentin Yvelines) e por Márcia Abreu (UNICAMP), com objetivo em investigar impressos que circularam entre Inglaterra, França, Portugal e Brasil no período de 1789 a 1914, recorte inspirado no clássico livro de Eric Hobsbawm (1917-2012), A Era dos Impérios (Editora Paz e Terra, 2012). O livro de Tania Regina de Luca (Unesp – Câmpus de Assis) abordou o periódico a partir da perspectiva de fonte e objeto, ou seja, as análises são realizadas levando em conta o aspecto diacrônico, que assenta o periódico na ótica da história da imprensa, e sincrônico, extraindo evidências e diálogos entre os agentes dos impressos e as publicações contemporâneas. Ademais, a mobilização de A Ilustração contribuiu ricamente para demonstrar novo e instigante modo de manuseio das fontes periódicas: ambos os eixos puderam ser vistos sob o ponto de vista transnacional, de forma a demonstrar como a revista estabeleceu relações culturais e econômicas com outras publicações do Brasil e de países europeus, ponto, aliás, destacado por Márcia Abreu no prefácio. Leia Mais

Cartografias da cidade (in)visível: setores populares, cultura escrita, educação e leitura no Rio de Janeiro imperial – VENÂNCIO et al (RHHE)

VENÂNCIO, Giselle; SECRETA, Maria; RIBEIRO, Gladys. Cartografias da cidade (in)visível: setores populares, cultura escrita, educação e leitura no Rio de Janeiro imperial. Rio de Janeiro: Mauad X: Faperj, 2017. Resenha de: SILVA, Giuslane Francisca da. Revista de História e Historiografia da Educação. Curitiba, v. 2, n. 5, p.234-239, maio/agosto de 2018.

A obra Cartografias da cidade (in)visível: setores populares, cultura escrita, educação e leitura no Rio de Janeiro imperial é organizada por Giselle Venâncio, Maria Secreta e Gladys Ribeiro. Está dividida em duas partes e é composta por um total de onze textos escritos por pesquisadores de instituições distintas.

Cada texto traz abordagens inovadoras, visto que resgatam aspectos da cidade do Rio de Janeiro, muitas vezes relegados pelos pesquisadores, ao mesmo tempo em que desconstroem a ideia de que as camadas populares estavam distanciadas ou mesmo excluídas do mundo letrado. Para tanto, “cartografar um Rio de Janeiro ainda invisível” (SECRETO; VENANCIO, 2017, p. 9) constitui o objetivo central da obra.

A partir de fontes como os periódicos, os autores mostram que muitos populares na cidade do Rio de Janeiro Imperial tinham acesso à cultura escrita. Ampliando os sujeitos de suas pesquisas, os autores demonstram que escravos, forros, migrantes pobres, estiveram de alguma forma expostos a cultura escrita. É possível conjecturar que casos assim podem ter ocorrido em outras cidades também.

O livro está dividido em duas partes, a primeira delas, “Usos populares da leitura e escrita”, reúne quatro textos em torno dessa temática. A segunda parte, “Práticas educativas de populares no Rio de Janeiro oitocentista”, agrega um total de sete artigos. Para uma melhor explicitação do livro como um todo, realizo uma breve análise de cada um dos textos.

No primeiro texto, “Em primeira pessoa”, de Giselle Venancio, a autora vai analisar a carta que a liberta, Maria Rosa, escreveu à Princesa Isabel na ocasião de seu aniversário quando era comum alforriar alguns escravos. A carta assinada por Maria Rosa solicitava à Imperatriz que interviesse junto à Câmara Municipal para que sua filha, Ludovina, que era mãe de três filhos, fosse alforriada. Os dados que a autora levantou demonstram que escravos e libertos eram alfabetizados e não muito raro investiam também na formação de seus filhos.

No segundo capítulo, “Posta em cena: educação moral e estética e heterogeneidade social e teatro oitocentista”, cujas autoras são María Secreto e Viviana Gelado, a abordagem recai sobre o letramento popular e/ou negro na cidade do Rio de Janeiro, a partir de um ângulo não muito casual: o teatro, visto como mecanismo de educação moral e estética do público carioca.

Segundo as autoras, não sendo o escravo doméstico e especialmente o urbano, almejado pela cidade das letras, via no teatro a chance de depreender uma moral pragmática, assim como também lições de retórica e boas maneiras que “poderiam coadunar para desobstruir o improvável caminho da ascensão social dentro dos limites jurídicos impostos” (SE-CRETO; GELADO, 2017, p. 44-45).

Em “Saber ler, contar e poupar: reflexões entre economia popular e cultura letrada no Rio de Janeiro, 1831/1864”, de Luiz Saraiva e Rita de Cássia Almico, os autores partem de um consenso da historiografia brasileira, o de que as camadas mais baixas da sociedade teriam tido acesso limitado ao mercado financeiro, além do que a baixa circulação financeira teria restringido os trabalhadores pobres e escravos dos conhecimentos mais “sofisticados no âmbito da economia e de uma monetarização crescente” (SECRETO; GELADO, 2017, p. 49), a exemplo do que aconteceu no Rio de Janeiro no decorrer do século XX. Partindo desse ponto, os autores apresentam evidências de um maior protagonismo das camadas populares em atividades ligadas aos setores financeiros, destacam ainda o impacto dessas atuações na economia da cidade.

A partir de anúncios de jornais, os autores levantaram a hipótese de que havia um mercado de bens financeiros e que poderia ser usado por setores populares. Ressaltam também a importância da economia popular para a cidade.

Carlos Eduardo Villa, em “Escrever como curso de transação dos pequenos agentes do Rio de Janeiro na metade do século XX”, parte de dados cartoriais e evidencia que a cultura escrita aumentou consideravelmente ao longo do século XIX, o que leva crer que houve um aumento também dos grupos alfabetizados. Outra defesa do autor é que o aumento de trabalhadores, que ofertavam seus serviços nos jornais que circulavam na cidade, permite afirmar também que houve um incremento da cultura escrita entre os populares.

O texto “Ler, escrever e contar: cartografias da escolarização e práticas educativas no Rio de Janeiro oitocentista”, de Alessandra Shueler e Irma Rizzini, abre a segunda parte do livro. Nele, as autoras trazem questões ainda pouco debatidas e/ou conhecidas pelos historiadores, pois afirmam que a população pobre e seus filhos, assim como os negros, compunham o grupo escolar da cidade, isto é, frequentavam escolas e que, portanto, uma parcela de populares era alfabetizada.

As pesquisas das autoras contrariam uma ideia durante muito tempo hegemônica na historiografia, a de que não havia escolas noturnas e ensino primário voltado ao atendimento do público trabalhador, além de desmitificar a clássica afirmação de que grande parte da população brasileira no Brasil oitocentista era analfabeta, como se vê, essa não é a realidade da cidade do Rio de Janeiro. O trabalho dessas autoras e alguns outros desconstroem totalmente essas ideias.

Em “Educação no Rio de Janeiro joanino nas páginas da Gazeta do Rio de Janeiro: espaços abertos para a mobilidade social”, Camila Borges da Silva numa perspectiva que se aproxima do artigo anterior, analisa o formato dos espaços educacionais durante a presença da Corte no Brasil. Ela explora também como as aulas noturnas abriam condições de ascensão social às camadas intermediárias da sociedade, formadas em sua maioria por pardos, mulatos e portugueses pobres (SILVA, 2017).

Jonis Freire e Karoline Karula, em “Camadas populares e higienismo no Rio de Janeiro em fins dos anos de 1870”, analisam um grupo social composto por alunos que frequentavam a Escola Noturna da Lagoa, na ci-dade do Rio de Janeiro, no final da década de 1870. Nessa escola foram ofertadas conferências sobre higiene popular, o curioso é que grande parte do público que frequentava essas conferências era composto por alu-nos dessa instituição. As autoras, levando em consideração o fato de que essas conferências ocorriam nos dias em que não havia aula, afirmam que é muito provável que esses alunos iam porque o assunto lhes interessava.

Em “Cidade solidária: beneficência educacional no cotidiano popu-lar da Corte Imperial”, de Marconni Marotta, discute-se a instrução popu-lar financiada por associações, com destaque para a Sociedade Jovial e Ins-trutiva. Aponta também algumas políticas públicas voltadas para a educa-ção primária das camadas populares.

No texto “Aulas do Comércio: mundo da educação versus mundo do trabalho livre e pobre na cidade do Rio de Janeiro”, Gladys Sabina Ribeiro e Paulo Cruz Terra analisam as aulas do Comércio e o mundo do trabalho na cidade do Rio de Janeiro. Eles enfatizam também as transformações sofridas pela instituição a partir da data de sua fundação até a Reforma de 1854.

Tomando uma instituição de ensino como enfoque de seu trabalho, Alexandro Paixão, em “A educação popular no Rio de Janeiro oitocentista: o caso do Liceu Literário Português (1860-1880)”, discute os primeiros anos do Liceu Literário Português do Rio de Janeiro.

A presente instituição foi fundada no ano de 1868 sob os auspícios de alguns membros do Gabinete Português de Leitura e tinha por objetivo atender os ideais de “’comunidade’ relacionados à questão da cultura por-tuguesa, filantropia e instrução popular” (PAIXÃO, 2017, p. 215) no Rio de Janeiro. Foi talvez a primeira instituição na capital do Império a oferecer cursos noturnos gratuitos de instrução primária.

O Liceu também oferecia aulas de comércio para jovens e adultos que se mostrassem interessados na aprendizagem e no trabalho, logo em seguida passava a compor a classe caixeiral, muito comum naquele mo-mento. Entre os anos de 1868 a 1884, o Liceu formou cerca de 6.500 alu-nos.

O autor destaca a fundação de uma escola noturna que atendia jo-vens e adultos que não podiam frequentar escolas em outros horários. A escola era mantida pelo Gabinete Português. Há também a citação de ou-tra instituição, o Collegio Victorio da Costa, com o externato para meninos pobres, de propriedade de um dos membros do gabinete.

O último texto “Pelos caminhos da liberdade: sujeitos, espaços e prá-ticas educativas (1880-1888)”, Alexandra Lima da Silva e Ana Chrystina Mignot abordam as iniciativas de educação de escravos e libertos, bem como ressaltam o papel do Centro Abolicionista Ferreira de Menezes, que foi criado por funcionários do jornal Gazeta da Tarde e que era, então, dirigido por José do Patrocínio, uma importante figura dentro do movi-mento abolicionista.

Essa perspectiva, defendem as autoras, alarga a compreensão sobre a educação de cativos e libertos para além das escassas escolas que exis-tiam Brasil afora. O Centro Abolicionista, além de abrir e manter escolas primárias noturnas, promovia outras atividades como festas, espetáculos teatrais, musicais etc.

Através da análise de diversos periódicos que circulavam na cidade, as autoras encontraram várias escolas gratuitas que instruíam “menores e adultos livres, libertos e escravos, sem distinção de cor, nacionalidade ou religião” (SILVA; MIGNOT, 2017, p. 245).

Ao analisarem as ações do Centro Abolicionista Ferreira de Menezes, as autoras trouxeram à tona nomes como José do Patrocínio, José Ferreira de Menezes, Israel Soares, dentre outros, que compunham o quadro dos membros do movimento abolicionista. Ressaltam também que figuras como essas, ao escreverem em jornais, pretendiam conquistar a simpatia das elites para benefício de suas causas. No entanto, escreviam também para muitos libertos e descendentes de escravos que possuíam acesso a esses escritos.

Os textos que compõem a obra discutida aqui, com uma linguagem clara e objetiva, levantam questionamentos e desconstroem muitos mitos que se firmaram na historiografia brasileira, no caso específico, o de que as camadas populares no oitocentos estiveram alheias à cultura escrita, ou que sequer entendiam o valor da educação. É justamente isso que os textos buscam desmistificar ao mostrar que havia escolas noturnas, muitas delas mantidas por associações de dentro do movimento abolicionista. Tais escolas eram voltadas ao atendimento de trabalhadores, escravos e libertos, consequentemente uma parcela significativa de populares estavam inseridos no universo da cultura escrita e que, portanto, eram alfabetizados.

Giuslane Francisca da Silva – Doutoranda em Educação na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Brasil). Contato: [email protected].

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“Não tá sopa”: sambas e sambistas no Rio de Janeiro, de 1890 a 1930 – CUNHA (Tempo)

CUNHA, Maria Clementina Pereira. “Não tá sopa”: sambas e sambistas no Rio de Janeiro, de 1890 a 1930. Campinas: Unicamp, 2016. Coleção Históri@ Illustrada, Resenha de BRASIL, Eric. “Muitos caminhos até chegar ao samba”. Tempo v.23 no.2 Niterói mai./ago. 2017.

Quantos gêneros musicais podem ser tão identificados a uma nacionalidade quanto o samba no Brasil? O próprio termo samba tem remetido ao país nos mais variados lugares do mundo desde meados do século XX. Samba, Brasil, brasilidade, juntamente com carnaval, futebol e sensualidade, têm comumente andado lado a lado no imaginário global. Meios de comunicação, senso comum, as mais variadas produções artísticas e intelectuais sedimentaram tais associações ao longo do último século. A própria atuação, performance, memória e práticas culturais de sambistas por décadas vêm valorizando e ressignificando as relações entre o gênero musical e a ideia de nação.

Essa construção tornou-se tão forte e eficaz com o avançar do século XX que mesmo a produção acadêmica sobre a história do samba e seus agentes recorrentemente corroborou de forma acrítica seu caráter de símbolo nacional. Outras vezes silenciou seus conflitos e disputas internas, fortalecendo a percepção da história do samba como unívoca e que teria trilhado um caminho linear desde o período da escravidão até os dias atuais. A exceção mais comum dessa leitura harmoniosa dos caminhos do samba esteve nos debates sobre sua origem, local de nascimento “autêntico”: Rio ou Bahia? Morro ou asfalto? Zona portuária ou Estácio?

O novo livro de Maria Clementina Pereira Cunha, “Não está sopa”: samba e sambistas no Rio de janeiro, de 1890 a 1930 busca justamente enfrentar toda essa cultura histórica que tendeu a simplificar e homogeneizar a história do gênero e de seus agentes. Realmente, não é sopa enfrentar um tema tão arraigado no senso comum e nas afetividades populares brasileiras. Mas a autora não foge à briga, e seu livro é um ótimo exemplo da constante necessidade de analisarmos sentidos, possibilidades, aspirações, projetos, rivalidades, tensões, conflitos e alianças costurados na experiência urbana por homens e mulheres que precisaram dialogar e enfrentar sujeitos e grupos que defendiam perspectivas distintas.

Em “‘Não está sopa’”, a autora executa uma verdadeira aula de como realizar uma história social da cultura. Seu objetivo não é simplesmente caracterizar formas culturais, tipos de instrumento, danças ou ritmos, nem mesmo narrar fatos curiosos sobre cada personagem que frequentou rodas de samba. Muito pelo contrário, o objetivo central é compreender os sentidos criados e as escolhas feitas pelos sujeitos sociais que participaram dessas rodas. A análise recai sobre a experiência social de cada um deles, sempre levando em consideração contatos, redes, estratégias e caminhos, não apenas no momento da performance cultural, mas principalmente no restante do ano – nas disputas por emprego e moradia, nas relações familiares e religiosas, no conflituoso convívio com as forças policiais e autoridades republicanas. Nas palavras da autora, o foco está na

[…] vida cotidiana dos participantes e frequentadores dessas rodas [de samba], suas percepções e comportamentos em circunstâncias determinadas. E, naturalmente, nas escolhas, nas disputas, nos valores compartilhados entre os vários grupos, nas relações entre esses indivíduos especiais e a multidão de anônimos que conviviam nos bares e cafés, cortiços, terreiros ou, eventualmente, nas cadeias. (p. 86)

O carnaval, as rodas de samba, as letras, as músicas e os instrumentos são portas de entrada para encontrarmos personagens complexos e historicamente relevantes para nosso entendimento, tanto da história do gênero quanto da própria vida cotidiana dos trabalhadores pobres da cidade do Rio de Janeiro entre 1890 e 1930.

O recorte cronológico em si já demonstra a preocupação da autora com as diferenças mais do que com os consensos, com a diversidade mais do que com a homogeneidade. Esse período foi escolhido justamente por permitir o estudo das variadas possibilidades estéticas, artísticas, musicais que se chocavam nas ruas da capital federal. Estudar o período entre a última década do século XIX e as três primeiras do século XX permite, segundo Cunha, compreender o processo liderado por “indivíduos pobres, em sua maioria negros, sem o glamour que a posteridade lhes atribui” (p. 12), composto por uma musicalidade variada que só depois de algumas décadas levaria ao “samba moderno”.

Para tal, as fontes foram reunidas em mais de 10 anos de pesquisa. A autora explica que seu método principal consistiu em confrontar os processos criminais com os dados biográficos dos sujeitos. Esse método é complementado pela análise de crônicas, literatura, jornais, depoimentos, músicas e imagens (p. 13).

Os dois últimos tipos de fontes citadas, músicas e imagens, são fundamentais no desenvolver do livro, tanto por seu carácter analítico quanto por possibilitar ao leitor um relance vívido da análise histórica que vem sendo construída por Cunha. O livro, por ser em formato digital (Epub-2 ou Epub-3), vem recheado de quase duas centenas de imagens, que podem ser abertas e contempladas pelo leitor, e por mais de 40 gravações originais, muitas delas nas vozes dos próprios personagens cujas trajetórias são analisadas nos quatro capítulos.

Esses recursos audiovisuais transformam a leitura em uma experiência agradável e complexa, ajudando na imersão do leitor na temática estudada. Tais recursos são bem explorados pela autora – cada imagem e música se encaixam no texto, sempre inseridas em momentos que contribuem para a leitura e a compreensão dos argumentos do livro, e não apenas como exemplos ilustrativos. Como fica claro logo na introdução, a autora escolhe reduzir o número de citações e referências bibliográficas, o que torna o texto mais dinâmico – mesmo que dificulte a identificação de alguns debates e críticas presentes no texto.

O livro apresenta quatro capítulos, além da introdução, de fácil leitura. O Capítulo 1, “Uma questão de berço” (p. 18), tem como objetivo principal questionar as “origens” mais comuns atribuídas ao samba. Caracteriza com maestria que os debates sobre a origem do samba são estéreis e pouco, ou nada, têm a oferecer para o entendimento do gênero e de seus agentes; consegue deixar claro para os leitores que os debates acerca do lugar de “nascimento” do samba falam muito das disputas entre grupos coevos, e que é importante pensarmos justamente sobre os motivos que levaram a tais “origens” serem defendidas por determinados grupos. Busca também um debate sobre o termo “Pequena África”, cunhado por Heitor dos Prazeres, e como a história social pode relativizar seu uso. Por meio de fontes policiais, judiciais e de censos, busca caracterizar a região em sua multiplicidade, e não apenas como um espaço negro.

O Capítulo 2, “Gente da lira” (p. 54), analisa as relações entre a atuação policial e a diversidade racial, os padrões demográficos e habitacionais das áreas centrais do Rio de Janeiro, especialmente na freguesia de Santana. Desenvolve mais detalhadamente a análise da região popularmente conhecida como “Pequena África”, comprovando ser um espaço muito mais variado e complexo do que a expressão de Heitor dos Prazeres denotaria. Ao analisar a demografia, os crimes e a ação policial em Santana, a autora é capaz de compreender os padrões e motivos de prisão, os espaços de moradias, convívio e rivalidade. Conclui que, em Santana, a ação policial esteve voltada para o controle social, mais do que para a repressão a crimes, como assassinatos e roubos (p. 59), revelando a preocupação das forças republicanas em manter essas regiões sob o signo da “ordem”.

Os Capítulos 3, “Gente de fora” (p. 94), e 4, “Da gema” (p. 150), apresentam estruturas e estratégias semelhantes e são os melhores do livro. Ambos têm como objetivo analisar experiências de sujeitos ligados ao samba por suas relações com a polícia e a justiça, assim como caracterizar as redes, alianças, rivalidades dos grupos nos quais estão inseridos e com os quais se opõem.

No terceiro, a análise recai sobre os sujeitos ligados aos candomblés da região de Santana, da zona portuária, bastante identificados com migrantes do Nordeste, especificamente da Bahia. A autora realiza importante estudo sobre esse grupo, o impacto de sua presença, seu tamanho e as redes de sociabilidade por ele construídas nas ruas de Santana. Cunha consegue evidenciar que tal grupo não constituía uma comunidade ou elite à parte dos demais trabalhadores da região; que não foi demograficamente superior a outros tantos grupos de migrantes e cariocas. Dedica-se, ademais, ao estudo dos centros religiosos e de sua importância na formação de conexões entre esses indivíduos, assim como do papel das mulheres na formação dos vínculos identitários e na ampliação e preservação de espaços de sociabilidade e proteção.

Na parte final do mesmo capítulo, realiza alguns estudos de caso de membros ilustres da comunidade “baiana” por meio de processos criminais, buscando compreender os caminhos e as estratégias costuradas por esses indivíduos ao se relacionarem com a polícia e as autoridades republicanas. Conclui resumindo os motivos que levaram à constituição de uma ideia quase mítica dessa comunidade baiana como foco irradiador de uma cultura popular carioca nos anos 1900 e 1910.

O quarto capítulo faz movimento bastante semelhante ao anterior, mas altera o espaço e os sujeitos: a área estudada é a região do Estácio, com a zona do Mangue e do meretrício; os casos estudados são protagonizados pelos “malandros” sambistas da região do morro de São Carlos. Busca marcar claramente as diferenças com a região estudada no Capítulo 3: o Estácio seria caracterizado por uma pobreza maior, mais repressão policial, sofreria com o impacto da região do Mangue e sua zona do meretrício com suas mazelas. Logo, conclui Cunha, o samba e o carnaval seriam os únicos espaços identitários aos quais seria possível se agarrar, visto que, nessa área, as casas religiosas, como os candomblés, e as redes de solidariedade, como as costuradas pelos descendentes dos migrantes baianos, não teriam conseguido se consolidar com tanta força como em Santana. Todavia, tais constatações podem ser relativizadas e tornadas complexas com novas pesquisas sobre a região e a influência de outros grupos, especialmente os migrantes e seus descendentes do Vale do Paraíba fluminense, de Minas Gerais e de São Paulo (Abreu e Dantas, s.d.; Abreu, Agostini e Hebe, 2016Barbosa, 2015Costa, 2015).

Com esse breve sumário dos capítulos, fica evidente os muitos acertos ao longo das mais de 200 páginas de seu novo livro. Autora experiente da história social da cultura,2 Cunha defende acertadamente que “o carnaval e as rodas de samba podem ser um prato cheio para perceber, em um plano mais geral, [a] multiplicidade” nessa história. Em seu estudo, podemos aprender “sobre os limites, escolhas e alternativas que se ofereciam àqueles homens e mulheres que cantavam, dançavam ou se divertiam em torno do som de violas, cavaquinhos, pandeiros, tambores […] revelando suas formas de reivindicar e se dar a público, seus projetos e aspirações” (p. 11).

Seu foco está na multiplicidade de agentes; seu esforço é compreender os diferentes sentidos elaborados pelos variados grupos sociais; a importância dada aos contatos entre os trabalhadores urbanos com as forças republicanas – polícia, justiça, políticos -, intelectuais e jornalistas; o estudo de trajetórias individuais e a caracterização dos grupos e de suas rivalidades internas. Elementos que representam uma enorme contribuição, tanto para a história do samba quanto para a história da cidade do Rio como um todo, principalmente para o período da Primeira República, que por muito tempo foi relegado a segundo plano pela historiografia.3

Um ponto nevrálgico do livro é a questão racial. Por um lado, está constantemente presente nas fontes; por outro, o leitor fica com a percepção de que uma análise mais detalhada sobre racismos e racialização poderia ter suscitado novos questionamentos ao longo de “’Não tá sopa’”. Nas palavras de Cunha:

Ainda que a racialização das relações sociais e o racismo explícito das elites republicanas impregnassem o dia a dia dos trabalhadores da cidade, os espaços gestados pelos antigos escravos, especialmente aqueles relacionados ao carnaval ou a outras formas de lazer urbano, já encontravam novos parceiros em sua construção. Análises das formas de sociabilidade dos trabalhadores cariocas nesse período evidenciaram que os grupos que se organizaram para a festa e a folia – onde frequentemente os negros tinham a maioria, mas raramente a exclusividade – tiveram um grande peso nesse processo e figuraram entre aqueles que sofreram maior controle ou foram objeto das mais duras iniciativas no dia a dia da polícia local. (p. 10)

Apesar desse parágrafo indicando a importância da questão racial na configuração das rodas de samba como espaço de autonomia protagonizados por homens e mulheres negros, as escolhas teóricas da autora se voltam mais para as dimensões sociais dos trabalhadores da cidade. Apesar de muitas fontes e personagens colocarem essa questão em evidência, e Cunha apontá-las para o leitor, o peso do racismo na história do samba ainda fica em aberto.

Sobre o tema, após afirmar que a palavra samba estivera associada a sociedades carnavalescas e dançantes de trabalhadores “de várias procedências e cores” desde o século XIX (p. 11), a autora afirma:

Ainda assim, é necessário enfatizar que a absoluta maioria dos sambistas que vamos encontrar nas páginas seguintes, no papel de protagonistas dessa história, é constituída por descendentes de escravos. Impossível ignorar essa marca, inscrita na cor de suas peles e nas memórias aprendidas de seus pais e avós. Isso não significa, entretanto, que o samba possa ser tomado de antemão como uma manifestação exclusiva da “raça” ou de uma cultura própria desses setores – e, muito menos, como prática unívoca e isenta de conflitos. (p. 11)

A autora faz um contraponto, talvez muito rígido, ao deixar subentendido que a única possibilidade de pensar a importância da questão racial na formação do samba é a defesa de uma cultura negra essencializada e unívoca. Critica acertadamente interpretações que, carregadas de viés ideológico e político, fariam uma leitura do samba como exemplo de uma cultura negra imóvel. Contudo, essa não é a única forma de se trabalhar com tal perspectiva. Há uma vasta bibliografia sobre identidade, cultura e questões raciais que vêm, por décadas, criticando essa interpretação essencializada de cultura negra – Paul Gilroy (2000), Stuart Hall (2003), Mintz e Price (2003), Matthias Röhrig Assunção (2005) e Kim Butler (1998), apenas para citar alguns exemplos – e propondo interpretações que levem em consideração as inovações, invenções, ressignificações que não impedem tanto os sujeitos históricos quanto os estudiosos de pensar sobre identidades e culturas negras em contextos como o Rio de Janeiro entre 1890 e 1930.4

Ou seja, a multiplicidade defendida e comprovada pela autora na história do samba não inviabilizaria pensar simultaneamente a racialização, o racismo e o antirracismo a partir das mesmas fontes. Como a análise de Cunha valoriza e comprova as trocas e diversidades na história do samba e a importâncias delas para as experiências cotidianas dos trabalhadores cariocas, debates sobre crioulização, diáspora africana e Atlântico Negro podem suscitar novas perguntas e possibilidades sobre o mesmo tema em novas pesquisas.

Os principais exemplos dessa questão são encontrados nos Capítulos 1 e 2. Em ambos, Cunha se dedica a entender a região da “Pequena África” como um espaço de grande heterogeneidade racial, o que fica evidente com as fontes e análises apresentadas. Entretanto, ela não deixa de notar que há uma “racialização do perigo”: “ainda que os brancos constituíssem a maioria da população, o contingente de presos negro e pardos era proporcionalmente bem maior que sua presença demográfica” (p. 61).

Segundo ela, as diferenças vividas no cotidiano da região obrigaram seus moradores

[…] a engendrar formas de diálogo permanente, produzindo novas identidades, reafirmando laços antigos ou inventando tradições […]. A despeito do racismo que levava descendentes de escravos com mais facilidade que brancos às cadeias das delegacias ou à casa de detenção, o que as evidências policiais revelam é, antes que tudo, a intensa mistura e a convivência entre trabalhadores brancos e negros, de diferentes origens nacionais, no enfrentamento de dificuldades da vida diária. (p. 61; grifo nosso)

Esse último parágrafo tende a minimizar um componente crucial na vida desses homens e mulheres negros que formaram a grande maioria dos sujeitos estudados por Cunha no livro: o racismo diário, que impactava (e ainda impacta) as possibilidades, horizontes de expectativa e mesmo a vida e morte de imensa parcela da população carioca. Pesquisas recentes vêm buscando justamente pensar as tensões raciais na cidade ao longo da Primeira República, e sem dúvida têm bastante a dialogar com os argumentos de Cunha.5

Uma questão delicada está presente na escrita do Capítulo 4, “Da gema” (p. 150). Ao lermos as trajetórias de “malandros” da região do Estácio, especificamente as histórias de Baiaco e Brancura, nos deparamos com casos policiais gravíssimos, envolvendo estupro, lenocínio, entre outras formas de violência desses homens contra mulheres nas ruas da cidade. São casos extremamente graves, como navalhadas no rosto de prostitutas e um evento de possível estupro coletivo. Ao lê-los, me senti um tanto incomodado com uma escrita leve e corriqueira que tratou tais atos de violência como “peripécias” (p. 166) ou acontecimentos “rocambolescos” (p. 171). Obviamente, não cabe ao historiador realizar juízos de valor anacrônicos e pessoais sobre os sujeitos em questão. Contudo, talvez fosse preciso um cuidado maior com a escrita – principalmente pela trajetória da autora em trabalhar questões de gênero ao longo da carreira – para evitar o que pode soar como complacência com as atitudes misóginas desses sujeitos históricos – mesmo que não seja o que a autora gostaria de transmitir.

Ao final, o livro se mostra uma importante contribuição para compreendermos as experiências cotidianas de trabalhadores homens e mulheres, majoritariamente negros, na vida cultural, social e política da então capital federal. Também nos possibilita compreender os caminhos do protagonismo desses sujeitos na consolidação do samba como gênero musical entre as décadas de 1920 e 1930, em um processo iniciado ainda no século XIX. Cunha, pioneira no estudo de práticas culturais pelo arcabouço da história social, desvela a multiplicidade de agentes envolvidos nesses caminhos. Uma heterogeneidade tão intensa que, sem dúvida, suscitará novas perguntas e pesquisas no afã de desvendar novos sentidos dessa história plural.

Referências

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ABREU, Martha; AGOSTINI, Camila; HEBE, Mattos; DANTAS, Carolina Vianna. É chegada “a ocasião da negrada bumbar”: comemorações da Abolição, música e política na Primeira República. Varia Historia, v. 27, n. 45, p. 97-120, {s.d.}. [ Links ]

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2Autora de obra fundamental sobre o carnaval carioca do mesmo período (Ecos da folia: uma história social do carnaval carioca entre 1880 e 1920. São Paulo: Companhia das Letras, 2001) e de outros estudos reconhecidamente importantes sobre a temática.

3Sobre as novas pesquisas que buscam analisar novos aspectos durante a Primeira República, ver Abreu e Gomes (s.d.), Dantas (2010) e Brasil (2016b).

4Perspectiva que venho colocando em prática em pesquisas recentes. Ver Brasil (2016a e 2016b).

5Alberto (2011), Silva (2015), Domingues (2014), Hertzman (2013), Brasil (2016b), Abreu, Agostini e Mattos (2016), Barbosa (2015) e Costa (2015).

Eric Brasil – Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), Campus dos Malês – São Francisco do Conde (Ba) – Brasil. E-mail: [email protected].

Colégio Pedro II: A Trajetória de seus Uniformes Escolares na Memória coletiva da Cidade | Beatriz Boclin Marques Santos e Vera Lucia CAbana de Quiroz Andrade

O trabalho de pesquisa de Beatriz Boclin Marques dos Santos e Vera Lucia Cabana de Queiroz Andrade, ambas professoras doutoras e pesquisadoras do Colégio Pedro II, lotadas no Núcleo de Documentação e Memória do Centro de Documentação e Memória do CPII, órgão que abarca os acervos do colégio e que coordena as atividades de biblioteca histórica, museu, laboratório de digitalização do acervo e o Centro de Estudos Linguísticos e Biblioteca Antenor Veras Nascentes, o ex-aluno de 1902 e depois professor catedrático de Português e Espanhol, nos apresenta uma visão da evolução da sociedade carioca através do acompanhamento das variações dos uniformes dos alunos do colégio e dos respectivos itens dos regulamentos internos, ao longo de um tempo que se inicia em meados do século XVIII com o Colégio dos Órfãos de São Pedro (1739) e depois Seminário São Joaquim (1766), passando pelo Colégio Imperial em 1834 até a criação do Colégio Pedro II em 1837 e daí até os nossos dias, percorrendo a transição Império/República, o período da chamada “República Velha”(1889 – 1930), a era Vargas/Dutra/Vargas (1930 -1937 -1945 – 1951 -1954) e os períodos compreendidos entre os anos 1960 até o século XXI. Leia Mais

Mercados Minas: africanos ocidentais na Praça do Mercado do Rio de Janeiro (1830-1890) – FARIAS (RBH)

FARIAS, Juliana Barreto. Mercados Minas: africanos ocidentais na Praça do Mercado do Rio de Janeiro (1830-1890). Rio de Janeiro: Prefeitura do Rio de Janeiro/Arquivo Geral da Cidade, 2015. 295p. Resenha de: CARVALHO, Marcus Joaquim Maciel de. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.36, n.73, set./dez. 2016.

Antes de defender sua tese em 2012, Juliana Barreto Farias já era uma pesquisadora reconhecida, autora de trabalhos sólidos, tanto individualmente como em coautoria com historiadores renomados. A tese então defendida era fruto de uma pesquisa densa e bem sedimentada. Agora, expurgados os ranços que caracterizam as teses – aqueles que tornam a leitura pesada, difícil – e com alguns acréscimos bem situados, foi finalmente publicado esse importante estudo, que promete influenciar a literatura sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro, particularmente sobre a presença de africanas minas no comércio a retalho.

A inspiração confessada da autora é uma fotografia de uma africana vendendo frutas e verduras numa bancada de mercado. É uma daquelas fotos de Marc Ferrez diante das quais os especialistas às vezes se lembram de que, talvez, já as tenham visto em algum lugar. Mas Juliana não se contentou com essa curiosidade, a estética vigorosa da “dama mercadora”, talvez Emília Soares do Patrocínio, a principal personagem do livro, uma africana liberta que deixou 30 contos de patrimônio inventariado e que alforriou outros 11 cativos. Dali em diante, fazendo uma ligação nominativa de fontes, percorrendo um rol considerável de documentos sobre o mercado, inventários, jornais, processos de divórcio e fontes paroquiais, a autora foi descobrindo outras pessoas, processos, histórias de vida, lendas urbanas, rumores e espaços, até que, finalmente, pôde apresentar aos leitores outro retrato, mais amplo, com mais profundidade e contextualização: o retrato do próprio mercado da Candelária, o “mercado do peixe”, na atual Praça XV de Novembro. Por intermédio desse trabalho denso e arguto entramos no cenário de muitas tramas que haviam caído em certo esquecimento da história urbana do Rio de Janeiro escravista. A foto daquela negra mina com uma urupema no colo inspirou a pesquisa, mas ela não é a única protagonista neste livro. O próprio mercado, que ganha vida, é o personagem principal deste importante estudo.

Inspirado no Les Halles de Paris, o mercado tinha absolutamente tudo de brasileiro, expressando os detalhes multiétnicos e as tensões que caracterizavam a vida social no Rio de Janeiro oitocentista. Nele percebe-se a dinâmica própria da escravidão na capital imperial, pois, a rigor, não se podia alugar banca de peixe a cativo, mas eles estavam lá o tempo todo, se não como vendedores independentes, com certeza, como prepostos. Em 1836, houve de fato uma queixa de que a posse de bancas havia sido concedida a escravos. Entre atritos, reclamações – até mesmo contra “pretos cativos atravessadores” – e rearranjos espaciais, a partir de 1844 só gente livre poderia ser locatária, embora seus cativos pudessem pernoitar no ambiente de trabalho. A autora crê, todavia, que os requerimentos iludiam à condição forra de muita gente, afinal de contas, salvo os “africanos livres”, não havia como essas pessoas com marcas de nação serem livres. Os minas eram os mais bem representados no mercado e, entre eles, havia uma distribuição entre os sexos bastante equitativa. As áreas internas, todavia, eram majoritariamente ocupadas por homens.

Apesar de muita confusão, greve até, em longo prazo houve uma razoável estabilidade entre os que se estabeleciam no mercado, pois a média de ocupação no mesmo local era de 15 a 20 anos. Era comum transferir a banca para gente da mesma família ou da mesma procedência, e, embora fosse possível ceder a posse e o uso do espaço, não se podia repassá-lo a terceiros por conta própria, sem interferência das autoridades competentes. Havia locatários ocupando mais de uma banca. José da Costa e Souza, ou José da Lenha, era tão onipresente nos negócios que, segundo um relatório de 1865, ficou também conhecido como “dono do mercado”. A trajetória de vida de alguns personagens, como Domingos José Sayão, um calabar forro, ilustra o tráfico de influência para se conseguir bancas. O fato de já estar lá trabalhando era importante para renovação, mas havia um jogo na Câmara Municipal envolvendo complexas relações patronais. E, nesse jogo burocrático e legal, as minas também eram protagonistas. Casavam-se, divorciavam-se, participavam de irmandades, querelavam e demandavam direitos nos termos da “lei do branco”.

Uma das partes mais ricas do livro é o estudo das posições relativas dos trabalhadores do mercado, desde os donos de banca até os cativos. À parte a condição servil, livre ou liberta de cada um, havia a cor da pele matizando as relações sociais. Entre os negros, os que não eram africanos aparentemente procuravam ressaltar esse dado nas petições. E eram muitos os africanos. A autora cita Holanda Cavalcanti, para quem bastava ir lá para vê-los ostentando suas marcas de nação. Os requerimentos, todavia, disfarçavam a condição dos requerentes forros, que não deviam ser poucos. Havia, entretanto, certa especialização naquela multidão. Os brasileiros dominavam a venda de pescados, os africanos concentravam-se na venda de legumes, verduras, aves e ovos. Os portugueses estavam em tudo, mas dominavam a venda de secos. Embora tenha encontrado até uma briga entre dezenas de ganhadores e 11 trabalhadores brancos do mercado, a autora não encontrou uma rivalidade permanente, inevitável entre portugueses e africanos, o que contraria o senso comum historiográfico. Os atritos eram muitos, mas cruzavam barreiras simplistas. A condição servil, livre ou liberta, a nacionalidade, a procedência e as relações patronais entrecruzavam-se marcando o cotidiano das relações de trabalho e convivência no mercado do peixe.

Empoderada pela riqueza que o comércio lhe proporcionou, Emília fez tudo o que poderia caber a uma africana liberta na capital imperial. Afirmou-se diante de outras mulheres e dos homens que cruzaram seu caminho. No comércio, liderava. Os homens que passaram por sua vida foram apenas coadjuvantes. Submersa numa sociedade que tentava conquistar, previsivelmente tornou-se senhora de escravos, e Juliana Barreto não encontrou evidências de que fosse melhor, mais generosa nas alforrias, do que as outras sinhás do seu tempo. Questões desse tipo – Como era ser escrava de uma africana liberta? Qual o significado do casamento cristão para as africanas cativas ou libertas? E o que significava ser uma “mina”, afinal de contas? – integram um rol de perguntas clássicas da historiografia brasileira para as quais este livro acrescenta novos elementos de discussão.

Embora com objeto bem delimitado, circunscrito no tempo e no espaço, este livro é também oportuno no momento presente, quando precisamos ampliar nossos horizontes de estudo, reabrir perspectivas comparadas. Nestes tempos de tantas e tantas teses a serem lidas, talvez já seja possível reavaliar tendências bem assentadas na historiografia. A escravidão no Rio de Janeiro das africanas retratadas neste importante livro precisa ser cotejada com aquela das africanas das Minas setecentistas, sobre as quais já existe sólida literatura, ou mesmo da Bahia e Pernambuco, revisitadas por estudos recentes. Aos poucos, os detalhes desse universo mais amplo da escravidão no Brasil oitocentista vão sendo desvelados por estudos densos, como este, que irão compor as futuras sínteses da vasta e rica historiografia brasileira sobre a escravidão.

Marcus Joaquim Maciel de Carvalho – Ph.D. em História, University of Illinois System (UILLINOIS). Professor Titular de História, Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Recife, PE, Brasil. E-mail: [email protected]

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Festas Chilenas. Sociabilidade e política no Rio de Janeiro no Ocaso do Império | Jurandir Malerba, Cláudia B. Heyneman e Maria do Carmo T. Rainho

Entre 09 de outubro e 19 de dezembro de 1889, o Brasil recebeu a visita diplomática chilena a bordo do encouraçado Almirante Cochrane. Este fato, além de ter causado um grande alvoroço político, econômico, social e cultural no país, e em especial na cidade do Rio de Janeiro, coincidiu com a transição do regime político imperial para república.

Atentos aos espaços visitados pelos chilenos, às comidas e bebidas servidas/degustadas, à programação destinada aos ilustres hóspedes, às práticas desportivas praticadas em sua homenagem, aos sons, bailes, músicas que deram o tom cordial entre os dois países, e toda a indumentária que acolheu os convidados, os organizadores de “Festas Chilenas. Sociabilidade e política no Rio de Janeiro no Ocaso do Império” – Jurandir Malerba, Cláudia B. Heyneman e Maria C. T. Rainho – tiveram a felicidade de reunir em oito capítulos, os diversos modos de sociabilidade existentes na cidade do Rio de Janeiro durante estes dois meses. Leia Mais

Nas memórias de Aurélia: cotidiano feminino no Rio de Janeiro do século XIX / Samuel Albuquerque

ALBUQUERQUE Samuel
Samuel Albuquerque / Foto: Conectando Com Jota /

ALBUQUERQUE S Nas memorias de AureliaAo dar visibilidade no cotidiano feminino no Rio de Janeiro do século XIX, Samuel Barros de Medeiros Albuquerque, professor da Universidade Federal de Sergipe, narrou neste livro as vivências e experiências da sergipana Aurélia Dias Rollemberg (1863-1952), futura Dona Sinhá, durante sua estada no Rio de Janeiro com sua família, e sua preceptora alemã, Marie Lassius.

Tais memórias, arquivadas em textos, são fonte de informações preciosas sobre o cotidiano feminino, incluindo o trabalho de governantas, bem como as experiências e práticas culturais de meninas, moças e senhoras na sociedade carioca.

Assim, fazendo uma breve descrição dos familiares de Aurélia, da chegada de Marie Lassius no Brasil e na casa da jovem, ainda em Sergipe, Albuquerque buscou investigar

o universo de preceptoras europeias que viveram entre os grandes centros e a periferia do Império do Brasil e, para tanto, enveredo pelo cotidiano de uma típica família da nossa antiga elite política e econômica, buscando interpretar sobretudo, as práticas culturais femininas (2015, p. 17).

Para isso, Albuquerque abordou no primeiro capítulo, intitulado “Nas memórias de Aurélia”, as experiências e vivências dessa jovem sergipana, bem como das demais mulheres da família, inclusive de sua preceptora alemã.

Ao narrar a conjuntura que levou a família do deputado geral Antonio Dias Coelho e Mello (1822-1904), Barão da Estância, a se mudar para o Rio de Janeiro, e o cotidiano das mulheres da família, Albuquerque conseguiu estabelecer pontos de convergência entre a política e cultura do século XIX.

A ligação política do Barão da Estância rendeu às mulheres da família e à preceptora alemã, o acesso a espaços de sociabilidade típicos da corte carioca, como bailes, jantares, cerimônias políticas e religiosas, inclusive contato direto com a família imperial, por meio das visitas residenciais ou cerimônias específicas.

Além disso, tal ligação política também possibilitou identificar o cotidiano dessas mulheres e suas práticas culturais. Dentre essas práticas, Albuquerque destacou as experiências vivenciadas e narradas por Aurélia nos diversos espaços de sociabilidade em que frequentou com sua família e com sua preceptora.

A frequência nesses espaços possibilitava às mulheres da corte e da elite se conhecerem, trocarem informações e experiências sociais e culturais. Assim, Aurélia, as mulheres de sua família, e sua preceptora, conseguiram se inserir no cotidiano feminino carioca e se adaptarem nessa nova realidade sociocultural, uma vez que todas elas provinham de outras realidades culturais.

Quanto à ligação cultural existente no cotidiano da família sergipana, podemos observar a atenção que o autor deu aos indícios textuais de Aurélia sobre a educação recebida pela preceptora alemã.

Da gramática ao estudo de idiomas e de música, a jovem sergipana foi educada para tornar-se uma mulher culta e preparada para um bom casamento e, consequentemente, saber cuidar da casa, do marido, dos filhos e dos criados.

Sua vivência e experiências pela cidade do Rio de Janeiro, acompanhada por sua família e por Marie Lassius, fizeram de Aurélia uma moça atenta ao cotidiano feminino e aos espaços de sociabilidade por ela frequentados.

Guiado pelos indícios das práticas culturais e dos espaços de sociabilidade acessados por Aurélia, Albuquerque continuou explanando no segundo capítulo, intitulado “No Reino Encantado de Pedro II”, o cotidiano feminino pelo Rio de Janeiro durante o reinado de D. Pedro II.

A frequência nos ritos religiosos, no estabelecimento de modistas franceses, na confeitaria Paschoal, nas residências de políticos e damas da elite carioca, em teatros, museus, passeios públicos, jardins botânicos, zoológico, praias e demais endereços ilustram a diversidade de espaços de sociabilidade existentes na cidade do Rio de Janeiro, bem como os locais permitidos ao acesso feminino.

Toda vivência e experiência obtida durante a estadia no Rio de Janeiro, provavelmente proporcionou a Aurélia noções do cotidiano e das práticas femininas, além de prepará-la para a vida de esposa, mãe e dona de casa.

Assim, com o encerramento das atividades políticas do Barão da Estância no Rio de Janeiro em 1879, ele e sua família retornam a Sergipe, deixando para trás o amigo da família Gonçalo de Faro Rollemberg, futuro esposo de Aurélia, e a preceptora alemã, Marie Lassius que faleceu no mesmo ano.

Aurélia, já amadurecida, continuou escrevendo suas vivências e experiências, porém, não da mesma forma como antes. Diante de seus retornos ao Rio de Janeiro, de seu casamento, filhos que teve, permanecia em sua memória os ensinamentos, as práticas, as vivências e as experiências deixadas por sua preceptora.

Assim, se Samuel de Albuquerque buscou destacar em seu livro a importância da prática da preceptoria no Brasil para a formação feminina, em especialde Aurélia, ele também conseguiu dar visibilidade às experiências, vivências e práticas culturais no cotidiano feminino no Rio de Janeiro do século XIX.

Everton Vieira Barbosa Correio – Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP-Campus de Assis). Bolsista pelo processo 15555-8, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).E-mail: [email protected].


ALBUQUERQUE, Samuel. Nas memórias de Aurélia: cotidiano feminino no Rio de Janeiro do século XIX. São Cristóvão: Editora UFS, 2015, 152p. Resenha de: CORREIO, Everton Vieira Barbosa. História histórias. Brasília, v.4, n.7, p.231-233, 2016. Acessar publicação original. [IF]

Lisboa, Rio de Janeiro, comércio e mosquitos – MORENO (HCS-M)

MORENO, Patrícia. Lisboa, Rio de Janeiro, comércio e mosquitos: as consequências comerciais da epidemia de febre-amarela em Lisboa. Lisboa: Chiado, 2013. 214 p.Resenha de: PROTÁSIO, Daniel Estudante. Epidemias, comércio e emigração Portugal-Brasil na segunda metade do Oitocentos. História Ciência Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 22  supl. Dec. 2015.

Num mundo e num início de século como o nosso, em que o ébola, o HIV/Aids e a gripe N1H1 constituem sérias ameaças à segurança e saúde públicas internacionais, nem sempre é fácil entender como num passado relativamente recente outras epidemias podiam interromper os fluxos de circulação de pessoas, bens e serviços entre continentes e nações. Sobretudo para os não iniciados na medicina ou na respetiva história, que não se deleitem com densos estudos técnicos sobre questões epidemiológicas e sanitárias (como é o meu caso), encontrar uma obra como a que aqui me proponho recensar constitui uma verdadeira lufada de ar fresco e um magnífico momento de aprendizagem, sobre áreas e aspetos científicos afins daqueles a que me dedico a estudar nos últimos 20 anos de investigação.

Por outro lado e apesar de uma intensa e frutuosa colaboração e intercâmbio científicos e académicos entre o Brasil e Portugal, no que concerne a historiografia e a história académica dos séculos XIX e XX, nem sempre é fácil encontrar quem consiga transpor, em termos de texto, as naturais barreiras e distâncias entre duas realidades irmãs e similares, mas naturalmente específicas e idiossincráticas, como a portuguesa e brasileira.

Com a presente obra, Patrícia Moreno, investigadora e doutoranda portuguesa em história no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, de Lisboa, membro da Sociedade de Geografia de Lisboa e estudiosa dos temas da história da medicina, da emigração e dos descobrimentos portugueses, consegue contribuir com um texto de leitura agradável, informação pertinente e narrativa organizada, sobretudo fruto de uma utilização inteligente de fontes da época e com uma intervenção mínima enquanto narradora dos acontecimentos descritos.

Ora tal não é fácil, num mundo editorial português em que as obras de divulgação científica e histórica abundam e num universo como o da Sociedade de Geografia de Lisboa, instituição fundada em 1875 e na qual Patrícia Moreno participa do trabalho de algumas secções e comissões há mais de duas décadas. Pode mesmo afirmar-se que, de uma maneira geral, a profusão de livros publicados em Portugal e a quantidade de comunicações proferidas na dita agremiação lisboeta são de tal magnitude que é difícil encontrar títulos sugestivos e pedagógicos, recreativos e científicos, cativantes e ligeiros na leitura, mas ao mesmo tempo estimulantes de outras pesquisas e que deixem no leitor a sensação de que uma porta intelectual se abriu no cenário dos seus interesses bibliográficos e intelectuais; ou seja, de que saiu enriquecido das horas a que dedicou sua atenção a um trabalho específico. Tal sensação é com frequência mais conotada com outro género de leituras, como a de livros de ficção policial ou de espionagem, de textos de blogues, de revistas, de jornais e newsletters on-line do que obras dedicadas a temáticas históricas. Por contraste, basta folhear as páginas do Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, que já ultrapassou sua 131ª série (referente a 2013), para encontrar textos sobre temas e títulos históricos, geográficos ou etnográficos escritos em estilo por vezes pesado e de circunstância, nem sempre destinados ao interesse de um público não especializado nem particularmente inclinado a esse tipo de assuntos.

Em termos de estrutura, a obra de Patrícia Moreno divide-se em nove pontos, incluindo introdução, conclusão e bibliografia. De uma forma geral, a autora não abusa das notas infrapaginais, que alcançam o número de 190 em 206 páginas de texto, entre algumas dedicadas a fornecer informações biográficas das figuras de médicos e estadistas referidos, mas sobretudo a consubstanciar as fontes e bibliografia a que recorreu.

Na contracapa do livro, são deixadas as seguintes palavras e interrogações: “Como e quando chegou a febre amarela a Lisboa vinda do Brasil? E quais foram as medidas adotadas pelas autoridades portuguesas? A essas questões procurará esse livro lançar pistas e oferecer algumas respostas”. Essa é a mensagem essencial do primeiro ponto do livro, que se intitula “A razão deste livro, perguntas e dúvidas” e começa com uma citação de Rui Barbosa, proferida numa conferência de maio de 1917: “O mundo vê no Brasil um país de febre amarela. O Governo brasileiro o confessa. A medicina brasileira não o pode negar” (p.11). Numa outra citação, na mesma página, Barbosa informa-nos que em 1857-1858, 1860, 1864 e 1869 tal doença chega do Brasil a Portugal. Mas esse não será o âmbito cronológico da obra, mais alargado.

Num segundo ponto ou capítulo do livro, intitulado “Resenha histórica da febre amarela”, Patrícia Moreno resume, em cerca de uma dúzia de páginas, o que a literatura seiscentista e setecentista afirmava sobre a epidemia; suas principais características e alterações fisiológicas no indivíduo acometido dessa patologia; e a abrangência geográfica da mesma, num triângulo atlântico Américas-África-Europa. A autora recorre a tratados médicos, mas também a breves referências em literatura popular do século XIX, como Alexandre Dumas e Júlio Verne, e menciona terríveis momentos de dizimação coletiva, como aquando da invasão francesa da ilha de São Domingo (atuais Haiti e República Dominicana) em 1801, de Barcelona em 1821 e do surto do vale do Mississípi em 1878, tendo morrido, nestes dois últimos casos, cerca de vinte mil catalães e outros tantos norte-americanos (p.17, 20). Introduz a questão do debate médico sobre a forma de combater essa praga e como ela se propaga, matérias que dividirão opiniões científicas e a opinião pública mundiais durante várias décadas do século XIX.

Subitamente, num terceiro capítulo, “Portugal e o Brasil ou o Brasil e Portugal”, a autora aligeira o tom, alarga o âmbito do seu estudo, não agora meramente geográfico, cronológico, estatístico e médico, mas contextualiza a situação geral portuguesa e brasileira, de forma rigorosa, mas necessariamente breve, de modo a impedir que o leitor se perca em demasiados pormenores e perca literalmente o fio à meada, esquecendo o propósito primeiro desse trabalho – a febre amarela e seu impacto sanitário, comercial e político nos dois países. Vai, assim, elencando as várias formas de relações luso-brasileiras – familiares/dinásticas, comerciais, sociais – e os diferentes métodos de contacto transnacional: o transporte marítimo de emigrantes portugueses em busca de trabalho, legal e ilegalmente; as políticas lisboetas para travar tal fluxo demográfico, bem como o surgimento da figura do “brasileiro” em Portugal, na sociedade e na literatura portuguesas. Está então dado o mote para uma apaixonante reflexão sobre questões de história das mentalidades, social e política: as condições insalubres nos “cortiços” brasileiros aos quais chegavam os emigrantes portugueses, mas também nos bairros pobres de Lisboa e Porto, onde a febre amarela se propagará; o constante ambiente de guerra civil e de revolução em Portugal até à Regeneração de 1851 e a dificuldade que diferentes governos sentiram para inverter uma política de emigração maciça, devido à pobreza, desemprego e analfabetismo que grassavam deste lado do Atlântico. A intervenção de figuras gradas da política e das letras portuguesas como Alexandre Herculano e Ramalho Ortigão, o conde de Tomar (Costa Cabral), Fontes Pereira de Melo e José Luciano de Castro, tentando alertar a opinião pública e legislar para que a falta de condições de salubridade e de habitação não servissem de rastilho à propagação da febre amarela, como ainda sucedeu no Rio de Janeiro, de forma intervalada, nas décadas de 1870 a 1890. Em Lisboa, a Sociedade de Geografia, cujos estatutos foram reformados em 1895, contou imediatamente com uma Comissão de Emigração, tal a preponderância política, económica e social da saída de emigrantes e consequente perda de força de trabalho e destruição do tecido social nacional.

Nos pontos – ou capítulos, como lhes poderíamos chamar – 4 e 5, o primeiro com cerca de trinta páginas e o segundo com cerca de quarenta, a autora congrega o essencial da sua análise, dedicada primeiro ao “Rio de Janeiro e a epidemia de 1850” e depois a “Lisboa e a febre amarela – a terrível década de 1850”. Com inteligente e rigoroso recurso a fontes de ambas as nacionalidades, Patrícia Moreno estuda os casos brasileiro e português socorrendo-se de pontos de vista contemporâneos e divergentes, alguns cientificamente fundamentados, outros meramente propagandísticos e eleitoralistas. Em causa estava perceber a verdadeira origem do surgimento e transmissão da doença e quais as formas corretas de a tratar e prevenir. Numa época em que o comércio luso-brasileiro e as remessas financeiras de emigrantes portugueses bem-sucedidos no Brasil pesavam fortemente na balança comercial de Portugal, o vetor de transmissão da doença, o mosquito, estava fora da equação. O mosquito, ou pernilongo, que faz parte do título desse livro e cuja imagem figura na respetiva capa, não era ainda entendido como elemento preponderante e transmissor da patologia. As autoridades portuguesas e brasileiras insistiram, durante décadas, em políticas de quarentena (à imagem, aliás, das demais nações) e na criação e manutenção do lazareto de Porto Brandão, na margem sul do Tejo, defronte de Lisboa e no lazareto da ilha do Bom Jesus dos Frades, no Rio. Os higienistas, reunidos pela primeira vez em congresso internacional em 1852, dividiam-se entre os que defendiam a existência de contágio e a necessidade de isolamento dos doentes e de quem viajava em navios onde grassava a doença (os contagionistas) e os que defendiam in stricto sensu que “A higiene e a desinfestação são as únicas armas de que dispõem os médicos” (p.80), sendo necessário combater a infeção onde ela ocorria (os infeccionistas).

Em Portugal, foi apurado que morreram quase seis mil pessoas durante as epidemias de 1856-1858, o que constituiu um número dramático de vítimas. Duas das mais célebres vítimas mortais foram o cardeal patriarca de Lisboa e o renomado médico e membro da Academia das Ciências de Lisboa António da Fonseca Benevides. O casal régio, dom Pedro V e dona Estefânia, interviriam corajosamente no socorro e apoio moral aos doentes, mas ambos morreriam muito novos de outras doenças frequentes na época, respetivamente febre tifoide e difteria. “Lisboa, cidade insalubre” era uma das imagens transmitidas durante décadas, fosse pelo académico Oliveira Pimentel, pelo afamado Eça de Queiroz ou pela polémica princesa Ratazzi, com o primeiro a afirmar, em 1857, as seguintes palavras arrepiantes: “O estado das praias lodosas em frente da cidade [de Lisboa] é o mais deplorável que se pode imaginar; e, se as comparássemos com o delta do Ganges, onde se gera o cólera-morbo, não ficaríamos longe da verdade” (p.126). O congresso sanitário reunido sob os auspícios régios naquele ano, na Academia das Ciências, pouco ou nada conseguiu resolver e não só “Os lisboetas fogem da epidemia” como “Lisboa sofria e morria!”, como sugerem dois subtítulos utilizados pela autora neste seu quinto capítulo (p.127, 130). Chegando-se à conclusão de que a doença não era “nativa” de Portugal, embora prosperasse com as condições de insalubridade e no tempo quente (e que, portanto, provinha por via marítima, sobretudo do Brasil), persistiram as políticas de quarentena e de utilização do lazareto.

É a esses dois temas – quarentena e lazareto – que Patrícia Moreno vai dedicar o sexto ponto ou capítulo do seu livro, o último com uma extensão considerável na obra agora em análise. Enquanto de França não surgiram as notícias das descobertas de Pasteur e do Brasil os resultados práticos da obra salvífica de Oswaldo Cruz, esta já no início do século XX, Portugal teve de recorrer aos anacrónicos mecanismos de contenção de uma doença que nunca mais se tornou tão devastadora como em 1856-1858, mas cuja ameaça constante, durante décadas, foi alvo da chacota, da incompreensão e da raiva de parlamentares, de jornalistas e de viajantes que, em face do número reduzido de mortes devidas à epidemia, se revoltavam quanto à preponderância de medidas sanitárias ditas “incivilizadas”. Numa segunda metade do século XIX, sobretudo marcada pelo ritmo cada vez mais frenético da circulação livre de pessoas, ideias e mercadorias, em nível europeu e mundial, as restrições de entrada no porto de Lisboa eram incompreensíveis para comerciantes e para os setores da sociedade, da política e da economia mais interessados em que Portugal prosperasse pela via da circulação comercial do que em escutar as posições cautelosas de médicos e de académicos que defendiam a necessidade da quarentena de pessoas e bens e sua permanência no lazareto na margem sul do Tejo. Medidas públicas de aprofundamento do saber técnico sobre a demografia, como o primeiro recenseamento geral da população em 1864, a utilização internacional do telégrafo elétrico e a aprovação de um regulamento geral de sanidade marítima em Portugal, já influenciada pelas ideias de Pasteur, terão contribuído para manter baixos os números de mortalidade epidémica, mas tal não impediu que, por exemplo, ocorresse uma “gravíssima epidemia de peste na cidade do Porto em 1897 que tinha demonstrado que os regulamentos sanitários observados desde há várias décadas não protegiam totalmente as populações” (p.157-158). Ora o que em hoje em dia é um lugar-comum, que o isolamento dos potenciais doentes e das pessoas afetadas por doenças não evita totalmente sua proliferação sem que a causa e os fatores de desenvolvimento e de propagação da mesma sejam conhecidos e anulados na sua ação nefasta, não era consensual nessa época – longe disso. Tal como no início da introdução da inoculação vacínica em Portugal, nos anos de 1800 e 1810, pela Academia das Ciências, aquela medida experimental fora motivo de polémica e de espanto por parte da maioria da população e das elites, quase cem anos depois a sobrevivência da quarentena e do lazareto eram também altamente contestados e incompreendidos, porque “residualmente” – se assim se poderá dizer – os casos de febre amarela e de outras epidemias, por vezes muito mais mortíferas, continuavam a manter-se: seria um caso de “matar o mensageiro”, até certo ponto; nesse caso, os médicos favoráveis a tais medidas e os decisores políticos sobre saúde pública em Portugal.

Patrícia Moreno contextualiza e problematiza esses dois temas, o da quarentena de passageiros em navios e o das condições – também elas insalubres! – do lazareto de Lisboa, que o governo tratou de estudar no sentido de melhorar. Os conhecidos escritores humorísticos e satíricos portugueses, Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, referiram-se ao lazareto, e o imperador dom Pedro II, na sua visita de 1871, fez questão de demonstrar o caráter privado da sua viagem sujeitando-se, como os demais, às condições de isolamento no lazareto. Mas para além dos incómodos dessas e de outras figuras ilustres, como a de Sarah Bernhardt, que infelizmente a autora não nos explica como contornou – se o conseguiu – a proibição de pisar Lisboa sem passar pelo lazareto (p.171-72), a questão era também de natureza comercial: os produtos que não pudessem passar pelo porto de Lisboa ou por qualquer outro porto português que estivesse vigiado pelas autoridades sanitárias eram desviados para as Canárias, para o Mediterrâneo ou para qualquer porto onde a política pública de saúde não fosse tão apertada. Refere especificamente o caso da barca Imogene, que em 1879 é caricaturado pela imprensa política e humorística nacional e no qual o diagnóstico do distinto médico Sousa Martins é colocado em causa, vendo-se o mesmo obrigado a escrever um livro – cujo título a autora não cita – para defender sua reputação e sua honra como médico (p.180 e s.). Apenas com a abertura do posto marítimo de desinfeção de Lisboa, a 1 de janeiro de 1906, já iniciado o século XX, a velocidade de entrada de passageiros e de mercadorias no porto lisboeta atinge o ritmo e a desburocratização que os tempos exigiam. A imprensa julga, naturalmente, com bons olhos tal inovação, mas aparentemente esquece-se de que ela não poderia existir se a ciência não tivesse já conhecido e debelado, no Brasil, as causas da mortandade que a febre amarela provocara durante décadas.

É nos dois últimos pontos ou capítulos, o sétimo e o oitavo, do livro que Patrícia Moreno explica-nos o que verdadeiramente mudou e obstou a que a febre amarela deixasse de matar aos milhares em Portugal. Se o médico português Ricardo Jorge escrevia que em 1860-1880 “só 20 navios entrados na barra de Lisboa foram considerados infeccionados” e se se sabe que isso ocorreu em apenas outros quatro até 1900 (p.192), não parecem restar dúvidas de que “O Brasil liberta-se… e Portugal respira”: isto é, só com a ação de Oswaldo Cruz (1872-1917), médico brasileiro, foi possível “estancar a mortandade devida à febre amarela no Rio de Janeiro” (p.195-196). A luta contra o mosquito, entre 1903 e 1909, permite senão erradicar, pelo menos diminuir drasticamente a incidência da doença em Portugal e no Brasil: “Não é a cura, mas sim a profilaxia da propagação da doença que irá trazer a glória a este médico brasileiro” (p.203). E nas conclusões, Patrícia Moreno deixa-nos duas afirmações, talvez um pouco longas para serem transcritas na íntegra, mas que são decisivas para compreender o essencial da mensagem transmitida: “As autoridades sanitárias e o governo de Portugal souberam resistir às incursões de febre amarela e de cólera-morbo. Souberam também resistir a todos aqueles que propuseram, na maioria dos casos com intuitos meramente comerciais e de lucro fácil, um aligeiramento ou mesmo a eliminação da legislação rigorosa em vigor”. E termina seu texto relembrando como “página quase esquecida da nossa história recente” a temática abordada: a do “perigo da importação” de febre amarela e as medidas adotadas pelas autoridades políticas e sanitárias portuguesas, com consequências danosas no desenvolvimento das relações comerciais entre Portugal e Brasil” (p.205-206). É este seu papel, assumido, como autora: fornecer as pistas, as fontes e os factos para que consensualmente se possa chegar a tais conclusões, deixando ao leitor a liberdade de concordar ou não com tais assunções, que são apenas afirmadas no final do livro.

O nono e último ponto ou capítulo é o da bibliografia, talvez o mais frágil de todos. Poderia ser mais rigorosamente dividido em fontes, bibliografia e webgrafia. A “Bibliografia: Séculos XVII a XIX” poderia ser designada por fontes e a referente aos séculos XX e XXI, essa sim, listada como bibliografia, excetuando a que diz respeito às décadas de 1900 a 1920 ou 1930, dado que são de 1926 e 1938 dois títulos de Ricardo Jorge que podem ser considerados fontes. Também as caixas dos arquivos citados do Ministério português dos Negócios Estrangeiros e do Arquivo Nacional da Torre do Tombo deveriam ser mencionadas e as páginas de internet conter as datas de consulta. Mas essas são questões secundárias, mais do foro editorial do que autoral. Faria ainda falta um índice remissivo, pelo menos onomástico, para mais fácil localização de figuras referidas da medicina, literatura, política e jornalismo portugueses e brasileiros em duzentas páginas de uma obra que se lê com grande facilidade e proveito. Numa segunda edição, Patrícia Moreno poderá eventualmente acrescentar alguma bibliografia especializada brasileira, como artigos da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos a propósito de temáticas similares, consultáveis, também eles on-line, se eventuais acrescentos e aprofundamentos o justificarem, naturalmente.

Daniel Estudante Protásio – Pós-doutorando, Centro de Estudos Interdisciplinares do século XX/Universidade de Coimbra. Portugal. E-mail: [email protected]

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A atuação de Joel Silveira na imprensa carioca (1937-1944) – FERRARI (CTP)

FERRARI, Danilo Wenseslau. A atuação de Joel Silveira na imprensa carioca (1937-1944). São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012. Resenha de: LIMA, Cleverton Barros de. Atuação de Joel Silveira na imprensa carioca entre 1937 a 1944. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 16, p. 76-79, mai./jul. 2014.

O reconhecimento da maestria jornalística do escritor Joel Silveira é algo notório, desde que escreveu, em 1943, a reportagem “Granfinos em São Paulo” para as páginas da revista Diretrizes. Com estilo apurado, pelos anos de escrita jornalística e literária, o autor de Onda Raivosa, título do primeiro livro de contos publicado em 1939, construiu uma marca inconfundível na forma de escrever para a imprensa.

A respeito desta rica produção de Joel Silveira, Danilo Ferrari debate nas 260 páginas do livro A atuação de Joel Silveira na imprensa carioca (1937-1944). Na realidade, a obra é fruto de um trabalho de mestrado com o mesmo título, desenvolvido programa de pós-graduação em História na Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de Assis, em 2011. A obra também é um marco importante na historiografia sobre Joel Silveira, visto que, os poucos estudos são da área de comunicação social e letras.

O enfoque central desta investigação historiográfica é a profissionalização de Joel Silveira na imprensa carioca entre os anos de 1937 a 1944. Sendo assim, o autor recorreu principalmente aos dois periódicos, Dom Casmurro e Diretrizes, no qual o sergipano trabalhou, inclusive, na condição de diretor. Nestes anos de trabalho profissional nos jornais cariocas, Joel Silveira tornou-se um autor celebrado por seu estilo enxuto, mas evidentemente sofisticado. Reconhecido, inclusive, por Graciliano Ramos, o escritor mais admirado por Silveira, como expresso no seu livro de memórias, Na Fogueira (1998).

Assim, nos três capítulos de seu livro, Danilo Ferrari debate a respeito das nuances de um escritor que procurou seu espaço na imprensa da capital federal com obstinação e zelo de escritor. No primeiro capítulo do livro, o foco do trabalho é a biografia de Joel Silveira, seguida por um debate sobre sua obra memorialística. Neste tocante, o historiador utiliza a estratégia de compreender a autoimagem deste escritor nos diversos relatos em que se coloca como testemunha dos acontecimentos históricos. A primeira parte deste capítulo, se restringe a tratar Joel Silveira com a imagem publica vigente: o escritor que saiu do nordeste para buscar o sonho de tornar-se escritor. Não é sensato discordar desta linha de raciocínio, parte dela embasada na pena de Joel Silveira. Mas, ela é parcial, visto que o sergipano já possuía uma caminhada como escritor, pouco explorado na parte biográfica deste livro e pela historiografia.

Lembro ao leitor que Joel Silveira escreveu seu primeiro ensaio, a respeito do professor de sociologia do Atheneu Pedro II (Aracaju), Florentino Menezes, em 1934; dois anos depois, ele publicou pelo Grêmio Clodomir Silva, a novela vencedora do premio literário deste grêmio, intitulada Desespero; ainda deste momento de formação, o autor foi diretor do jornal A voz do Ateneu, órgão criado pelos alunos do “Grêmio Clodomir Silva”. São todas, experiências inegáveis do jovem escritor Joel Silveira, atraído pela reflexão política, e, sobretudo, pela literatura. Aliás, ao chegar ao Rio de Janeiro, em 1937, ele republicou a novela Desespero, uma declaração de sua paixão pela arte literária, tratada por ele de forma concomitante ao jornalismo. A propósito, essa novela, traz um debate interessante a respeito da condição do sertanejo fustigado pelas constantes secas o que decerto foi escrita em diálogo com romances como, Os Corumbas (1933), do escritor também sergipano, Amando Fontes.

No mais, Danilo Ferrari conclui o primeiro capítulo com um levantamento importante das obras de Joel Silveira e, em sequência, trabalha neste sumário bibliográfico, a produção memorialística. Excetuando-se os dois textos que citei, isto é, o ensaio de 1934 e a novela de 1936, o autor elenca as demais obras de Silveira, no período entre 1939 a 2004. De certo, um recurso imprescindível para os estudos sobre Joel Silveira, visto que, sumariza um quadro maior dos interesses intelectuais durante os mais de sessenta anos de atividade intelectual.

Com base no debate sobre as “escritas autorreferenciais”, Ferrari observa a construção da imagem de Silveira como parte de uma “disputa pela representação legítima de um passado” II·. Então, os embates entre Joel Silveira e outros intelectuais envolvidos na imprensa, como Carlos Lacerda, Samuel Wainer, Rivadavia de Souza e Edmar Morel, são parte da leitura que o historiador empreende em sua pesquisa. Ao que indica, a imagem sugerida neste estudo, parte dos jogos de poder para definir os lugares ocupados durante o período ditatorial, quando os atores utilizam da memória como ferramenta de construção da imagem pública.

No segundo capítulo, intitulado, “Nasce um jornalista: a experiência em Dom Casmurro”, o autor aprofunda seu olhar a respeito do trabalho de Silveira neste importante jornal opositor do Estado Novo. O Dom Casmurro tornou-se um veículo expressivo, desde os primeiros números, naquele fatídico ano de 1937. Fundado por dois conhecidos escritores, Brício de Abreu e Álvaro Moreyra, o jornal trouxe um profícuo debate a respeito da cultura brasileira, com forte ênfase na política inscrita nas questões estéticas. Mesmo ao afirmar-se contrário através do seu primeiro editorial, o Dom Casmurro, entrou na vida cultural brasileira, como forma de inscrever-se politicamente, como bem discutiu Ferrari. A longevidade desse periódico que remonta o período do Estado Novo, bem como, o jornal Diretrizes, sinaliza para a força do debate político que ali transcorria.

Joel Silveira aparece nas páginas do Dom Casmurro ainda em 1937, recém-chegado de Aracaju, e inicia sua participação como jornalista na redação. Ele aproveitou para inserir-se numa ampla rede de intelectuais que colaboravam neste jornal, que de certa forma dava espaço ao campo literário. Na realidade, a promoção intelectual de Joel Silveira, deveu-se, sobretudo, a um espaço de aperfeiçoamento de sua linguagem nos anos em que passou neste jornal; ele escreveu em diversos gêneros literários, como conto, crônicas, poesias, nas várias secções do periódico, sempre utilizando a seu favor o tom confessional, que marcou toda sua trajetória. Essa tática foi utilizada para analisar personagens históricos como Maria Antonieta, por exemplo, num intuito de trazer ao debate político a punição num período censório. Infelizmente, Ferrari pensa nos personagens utilizados por Joel Silveira nos artigos, nestes termos: “o conjunto desses artigos não possuía um objetivo com contornos definidos” III. Na sua acepção, os textos tratavam somente de uma estratégia de encontrar um espaço no jornal. É permissível pensar também que, Joel Silveira além de referendar o importante biografo de Maria Antonieta, Stefan Zweig, utilizou-a para denunciar a atitude impiedosa com os revoltosos. O certo é que, Silveira não escrevia nenhum texto sem uma resoluta estratégia política, no caso da rainha, o problema apontado para época foi à frivolidade. Ou seja, a escrita de perfis por Joel Silveira transita por um ato politico por excelência; entendendo assim, toda a escrita,IV como escrita política.

No último capítulo, intitulado, “Nasce um repórter: a atuação em Diretrizes”, Danilo Ferrari concluiu sua análise ao pensar o tempo de trabalho de Joel Silveira na revista Diretrizes. Antes, ele traz um apanhado interessante sobre esse periódico, ao discutir o papel político deste órgão inicialmente pró Vargas. Dirigido por Azedo Amaral e Samuel Wainer, o jornal, que saiu em abril de 1938, tornou-se espaço de trabalho de Joel Silveira no final de 1940. Apesar de sua vertente autoritária, na pessoa de Azedo Amaral, Diretrizes não manteve um discurso acolhedor das ingerências do Estado Novo. Entre os muitos colaboradores deste periódico, estavam os que não concordavam com a política de repressão, como “Graciliano Ramos, Gilberto Freyre, Rachel de Queiroz, Artur Ramos, Augusto Frederico Schmidt, Cassiano Ricardo, Sérgio Milliet, Manuel Bandeira, José Lins do Rego entre outros” V.

A mudança de Joel Silveira da revista Dom Casmurro para Diretrizes enquadra-se no momento de afirmação como repórter, segundo Danilo Ferrari. Neste novo espaço, Silveira escreveu uma das reportagens mais célebres do jornalismo brasileiro em 1943; “Granfinos em São Paulo”, chegou ao público como uma reportagem bem humorada dos ricos paulistanos e das figuras que mantinham a sociedade de luxo: os operários fabris. Nestas, e em outras reportagens de Joel Silveira, o elemento que traz o debate é a relação entre reportagem e ficção. Neste contexto, o historiador faz menção ao conceito de reportagem ao refletir, por exemplo, as contribuições de Paulo BarretoVI, o João do Rio.

De fato, nas primeiras décadas do século XX, o autor de A Alma encantadora das Ruas (1914-1917) delineou uma busca do repórter pelo ritmo frenético da rua. Apesar disso, é preciso considerar que a tradição do literato envolvido com jornalismo tem uma longa história no jornalismo inglês, quando pensamos em Charles Dickens, ao sair às ruas de Londres perseguindo as diversas ocupações da cidade. O uso das ferramentas literárias nas reportagens não denotou, desde Dickens, numa falta de rigor objetivo e factual; as imbricações de linguagens estiveram no fazer jornalístico, como em outros campos do pensamento. No século XIX, as ruas de Londres e Paris propiciaram na multidão, o espetáculo da pobrezaVII sem precedentes na história. Pensemos, por exemplo, em Jack London, quando se imiscuiu entre os moradores de ruas em Londres e escreveu o aclamado O povo do abismo (1903). Ou até, George Orwerll com os seus relatos sobre a experiência de mergulhar na pobreza extrema nos anos 1920, em Paris e Londres. Todos esses exemplos asseguram o caráter de proximidade entre o escritor e a reportagem e do uso das ferramentas literárias nestes relatos. Por isso, acredito que é necessário transpor as barreiras geográficas e perceber esse movimento de construção de um gênero difuso, pouco ortodoxo.

Com este estudo importante sobre a trajetória de Joel Silveira, a historiografia deixa os receios de trabalhar um autor não consagrado pelo cânon literário; é possível observar, então, novos sopros nos estudos de autores pouco celebrados. A contribuição desta leitura alarga a amplitude dos objetos de pesquisas, pois, problematiza uma percepção míope da trajetória deste escritor. O livro, então, debate sobre autoimagem, mas, sobretudo, nas memórias que Silveira escreveu como estratégia de endossar sua inserção profissional como repórter e, em sequência, recontar sua versão de um tempo passado e vivido, nesta era do testemunho.

Notas

2 FERRARI, Danilo Wenseslau. A atuação de Joel Silveira na imprensa carioca (1937-1944). São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012. p.40.

3 FERRARI, Danilo Wenseslau. A atuação de Joel Silveira na imprensa carioca (1937-1944). São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012. p. 81.

4 RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. Tradução de Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.

5 FERRARI, Danilo Wenseslau. A atuação de Joel Silveira na imprensa carioca (1937-1944). São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012, p.144.

6 CAMILOTTI, Virgínia C. João do Rio: ideias sem lugar. Uberlândia: EDUFU, 2008.

7 BRESCIANI, Maria Stella Martins. Londres e Paris no século XIX. O espetáculo da pobreza.10ª. Reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 2004.

Referências

BRESCIANI, Maria Stella Martins. Londres e Paris no século XIX: O espetáculo da pobreza. 10ª. Reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 2004.

CAMILOTTI, Virgínia C. João do Rio: ideias sem lugar. Uberlândia: EDUFU, 2008.

FERRARI, Danilo Wenseslau. A atuação de Joel Silveira na imprensa carioca (1937-1944). São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012.

FONTES, Amando. Os Corumbas. Rio de Janeiro: Schmidt, 1933.

LONDON, Jack. O Povo do Abismo. Tradução de Ana Barradas. Lisboa: Antígona, 2002.

RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. Tradução de Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.

RIO, João do. A Alma encantadora das ruas. (Org.) Raul Antelo, São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

SILVEIRA, Joel. Desespero. Novela. Aracaju, 1936.

SILVEIRA, Joel. Florentino Menezes: ensaio. Aracaju: Ávila, 1934.

SILVEIRA, Joel. Onda raivosa. Contos. Rio de Janeiro: Editora Guairá. 1939.

SILVEIRA, Joel. Na Fogueira: Memórias. Rio de Janeiro: Mauad, 1998.

ORWELL, George. Na pior em Paris e Londres. Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

ZWEIG, Stefan. Maria Antonieta. Retrato de uma mulher comum. Tradução de Irene Aron. Rio Janeiro: Zahar Editor, 2013.

Cleverton Barros de Lima – Mestre e doutorando em História pela UNICAMP, na área Política, Memória e Cidade. Bolsista FAPESP, e-mail: [email protected].

Acesso à publicação original

A Poverty of Rights: Citizenship and Inequality in Twentieth-Century Rio de Janeiro – FISCHER (RBH)

FISCHER, Brodwyn. A Poverty of Rights: Citizenship and Inequality in Twentieth-Century Rio de Janeiro. Stanford, California: Stanford University Press, 2008. 488p. Resenha de: OLIVEIRA, Samuel Silva Rodrigues de. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.33, n.66, jul./dez. 2013.

O livro A Poverty of Rights: Citizenship and Inequality in Twentieth-Century Rio de Janeiro é o resultado da tese defendida por Brodwyn Fischer, em 1999, na Universidade Harvard. A autora analisa o processo de formação dos direitos na organização do Estado e da sociedade brasileira e os conflitos de classe, raça e gênero que permearam a constituição do espaço urbano carioca.

Por eleger como cerne de sua análise os embates estruturados no cotidiano dos pobres do Rio de Janeiro, A Poverty of Rights é uma contribuição original à história social da pobreza urbana. O trabalho relaciona-se à renovação da historiografia em tempos recentes, dando destaque ao tema das favelas. Como observou Brum,

se a história urbana e, em especial, a história da cidade do Rio de Janeiro se consolidaram como campo de pesquisa institucionalizado de historiadores a partir da década de 1980, será apenas na primeira do século XXI que começou a tomar corpo uma produção dos programas de pós-graduação em história em que a favela é tomada como objeto de estudos históricos. (Brum, 2012, p.121)

Junto aos livros Um século de Favela (2001), organizado por Alba Zaluar e Marcos Alvito, Favelas Cariocas (2005), de Maria Lais Pereira da Silva, A invenção da favela (2005), de Lícia do Prado Valladares, e Favelas cariocas: ontem e hoje (2012), organizado por Marco Antônio da Silva Mello, Luiz Antônio Machado da Silva, Letícia de Luna Freire e Soraya Silveira Simões, a obra de Fischer inscreve-se na renovação dos estudos históricos sobre a cidade do Rio de Janeiro, tendo como eixo a problematização das práticas e representações da pobreza e do espaço urbano.

O diferencial da pesquisa de Fischer é o recorte temporal, o escopo de fontes que utiliza e a maneira como enfoca o tema da cidadania. Ao enfrentar uma questão de ampla tradição na História e nas Ciências Sociais que tratam do Brasil e da América Latina – a relação entre desigualdade, direito e espaço urbano –, Fischer desenvolve um argumento centrado em processos que transcorreram entre a década de 1920 e o início da década de 1960. Esse foi o período de rápida urbanização, industrialização e expansão dos subúrbios, favelas e outras formas urbanas. O corte temporal também se justifica em vista da estrutura de poder que presidiu o campo político carioca. Desde a primeira Constituição republicana (1891) até 1960, o Rio de Janeiro tinha um prefeito indicado pelo presidente e aprovado pelo Senado, elegia vereadores para o legislativo municipal e deputados e senadores para o legislativo federal. Sendo a capital da República, as reformas no sistema político encontravam ampla repercussão e expressão na vida política e cultural da cidade. Além disso, o governo de Lacerda (1961-1965) foi um marco para os estudos sobre a pobreza urbana no Rio de Janeiro: ao iniciar uma política de remoção que culminaria no despejo parcial ou completo de cinquenta a sessenta favelas (atingindo cerca de 100 mil pessoas), alterou profundamente a rotina e a conformação do espaço urbano carioca.

Além do recorte temporal, a autora usa diversos tipos de documentos para desenvolver o seu argumento. Uma vez que as classes subalternas não deixam arquivos organizados que informem sobre suas práticas, justifica-se o uso de sambas, jornais, fotografias, discursos políticos, relatórios de agências do poder público, projetos de lei, legislação, cartas e processos de justiça, entre outros documentos, para compreender as estratégias dos pobres na conquista da cidadania. O material acumulado pela autora é eclético, encontra-se disperso numa miríade de lugares e instituições, e estabelece vários filtros culturais para representar a pobreza urbana. Somente com a leitura de um caleidoscópio de registros, somada à análise da bibliografia específica sobre a relação entre direito e cidadania, consegue-se colocar em pauta problemas relevantes na análise da sociabilidade e das práticas dos grupos subalternos.

Para analisar o corpus documental heterogêneo que acumulou, a autora organizou a análise em quatro partes que possuem certa autonomia, cada uma das quais é constituída por dois capítulos. Na primeira parte, intitulada “Direitos na Cidade Maravilhosa”, analisa o processo de formação do espaço urbano do Rio de Janeiro e a classificação das formas de habitar da população pobre. Interessa à autora salientar como a construção do status de ilegalidade para as formas de habitar e viver na cidade, a restrição do espaço político dominado pela interferência do governo federal e as legislações restritivas ao crescimento das favelas contribuíram para a reprodução de uma incorporação clientelista dos pobres na política urbana. Na segunda parte, intitulada “Trabalho, Direito e Justiça Social no Rio de Vargas”, Fischer tem como principal material de análise as cartas enviadas para o presidente Getúlio Vargas. A promulgação da legislação trabalhista, o discurso varguista incorporando o trabalhador na comunidade política nacional, e as estratégias dos grupos populares para conquistar direitos sociais são o eixo de sua análise. Na terceira parte, intitulada “Direito dos pobres na Justiça Criminal”, a autora analisa a forma como o crime era definido por critérios do sistema jurídico e de uma moralidade popular, e como esse jogo de força foi alterado pela reforma do Código Penal na década de 1940, com o surgimento da noção de ‘vida pregressa’. Na última parte, intitulada “Donos da Cidade Ilegal”, Fischer analisa os conflitos pela terra e pelo direito à moradia travados na zona rural e nas favelas do Rio de Janeiro.

A “Era Vargas” (1930-1945) foi um período de grandes transformações no que toca o direito da classe trabalhadora. Esse fato político e social já foi analisado por diferentes autores, constituindo-se em uma questão clássica para a historiografia brasileira. Fischer consegue trazer uma novidade para o tema, pois não restringe a análise ao direito social e político, mas aborda como as reformas penal e urbanística do Rio de Janeiro também afetaram a cidadania dos grupos populares. Destarte, a política de massa e o Código Eleitoral de 1932, o direito à cidade e o Código de Obras de 1937 do Rio de Janeiro, o direito civil e o Código Penal de 1940, e o direito social e a Consolidação das Leis Trabalhistas (1943) são os eixos de sua análise, como fica evidenciado na divisão das partes do livro.

A autora mostra que a conquista de direitos para os ‘pobres’, para os trabalhadores informais e parcela significativa da população brasileira sem registro civil delineou-se em situações de grande ambiguidade. Longe de desenvolver uma narrativa linear da evolução do Estado e da sociedade na sedimentação dos direitos, como na análise clássica de T. H. Marshall em Cidadania, classe social e status, ou de incorporar o discurso das ideologias políticas que transformaram Vargas em um mito, a autora apresenta a contingência das situações vivenciadas pelos ‘pobres’. Preocupa-se com a forma pela qual as pessoas com baixa educação formal e com pouco poder econômico e político construíram várias estratégias para lutar por direitos, sempre marcadas pela contingência de suas vidas e experiências sociais.

Ao sublinhar o processo de formação dos direitos e da cidadania, Fischer enfatiza que os pobres “formam a maioria numérica em várias cidades brasileiras, e eles compartilham experiências de poucas conquistas, exclusão política, discriminação social e segregação residencial”, conformando “uma identidade e em alguns momentos uma agenda comum” (Fischer, 2008, p.4). Ela compreende que esse grupo não tem sido pesquisado de forma verticalizada, visto que a história social do período posterior à década de 1930 tem privilegiado a análise da consciência da classe trabalhadora, dos afrodescendentes, dos imigrantes estrangeiros e das mulheres. Segundo a autora,

a verdade é que no Rio – como em outros lugares, da Cidade do México a Caracas, a Lima ou Salvador – nem raça, nem gênero, nem classe trabalhadora foram identidades generalizadas e poderosas o suficiente para definir a relação entre a população urbana pobre e sua sociedade circundante, durante a maior parte do século XX. Muito poucas pessoas realmente pertenciam à classe trabalhadora organizada; muitas identidades raciais e regionais competiram umas com as outras em muitos planos; muitos laços culturais, econômicos e pessoais vinculavam os mais pobres aos clientes, empregadores e protetores de outras categorias sociais; também muitos migrantes foram para a cidade para alimentar suas esperanças. O povo pobre no Rio compreendeu a si mesmo, em parte, como mulheres e homens, em parte como brancos e negros, nativos ou estrangeiros, classe trabalhadora ou não. Mas eles também se entenderam como um segmento específico, simplesmente como pessoas pobres tentando sobreviver na cidade. (Fischer, 2008, p.3, tradução nossa)

Nesse sentido, Fischer também enfatiza que a experiência da pobreza urbana não pode ser reduzida à definição de classe trabalhadora no sentido clássico do marxismo. Ao reduzir a experiência da pobreza urbana a uma situação de classe, corre-se o risco de perder as dimensões étnicas, raciais e de gênero que moldam as identidades e as relações tecidas com as variadas instâncias sociopolíticas. A desigualdade social foi tomada no livro como uma condição que atravessa diversos tipos de situações e que perpassa transversalmente as relações tecidas na sociedade e no Estado brasileiros.

Por tudo isso, A Poverty of Rights constitui um importante trabalho para a renovação dos estudos sobre a cidadania no período posterior à década de 1930 e da história social da pobreza urbana no Rio de Janeiro.

Referências

ALVITO, M.; ZALUAR, A. (Org.) Um século de favela. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001.         [ Links ]

BRUM, Mario Sergio Ignácio. Cidade Alta: história, memórias e estigma de favela num conjunto habitacional do Rio de Janeiro. (Prefácio de Paulo Knauss). Rio de Janeiro: Ponteio, 2012.         [ Links ]

MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.         [ Links ]

MELLO, M. A. da Silva; MACHADO DA SILVA, L. A.; FREIRE, L. L.; SIMÕES, S. S. (Org.) Favelas cariocas: ontem e hoje. Rio de Janeiro: Garamond, 2012.         [ Links ]

SILVA, Maria Lais Pereira da. Favelas Ccariocas (1930-1964). Rio de Janeiro: Contratempo, 2005.         [ Links ]

VALLADARES, Lícia do Prado. A invenção da favela: do mito de origem à favela.com. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2005.         [ Links ]

Samuel Silva Rodrigues de Oliveira – Doutorando, Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais, Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC-FGV). Bolsista Faperj. E-mail: [email protected].

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Religiões e cidades, Rio de Janeiro e São Paulo | C. Mafra e R. de Almeida

Qual é a religião de uma cidade? Em um país de uma cultura tão rica e complexa como a nossa, essa pergunta é muito difícil de responder, e, em se tratando das duas nossas maiores metrópoles, Rio de Janeiro e São Paulo, a resposta parece impossível de conseguir.

Isso se pensarmos em uma religião, mas, quando ampliamos o leque religioso e deixamos que ele se abra para outras religiões, percebemos uma multiplicidade de crenças. É isso que propõe o livro Religiões e cidades, Rio de Janeiro e São Paulo, uma coletânea do núcleo de antropologia urbana da Universidade de São Paulo que aborda as múltiplas crenças que encontramos no Rio e em São Paulo. Leia Mais

Educação e reforma: o Rio de Janeiro nos anos 1920- 1930 – VIDAL (HH)

VIDAL, Diana Gonçalves (org.). Educação e reforma: o Rio de Janeiro nos anos 1920- 1930. Belo Horizonte: Argvmentvm; São Paulo: CNPq: USP, Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em História da Educação, 2008, 176 p. Resenha de: SHUELER, Alessandra Frota Martinez. Novas perspectivas sobre as reformas educacionais no Rio de Janeiro (1920-1930). História da Historiografia. Ouro Preto, n. 7, p. 312-317, nov./dez. 2011.

Comemorar onze anos de existência do NIEPHE – Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em História da Educação (Universidade de São Paulo), eis o objetivo do livro Educação e reforma: o Rio de Janeiro nos anos 1920- 1930, organizado por Diana Gonçalves Vidal. Publicada pelo núcleo com recursos do CNPq, em parceria com a editora Argvmentvm, a obra reúne um conjunto de artigos resultantes da produção acadêmica, das práticas de investigação e das reflexões teórico-metodológicas elaboradas no âmbito do grupo de pesquisa, por professores e estudantes de graduação e de pós-graduação.

É possível observar a densidade do investimento de pesquisa realizado pelo NIEPHE e a articulação das propostas de investigação desenvolvidas e concretizadas ao longo dos onze anos de existência. No campo da história da educação, os integrantes do grupo, sob a coordenação de Diana Vidal e Maurilane Biccas, agregaram-se não somente em torno de temáticas, temporalidades ou de interesses afins. Sobretudo, compartilharam e produziram problemas de pesquisa e questões teórico-metodológicas. O próprio processo de constituição do NIEPHE, como grupo de investigação em História da Educação, sua trajetória, diversidade, produção e contribuições para o campo, é ricamente narrado na introdução pela coordenadora e organizadora da coletânea, Diana Gonçalves Vidal.

Na apresentação, a autora expõe como o seu trabalho inicial com o acervo pertencente ao Arquivo Fernando de Azevedo (Instituto de Estudos Brasileiros/ USP) foi importante para a emergência de perguntas e do interesse historiográfico sobre a gestão carioca do escolanovista. Na análise de documentos diversos (leis, relatórios, programas de ensino, impressos em geral, entre outros), integrantes do acervo documental da reforma azevediana, observava-se a força do tom renovador, a intenção de modernizar e transformar a realidade, a cultura das escolas do Rio de Janeiro. O tom reformista conjugava-se com o diagnóstico sobre o atraso, sinalizando o estado deplorável do ensino na cidade nos anos que o antecederam. Diante das tradicionais casas de escola, geralmente, alugadas e consideradas inespecíficas para o trabalho de ensinar, uma das tarefas do diretor geral da Instrução Pública se consubstanciava na construção de prédios escolares próprios, modernos e adaptados aos fins do ensino.

Não por acaso, esse modo de construir a memória educacional tem estado reiteradamente presente na historiografia da educação brasileira. As décadas de 1920 e 1930, contemplando o período de maior efervescência e impacto das reformas estaduais, chamadas de escolanovistas, foram consideradas por seus próprios agentes como marcos de origem. Momento de grande empreendimento público e social em prol da educação, os anos de 1920 e 1930 foram identificados com as luzes e a modernidade, em detrimento das sombras, e das tradições, dos primeiros anos de instabilidade republicana e do período imperial, prescritos como tempos de ausências no que tange à educação e aos processos de escolarização. Tal chave interpretativa, que ainda pode ser lida em manuais de história da educação consumidos por professores em formação, nos cursos de graduação (licenciaturas) e nas escolas normais, é problematizada pelo conjunto de artigos da coletânea. Neles, os autores analisam, sob variadas perspectivas e a partir de diversas fontes documentais, as realizações da reforma educacional, atentando, porém, para o complexo processo de construção de representações culturais e sociais, bem como para a construção de uma determinada memória sobre a administração azevediana.

Os eixos de investigação que orientaram as pesquisas desenvolvidas no NIEPHE fertilizaram e mobilizaram intensamente o campo da história da educação brasileira. Participando ativamente do debate no interior da produção historiográfica em educação, o grupo contribuiu, entre outros aspectos, para a construção de abordagens centradas na cultura e nas práticas escolares, compreendendo que, na cultura escolar, há sempre um espaço de negociação “entre o imposto e o praticado, e, mesmo, de criação de saberes e fazeres que retornam à sociedade, seja como práticas culturais, seja como problemas que exigem regulação no âmbito educativo” (VIDAL; BICCAS 2008, p. 25). Nela, se pode perceber como foram constituídas as práticas escolares que “são modos de estar no mundo, de compreender a realidade e de estabelecer sentidos, partilhados social e historicamente” (VIDAL; BICCAS 2008, p. 25). Conhecer as práticas demanda o manuseio de documentos escolares, elementos que não são encontrados com facilidade como cadernos, diários e exames, por exemplo, que podem fornecer pistas dos assuntos ensinados em sala de aula, e ainda, a mobília e todo o conjunto de objetos e artefatos que fazem parte do universo escolar. Assim, o trabalho com os detalhes “permite reconhecer o passado na sua singularidade” (VIDAL; BICCAS 2008, p. 28) e a ampliação da abordagem “possibilita perceber permanências e avaliar mudanças” (VIDAL; BICCAS 2008, p. 28).

Outra categoria de análise problematizada pelo grupo, a de estratégias de escolarização, pode ser destrinchada em dois conceitos: escolarização, como empreendimento, principalmente, do Estado, mas também de movimentos sociais, indivíduos ou grupos específicos (operários, negros, imigrantes e outros); e estratégia, inspirado em Michel de Certeau (1994), que produz o “lugar de poder” pelo estrategista, que, por sua vez, busca exercer seu potencial de dirigir e regular as relações externas. Tais dispositivos analíticos têm permitido ao NIEPHE perscrutar a história da escola elementar, compreendendo essa instituição social nas suas regularidades e dessemelhanças históricas, em uma ampla perspectiva.1 O texto inicial assinado por Vidal e Biccas é de leitura fundamental para a compreensão do conjunto dos artigos reunidos em Reforma e educação, pois apresenta uma diversidade temática e de diferentes abordagens teóricas vistos nos artigos, que constituem produtos de teses, dissertações e monografias resultantes de pesquisas de iniciação científica, e apresentam um ponto de partida comum, ou seja, buscam realizar uma análise minuciosa das reformas educativas ocorridas nas décadas de 1920 e 1930, na cidade do Rio de Janeiro, 1 Para Vidal e Biccas, a escola elementar reuniu diversas denominações na história educacional brasileira: “aulas régias de primeiras letras, aulas nacionais de primeiras letras, escolas de primeiro e segundo graus, escolas primárias, escolas modernas, escolas de imigrantes, grupos escolares, escolas isoladas, dentre outras” (VIDAL; BICCAS 2008, p. 31).

então Distrito Federal. Tais reformas, geralmente identificadas como ícones de modernização e de renovação educacionais na sociedade brasileira, também foram reconhecidas pela apropriação, circulação e difusão de ideais e movimentos pedagógicos, políticos e filosóficos que, embora heterogêneos, foram denominados escolanovismos ou Escola Nova. Partindo dessa problemática central, os estudos, em sua maior parte, conferem destaque às relações entre educação e reforma, especialmente, ao período da administração de Fernando de Azevedo (1927-1930).

A seguir, o texto “A reforma de Fernando de Azevedo em artigos de imprensa e sua ação política na Diretoria de Instrução Pública do Distrito Federal (1927-1930)”, de André Luiz Paulilo aborda as estratégias políticas utilizadas por Fernando de Azevedo visando conferir legitimidade a sua ação frente ao cargo que acabara de assumir. O autor demonstra como as propostas do escolanovista emergiram do acompanhamento, e da apropriação estratégica, dos debates públicos sobre a educação escolar, difundidos nos periódicos cariocas.

Apenas para citar um exemplo, mencionamos a ocasião em que Azevedo, recorrendo ao artigo de Barbosa Vianna, veiculado no Jornal do Brasil, lança mão de seus argumentos para defender a necessidade de reduzir o número de professores da Escola Normal. Dessa forma, se apropriava do discurso da imprensa “também para produzir convencimento” (PAULILO 2008, p. 50) sobre suas proposições e reformas. Os jornais eram utilizados também como veículo de emissão do ideário, das notícias e dos feitos de sua gestão, bem como funcionavam como espaço de contestação, diálogo e discussão a respeito da política educacional azevediana. O artigo permite observar as estratégias políticas da administração pública de ensino, que se utilizou da imprensa como instrumento para “responder críticas e esclarecer problemas administrativos” (PAULILO 2008, p. 54), mas também como instrumento de divulgação dos empreendimentos reformistas de Azevedo.

Acompanhando a análise anterior, a reforma Fernando de Azevedo é analisada a partir da produção de um rico acervo fotográfico por Rachel Duarte Abdala, em “A fotografia além da ilustração: Malta e Nicolas construindo imagens da reforma Fernando de Azevedo no Distrito Federal (1927-1930)”. A imagem impressa, como documento monumental de uma política educacional, foi representada por Azevedo como registro da verdade, a verdade da reforma.

Por isso, tanto Augusto Malta, fotógrafo da prefeitura do Rio de Janeiro, quanto Nicolas Alagemovits, contratado para retratar artisticamente as obras empreendidas pela reforma azevediana, foram agentes fundamentais para captar, e fazer aparecer, as ações públicas, inclusive as construções dos novos prédios escolares. Para a autora, enquanto as fotografias de Malta se caracterizavam pela construção em ação, as de Nicolas, tinham cunho mais artístico, na medida em que realçavam o contraste entre as luzes, os enquadramentos oblíquos, as diagonais, recriando “a dimensão do real na representação fotográfica” (ABDALA 2008, p. 102). Desse modo, Fernando de Azevedo percebeu “o potencial do recurso fotográfico” (ABDALA 2008, p. 106) para conferir visibilidade à reforma educacional carioca e para construir representações sobre suas próprias ações.

O impacto social e as representações em disputa sobre tal reforma educacional foram problematizados por José Claudio Sooma Silva, no artigo “A reforma Fernando de Azevedo e o meio social carioca: tempos de educação nos anos 1920”. No trabalho, o autor se pergunta sobre os modos pelos quais a população do Rio de Janeiro lidava com o “tempo acelerado” das reformas, que aglutinava não apenas novas construções escolares na cidade, como novas formas de organização dos espaços urbanos e dos tempos sociais. O desejo de formar o cidadão, como projeto norteador da intervenção azevediana, tinha de lidar com as diversas práticas culturais presentes na cidade, incluindo as escolares. Silva interroga-se sobre as apropriações e as possíveis recepções da reforma educacional no âmbito das escolas. Aponta também para a existência de tensões entre as estratégias de renovações normativas das práticas educativas, presentes na legislação, e as práticas e saberes escolares preexistentes. Com isso, o autor recupera tentativas reformadoras anteriores, em especial aquelas realizadas na gestão de Antonio Carneiro Leão (1922- 1926). Os tempos escolares, desde o início da década de 1920, passaram por variadas modificações: nos horários de entrada e saída, nas divisões dos turnos e nos programas de ensino, entre outros. Lidar com o novo tempo escolar, que tensionava e concorria com outros tempos sociais, não era tarefa fácil. Muitas famílias resistiam ao tempo escolar imposto, como é possível observar pelos debates divulgados nos periódicos cariocas.

Focando as relações sociais de gênero, Rosane Nunes Rodrigues analisa as reformas educativas cariocas com destaque para a inserção dos saberes ditos domésticos e as representações do feminino na cultura escolar, em “A escolarização dos saberes domésticos e as múltiplas representações de feminino – Rio de Janeiro – 1920 e 1930”. A autora levanta questões sobre as práticas escolares que contribuíram para a construção de determinadas representações sobre a mulher. Ao ressaltar que a reforma educacional proposta por Azevedo também incluía o ensino profissional, objeto priorizado no estudo, a autora argumenta como essa política estava preocupada em “ocupar-se intensivamente da formação moral e intelectual do operário” (RODRIGUES 2008, p. 65). Com isso, no caso das mulheres, não bastaria que as moças recebessem o conhecimento técnico de sua futura profissão, mas que fossem educadas a se afastarem das “futilidades” e hábitos pouco saudáveis, como o uso de cigarros, compras em excesso e a circulação livre pela cidade. Os saberes domésticos, transformados em conhecimentos escolares, contribuíram para a formação de um modelo idealizado de mulher, que conduziria de forma disciplinada e honesta seu lar.

A temática disciplinar também pode ser vista no último artigo, “Por uma cruzada regeneradora: a cidade do Rio de janeiro como canteiro de ações tutelares e educativas da infância menorizada na década de 1920”, de Sônia Câmara. As ações disciplinadoras direcionadas à infância, na década de 1920, foram temáticas enfrentadas pela autora, que nos mostra como as iniciativas jurídicas, formuladas a partir da Lei Orçamentária Federal de 1921, e, posteriormente, o Código de Menores de 1927, propunham-se a alcançar a infância abandonada da capital. Com as mudanças na cidade e na educação, a infância pobre, desprovida de sorte, delinquente, deveria ser alvo de “intervenções científicas e racionais” para se tornar higiênica, saudável e disciplinada, de acordo com um discurso moral que apostava na infância como investimento para o progresso. Favoráveis a tais discursos, os juristas posicionaram-se como “arautos de um novo tempo” (CAMARA 2008, p. 152). Uma figura se sobressairia naquele momento, a saber, o juiz Mello Mattos, que trabalhou por configurar e atribuir uma nova feição à política judiciária de atendimento à infância carioca.

Política de forte caráter disciplinar, dirigida ao controle da infância, mais do que ao cuidado e/ou à proteção, conforme a perspectiva analítica privilegiada pela autora.

Após leitura acurada podemos dizer que a coletânea Reforma e educação nos presenteia com uma perspectiva ampliada sobre a complexidade dos movimentos de mudança educacional ocorrida nas décadas de 1920 e 1930.

Os pesquisadores, autores vinculados a um consolidado grupo de pesquisa, lidaram com uma diversidade de temáticas, categorias, questões e problemas teórico-metodológicos, manejando com competência uma documentação ampla, dispersa e variada, com destaque para periódicos, revistas, leis, programas curriculares, acervos institucionais e fotográficos. Em seu conjunto, essa documentação é interrogada, analisada a partir de uma operação historiográfica que é orientada pelas escolhas do historiador, pela busca de olhar, sob novos aspectos, antigos objetos, velhos documentos. Trouxeram à luz disputas, tensões, estratégias, apropriações e recriações a que são submetidas às reformas na experiência educacional, no espaço das escolas, nas práticas sociais e culturais. As reformas e as lutas educacionais dos anos de 1920 e 1930 surgem em seu movimento. Mas, nem por isso, silenciam ou apagam a história, a memória e as práticas educativas, escolares ou não escolares, de outros tempos históricos, com as quais convivem, dialogam, se hibridizam.

Referências

CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.

Alessandra Frota Martinez de Schueler – Professora adjunta Universidade Federal Fluminense [email protected] Rua Visconde do Rio Branco, 882, Campus do Gragoatá, Bloco D – Gragoatá 24210-350 – Niterói – RJ Brasil Ariadne Lopes Ecar Mestre Universidade do Estado do Rio de Janeiro [email protected] Rua São Francisco Xavier, 524, 12º andar – Maracanã 20550-013 – Rio de Janeiro – RJ Brasil

 

 

 

 

 

 

 

Visões do Rio de Janeiro colonial: antologia de textos (1531-1800) – FRANÇA (HH)

FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Visões do Rio de Janeiro colonial: antologia de textos (1531-1800). Rio de Janeiro: José Olympio, 2008, 356 p. Resenha de: GANDELMAN, Luciana. A cidade e o mar: o olhar dos viajantes sobre o Rio de Janeiro e os circuitos marítimos entre os séculos XVI e XVIII. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 7, p.325-330, nov./dez. 2011.

Um soldado alemão rumando para a região do Rio da Prata a serviço da Coroa espanhola. Um piloto francês embarcado nos sonhos da França Antártica. Um capitão holandês de uma fragata corsária retornando de confrontos com portugueses no Golfo da Guiné. Dois irmãos galegos marinheiros em viagem à Terra do Fogo, a serviço da Coroa espanhola, comandando uma tripulação portuguesa. Um poeta e suposto religioso inglês vira-mundo que chega ao Rio de Janeiro na fragata do recém-nomeado governador português. Um marinheiro inglês que chega ao Rio de Janeiro em uma embarcação de comerciante londrino com 500 pipas de vinho. Um engenheiro francês vindo à América do Sul, a mando do rei da França, para estabelecer uma colônia-presídio no estreito de Magalhães. Um tipógrafo alemão a caminho de uma missão inglesa na Índia, carregado de 250 cópias do Evangelho de São Mateus em português. Um pastor alemão em rota para a Índia abordo de um navio inglês, repleto de adoentados e esfomeados, que ancora na Guanabara. Degredados seguindo para cumprirem suas penas na Oceania. Franceses e ingleses se aventurando na empreitada da circum-navegação. Essa é uma amostra da grande riqueza de trajetórias cujos testemunhos nos oferecem a cuidadosa pesquisa histórica e seleção de textos empreendida por Jean Marcel Carvalho França em sua antologia: Visões do Rio de Janeiro colonial.

A cidade que emerge desses testemunhos também é múltipla e em transformação. E isto torna-se bastante claro quando percorremos as descrições selecionadas pelo organizador da coletânea. Segundo o poeta Richard Flecknoe, escrevendo em 1649, A cidade antiga, como testemunham as ruínas das casas e igreja grande, fora construída sobre um morro. Contudo as exigências do comércio e do transporte de mercadorias fizeram com que ela fosse gradativamente transferida para a planície. Os edifícios são pouco elevados e as ruas, três ou quatro apenas, todas orientadas para o mar (FRANÇA 2008, p. 43).

Nas palavras do comandante inglês John Byron, escritas em 1764, por sua vez, podemos entrever a cidade enriquecida do período posterior ao auge do ouro e de seu estabelecimento como cabeça de governo e um dos portos predominantes sobre o Atlântico: O Rio de Janeiro está situado ao pé de várias montanhas […]. É dessas montanhas que, por meio de um aqueduto, vem a água que abastece a cidade. […] O palácio (do vice-.rei), além de ser uma suntuosa construção de pedra, é o único edifício da cidade que conta com janelas de vidro, pois as casas só dispõem de pequenas gelosias. […] As igrejas e os conventos locais são magníficos. […] As casas, quase todas de pedra e ornadas com grandes balcões, têm em geral três ou quatro andares (FRANÇA 2008, p. 148-149).

A cidade se modifica, portanto, não somente diante dos diferentes olhares que seus observadores lançam sobre ela, mas também em virtude das intensas transformações enfrentadas por este porto de crescente importância na América portuguesa ao longo de três séculos. Constante nas observações dos viajantes é a menção à existência de numerosa população de escravos e agregados familiares, fossem estes de origem africana ou nativos e mestiços. Igualmente predominantes são as observações acerca das manifestações religiosas e as descrições de igrejas e mosteiro, sendo essas observações previsíveis em um grupo de viajantes estrangeiros, muitos deles protestantes. Uma bibliografia bastante extensa, produzida não só por historiadores, estabeleceu e estabelece ainda um profícuo diálogo com a literatura de viagens, ainda que focada especialmente na dos viajantes do século XIX, e já discutiu as implicações e os desafios daqueles que buscam trabalhar com o olhar dos viajantes.1 Conforme referenciado pelo autor em seu texto de introdução à antologia, a obra apresenta 35 descrições da cidade do Rio de Janeiro elaboradas por viajantes de diversas procedências, cujas viagens respondiam igualmente aos mais variados propósitos, sendo a primeira datada de 1531 e a última de 1800.

Trata-se da seleção de trechos de livros, cartas e escritos que fazem algum tipo de referência ao Rio de Janeiro e seu entorno. Alguns destes trechos já haviam sido transcritos ou referenciados por historiadores e memorialistas, sem, no entanto, contar com um trabalho tão circunstanciado de contextualização e organização. Cada relato é precedido por um breve, porém bem elaborado, artigo de introdução onde são oferecidas notas biográficas do viajante em questão e explicações acerca da viagem na qual se insere o relato. Reside nesses textos explicativos uma parte da preciosidade do trabalho feito por Carvalho França e que possibilita ao leitor um aproveitamento dos testemunhos que não se limita à descrição da cidade do Rio de Janeiro, mas que oferece também, por exemplo, pistas acerca dos circuitos mercantis do período, da organização da navegação e da paulatina reestruturação dos impérios ultramarinos no período moderno.

A escolha das edições foi cuidadosa e deu preferência, como afirma o autor, sempre que possível, às primeiras edições ou edições consideradas mais completas e cuidadas das obras. Característica essa confere à antologia um caráter bastante útil, não somente para o leitor em geral, mas também para o público acadêmico. Houve por parte do autor um investimento e uma preocupação com a elaboração das versões para o português, uma vez que se trata na sua quase totalidade de textos publicados em língua estrangeira, havendo, como este reconhece na introdução, a modificação dos mesmos em nome da clareza da leitura. Isto significa que, se para o leitor em geral o texto ganha em facilidade de compreensão, para o especialista pode tornar necessário o cotejamento com os originais.

Organizados em ordem cronológica, os 35 testemunhos selecionados pelo autor podem ser divididos da seguinte maneira: 1) três são anteriores à União Ibérica e estão concentrados nas décadas de 1530-1550; 2) dois devem ser situados no período do domínio filipino; 3) dois são marcados pelo contexto dos conflitos da chamada Guerra de Restauração, entre 1640 e 1668; 4) um, pertencente a François Froger, diz respeito justamente à década das primeiras descobertas na região mineradora e aponta notícias, inclusive, sobre a região de São Paulo; 5) dois relatos são das primeiras décadas do século XVIII, sendo um deles testemunha da invasão francesa liderada pelo capitão Duguay-Trouin; 6) cinco testemunhos encerram a primeira década do século XVIII, incluindo os cruciais anos do governo de Gomes Freire de Andrade, 1º Conde de Bobadela, que se encerraria com a transformação da cidade em cabeça do governo geral do Estado do Brasil, já no governo de Antônio Álvares da Cunha; 7) vinte dos relatos dizem respeito à segunda metade do século XVIII e testemunham o definitivo adensamento da presença de reinos europeus, como a Inglaterra, na Ásia e na Oceania.

O espaço da resenha seria pequeno para tentarmos mapear devidamente os contextos aos quais pertencem todos esses depoimentos e suas respectivas implicações para esses mesmos relatos. Deve-se destacar, entretanto, a amplitude cronológica e histórica dos testemunhos reunidos.

Publicado pela primeira vez em 1999, e contando presentemente com a terceira edição de 2008,2 a antologia proposta por Jean Marcel Carvalho França tem por objetivo tirar as descrições do Rio de Janeiro da obscuridade e do desconhecimento. Os testemunhos selecionados, entretanto, como argumenta o próprio organizador, não se limitam a descrições acerca da cidade e seu cotidiano, muitas vezes nos dão indicações acerca da visão que esses europeus registraram da natureza circundante e do próprio continente americano de maneira mais ampla. Além disso, o leitor passa a conhecer bastante as características do porto da cidade e suas condições de navegação. Pode-se dizer que a obra cumpre seus objetivos e justifica, desta maneira, as reedições disponíveis, bem como as que futuramente sejam realizadas com o intuito de garantir aos leitores e pesquisadores acesso a esse rico acervo de testemunhos.

Para concluir, cabem alguns breves comentários suscitados pela própria fertilidade da antologia reunida na obra resenhada. França nos apresenta mais do que a riqueza das descrições da cidade do Rio de Janeiro e seu entorno, revela-nos igualmente um pouco das mudanças sofridas no papel da América dentro do Império colonial português e mesmo a transformação dos circuitos comerciais, da navegação e do papel desempenhado por outras nações europeias no desenvolvimento dos demais circuitos coloniais do período. Esse verdadeiro mosaico contradiz, de certa maneira, as próprias alegações de França quando este, na introdução, ressalta a política “ciumenta” da Coroa portuguesa e o consequente isolamento de sua colônia americana em relação a seus visitantes estrangeiros. Mesmo quando os testemunhos nos deixam entrever as cautelas e receios de governadores e representantes régios ou colonos em comercializar e permitir contato com navegadores e embarcação de súditos de outros 2 A antologia de França foi desdobrada ainda em outra importante seleção de relatos de viajantes, ver: FRANÇA 2000.

monarcas, a própria riqueza dos depoimentos e das circunstâncias que os envolvem nos permite pensar mais em conexões do que em isolamento.

Conexões, circulação, alianças, confrontos e compromissos, às vezes os mais improváveis, fizeram parte desse universo, como procuramos destacar no início deste texto. Entre o “ciúme mercantilista” e os entrecruzamentos de uma aventura ultramarina que se constrói por meio de diferentes níveis de interdependência e que se espalha concomitantemente nas mais diversas direções, encontramos, para retomarmos uma imagem de A. J. R. Russell-Wood, um mundo em movimento (RUSSELL-WOOD 2006). São justamente esses movimentos conectados, em alusão ao conceito de Sanjay Subrahmanyam, que aparecem belamente representados em Visões do Rio de Janeiro colonial (SUBRAHMANYAM 1999).

Referências

BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos viajantes. 3 vols. São Paulo: Metalivros, 1994.

FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Outras visões do Rio de Janeiro colonial: antologia de textos (1582-1808). Rio de Janeiro: José Olympio, 2000.

GALVÃO, Cristina Carrijo. A escravidão compartilhada: os relatos de viajantes e os intérpretes da sociedade brasileira. Dissertação de mestrado. Campinas: IFCH/ UNICAMP, 2001.

KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

LEITE, Miriam L. Moreira. Livros de viagem (1803-1900). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.

LISBOA, Karen M. A nova Atlântida de Spix e Martius: natureza e civilização na viagem pelo Brasil (1817-1820). São Paulo: Hucitec, 1997.

MARTINS, Luciana de Lima O Rio de Janeiro dos viajantes: o olhar britânico (1800-1850). Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

RUSSELL-WOOD, A. J. R. Um mundo em movimento. Lisboa: DIFEL, 2006.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

SELA, Eneida Mercadante. Desvendando figurinhas: um olhar histórico para as aquarelas de Guillobel. Dissertação de mestrado. Campinas: IFCH/ UNICAMP, 2001.

______________________. Modos de ser, modos de ver: viajantes europeus e escravos africanos no Rio de Janeiro (1808-1850). Campinas: Ed. da UNICAMP, 2008.

SLENES, Robert W. A Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava – Brasil sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

SUBRAHMANYAM, Sanjay. Connected histories: notes towards a reconfiguration of Early Modern Eurasia. In: LIEBERMAN, Victor (ed.). Beyond binary histories: re-imagining Eurasia to c. 1830. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1999, p. 289-316.

VIANA, Larissa Moreira. As dimensões da cor: um estudo do olhar norte americano sobre as relações interétnicas, Rio de Janeiro, século XIX. Dissertação de mestrado. Niterói: UFF, 1998.

Notas

1 Gostaria de citar entre outros: BELLUZZO 1994; GALVÃO 2001; KARASCH 2000; LEITE 1997; LISBOA 1997; MARTINS 2001; SCHWARCZ 1993; SELA 2001; SELA 2008; SLENES, 1999; VIANA 1998.

Luciana Gandelman – Professora adjunta Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro [email protected] Km 07 da BR 465 23890-000 – Seropédica – RJ Brasil Palavras-chave América portuguesa; Colônia; Relatos de viajantes.

Les larmes de Rio. Le dernier jour d’une capitale (20 avril 1960) – VIDAL (H-Unesp)

VIDAL, Laurent. Les larmes de Rio. Le dernier jour d’une capitale (20 avril 1960). Paris: Éditions Flammarion, 2009, 254p. Resenha de: LEMES, Fernando Lobo. Les larmes de Rio. Le dernier jour d’une capitale (20 avril 1960). História [Unesp] v.30 no.1 Franca Jan./June 2011.

Constantinopla, Bizâncio e Istambul. Nomes diferentes para uma mesma cidade que ocupou, sucessivamente, a posição de capital de três grandes impérios: o romano, o bizantino e o otomano. Guardadas as devidas especificidades, a cidade do Rio de Janeiro também atravessou o tempo, através de um percurso que lhe emprestou uma feição muito particular: capital e ponto de convergência no centro-sul da América, no contexto do Império português, posteriormente, capital do Império e, mais tarde, capital e espaço de gestação da nova ordem republicana. Preservando sempre o mesmo nome, atravessou três grandes momentos da história do Brasil, sempre na posição privilegiada conferida pelo status de cidade-capital. Contudo, em 20 de abril de 1960, o Rio de Janeiro vive um acontecimento decisivo: a partir deste dia, não será mais a capital do Brasil. Os elementos que lhe conferem a condição de capital abandonam a cidade para se instalar em Brasília, novo símbolo da modernidade brasileira.

É sobre este evento particular que mergulha Laurent Vidal. Tomando o acontecimento como uma espécie de cruzamento de itinerários possíveis, o autor delineia uma narrativa que revela de forma surpreendente as expressões e os gestos dos atores que viveram aquele momento na cidade do Rio de Janeiro: as encenações elaboradas pelas elites políticas, os testemunhos dos cidadãos comuns e as palavras dos poetas, marcados por sentimentos e emoções que compunham a crônica de uma despedida anunciada.

A mobilidade das capitais ou sedes de governos foram registradas com certa frequência na história das cidades. Assim, desde os Impérios da Antiguidade às dinastias medievais europeias, o nomadismo de imperadores e monarcas sempre dificultou a identificação de suas capitais a uma cidade específica. Na história do Brasil, a transferência de capitais de uma cidade para outra, foi uma constante. Basta lembrar a mudança da capital, sede do vice-reinado, da cidade de Salvador para o Rio de Janeiro, em 1763. Mais tarde, seguindo uma tendência cada vez mais rara, este fenômeno se multiplica sobre o território nacional: as capitais das províncias do Piauí e Sergipe são transferidas, respectivamente, da cidade de Oeiras para Teresina, em 1852, e de São Cristóvão para Aracajú, em 1855. Em Minas Gerais, Ouro Preto perde seu estatuto de capital para Belo Horizonte, em 1897. Em Goiás, a capital é transferida de Vila Boa para Goiânia, inaugurada em 1942.

Embora frequente na história, a transferência do poder político (e das instituições que o acompanham) de uma cidade para outra nunca foi objeto de uma encenação especial. Da mesma forma, mesmo que alguma manifestação tenha sido organizada nestas ocasiões, jamais foi singular o suficiente para atrair a atenção dos contemporâneos ou de historiadores. Reside aqui um dos méritos da obra de Laurent Vidal: sua originalidade.

Les larmes de Rio constitui-se, certamente, na primeira referência, na historiografia das cidades, que não se detém apenas na avaliação da transferência institucional dos poderes políticos de uma cidade para outra. Mais que isso, trata-se de um estudo inédito que elege como objeto o momento da retirada dos aparatos políticos institucionais, lançando luzes sobre as estratégias utilizadas para a transferência das instituições que legitimam e revestem a cidade de sua condição de capital. Por meio de uma análise refinada pelos recursos metodológicos que utiliza, Laurent Vidal traz à superfície de suas reflexões os efeitos e as especificidades que fazem deste fenômeno um acontecimento singular e excepcional.

O interesse e o ponto de vista adotados pelo autor têm implicações mais amplas para a historiografia, pois fazem deste episódio um caminho privilegiado para observar as relações entre cidade e poder, a partir de um viés absolutamente inovador: abandonando a perspectiva positiva que aproxima cidade e poder, comumente associada às narrativas de fundação de cidades e das entradas triunfais (que já mobilizaram vasta literatura), Laurent Vidal lança um outro olhar sobre o tema, privilegiando o aspecto do distanciamento entre a cidade e o poder, consagrando como ponto de inflexão o momento em que o poder deixa a cidade. O maior mérito, contudo, desta perspectiva, que insiste em desvendar os laços e as conexões que se desfazem, pondo em evidência um processo fatal de separação, é apresentar a cidade como espaço de predileção do político, reatando, ao mesmo tempo, o seu vínculo indissolúvel, pois é no espaço real e virtual da cidade que se afirma o poder político.

Mas esta separação entre o político e a cidade implica sobretudo numa passagem: o poder federal deixa o Rio de Janeiro e, ao mesmo tempo, o antigo Distrito Federal deve desaparecer para dar nascimento a uma nova capital. A passagem do poder do Rio a Brasília. Não se trata, no entanto, de um simples traslado das instituições existentes no Distrito Federal. Afinal, a capital não é apenas o lugar de concentração dos órgãos da administração que constituem a natureza visível do poder político, é também um reservatório de forças de ordem espiritual. Neste sentido, a autoridade e a natureza do poder que legitima a cidade enquanto capital informa, antes de tudo, a existência de elementos e dados imateriais. É isto, exatamente, que estimula o esforço de Vidal.

Para além das provas materiais da transferência da capital, é necessário apontar os indícios e os efeitos do deslocamento deste poder imaterial, promovendo uma imersão no mundo dos sentimentos e emoções, perseguindo a ressonância dos acontecimentos no universo afetivo e sensível dos protagonistas. Em meio a uma confusão de sentimentos, as lágrimas são perceptíveis nos olhos da população do Rio. Assim, para emergir à superfície da história, o acontecimento deve se realizar no interior de percepções diversificadas e simultâneas que reenviam ao domínio dos afetos. Na narrativa de Laurent Vidal, a emoção parece constitui-se em um dos componentes da inteligência, onde os afetos assumem papel fundamental1.

Mas passagens deste tipo, como lembra o autor, são sempre acompanhadas de cerimoniais bem definidos. Na Roma Antiga, por exemplo, havia mesmo um deus que as governava: Janus, o deus de duas faces, uma voltada para o futuro e outra para o passado, deus dos começos e das passagens, da mudança e da transição, guardião dos cruzamentos, que abre e fecha as portas, vigia as entradas e as saídas. Coincidentemente, ao presidir a passagem do poder do Rio para Brasília, é esta a função que deve assumir Juscelino Kubitschek. É por isso que a despedida do Rio de Janeiro não poderia se limitar a um simples adeus. A morte de uma capital federal implica um luto cuja dimensão pouco banal o grande maestro da mudança tinha perfeita consciência. Era preciso velar pela passagem, afastando os fantasmas das incertezas e preencher os vazios deixados pela partida anunciada do poder.

Assim, a morte iminente da capital nacional seria acompanhada pelo anúncio do nascimento de outra capital: a do Estado da Guanabara. À ausência de um poder corresponderia a emergência de novas instâncias políticas. Contudo, como o destino não tem a pretensão de submeter rigorosamente os acontecimentos, deixa sempre um espaço vazio, uma margem de indefinição entre os episódios2, um inventário aberto de possibilidades. Por isso, seria Juscelino Kubistchek, presidente da república e idealizador de Brasília, encarregado de pacificar esta passagem, este momento incerto, organizando os cerimoniais da transferência da capital como um drama antigo, atuando, ao mesmo tempo, como autor, diretor e ator principal.

Fazendo do drama um mecanismo que permite compartimentar a trama vivida naquele 20 de abril, Vidal não despreza as dimensões sociais e a diversidade dos grupos existentes. De fato, percebe que o drama vivido pelos atores é entrecortado por uma situação de conflito que opõe, na malha dos tempos múltiplos da experiência coletiva, as várias figuras da vida social a um obstáculo comum3. Produzido socialmente, o acontecimento é apropriado de modos diferentes pelo conjunto dos grupos sociais, multiplicando leituras, sentimentos e percepções.

As variadas leituras do evento presentes nos discursos, nas falas e testemunhos, revelam, por outro lado, um outro recurso inovador utilizado pelo autor: uma sociologia da espera4. Neste episódio anunciado e vivido previamente, como é o caso da construção de Brasília e da transferência da capital federal, o estatuto do acontecimento existe antes mesmo que ele se produza de fato, levando o presente que se desenrola aos olhos dos indivíduos a estar subordinado ao futuro. Assim, o horizonte da espera também faz parte das lógicas mentais e organiza parte significativa do acontecimento5. Neste caso, o lapso de tempo que separa o anúncio e os preparativos para a mudança da capital e sua transferência propriamente dita é revestido de uma essência muito particular: descolado de uma cronologia ordinária, este intervalo se diferencia por um ritmo e uma amplitude própria. Portanto, este tempo de espera excita os atores, produz representações carregadas de sentidos, estimula esperanças, projetos, angústias, medos e inquietações. Estas emoções que afloram neste tempo virtual, ainda não realizado, são tomadas pelo autor como um horizonte da experiência dos agentes do drama, enquanto termômetro que permite medir a temperatura dos sentimentos coletivos na cidade.

Do nosso ponto de vista, é a arquitetura do acontecimento que parece sustentar o empreendimento de Laurent Vidal. Sua narrativa parte do pressuposto que o acontecimento tem uma duração que ultrapassa a simples temporalidade dos fatos que o constituem, como se o olhar do autor atravessasse longitudinalmente a cena, expondo o acontecimento em toda a sua riqueza e complexidade, pensando “através” das coisas e dos casos. Deixando nas estantes toda uma bibliografia que prega que a história é uma continuidade que se desdobra num tempo homogêneo, o autor parece denunciar o tempo vivido na história enquanto uma catarata de tempos6, em que múltiplas temporalidades coexistem e constituem uma mesma trama, interferindo nas percepções possíveis do atores.

Neste caso, num primeiro momento, o acontecimento aparece carregado de percepções e sensibilidades gestadas antes mesmo de sua plena efetivação. Em seguida, no interior do tempo peculiar ao evento propriamente dito, os agentes que o produzem ou a ele estão submetidos o fazem num contexto temporal e histórico que contém ao mesmo tempo seu passado, sua genealogia, sua forma presente e suas visões do futuro. Desta forma, seguindo a trilha deixada por Laurent Vidal e inspirados pelas ponderações de Arlette Farge, vemos que o acontecimento apenas pode ser definido a partir de um sistema complexo de temporalidades7.

Proposta de tal envergadura será, certamente, muito apreciada entre historiadores europeus e brasileiros que assistem, atualmente, ao advento de novas vias que se abrem à história social das cidades. Os novos trilhos para história urbana do Brasil devem provocar estudos mais atentos à multiplicidade dos tempos e dos ritmos sociais, colocando no centro das atenções dos pesquisadores os pontos e contrapontos das identidades e as incertezas das configurações socioespaciais na cidade8Les larmes de Rio confere ao autor outros dois méritos indiscutíveis: primeiro, como guia que indica um caminho a seguir por entre as trilhas renovadas da história das cidades. Segundo, como autor que nos convida para um passeio incontornável por entre os traços, indícios e pistas deixados pelos protagonistas que viveram o último dia do Rio como capital federal.

Esta saída do poder político da cidade é narrada em duas partes principais. A primeira, “Quando o poder deixa a cidade”, divide-se em oito capítulos que, após apresentar os atores principais, eleva as cortinas para descrever o cenário de uma separação dramática. Em quatro atos, desvenda a profundidade dos gestos e palavras utilizados por Juscelino Kubitschek, agentes políticos e a grande imprensa, cujo objetivo visa desfazer os laços complexos que ligam a cidade aos organismos que lhe conferem o estatuto de capital. Na segunda parte, intitulada “Poétique de L’événement”, dividida em quatro capítulos, o autor dialoga com as fontes históricas e os protagonistas da época buscando pôr em evidência as diversas leituras realizadas pelos contemporâneos. Oferecendo a palavra aos poetas, explora seus testemunhos e suas imagens, mesclando suas intuições com as emoções suscitadas pela proximidade do evento anunciado. Assim, procura esboçar o que denomina poétique de l’événement, método ou maneira para se construir um caminho o mais próximo possível do acontecimento, visando desvelar não o seu sentido, mas o modo como ele nos afeta. Se é da obra dos poetas que nascem as primeiras lágrimas do Rio, após a partida da capital serão eles os profetas que anunciarão a ressurreição de uma cidade renovada. Mas esta é apenas uma entre as leituras possíveis do livro de Laurent Vidal. Les larmes de Rio certamente vai estimular outras interpretações na medida em que o leitor aceitar o desafio de revisitar este momento crucial para a história da cidade maravilhosa.

Notas

1 Arlette Farge, « Penser et définir l’événement en histoire ». In: Terrain, nº 38, Qu’est-ce qu’un événement ? (mars 2002), [En ligne], mis en ligne le 06 mars 2007. URL : http://terrain.revues.org/index1929.html. Consulté le 11 octobre 2010, p. 6.         [ Links ]

2 Yves-Marie Berce, “Conclusion : vide du pouvoir. Nouvelle légitimité”. In: Histoire, économie et société. 1991, 10e année, nº 1. Le concept de révolution. pp. 23-25.         [ Links ]

3 Jean Duvignaud, Introduction à la sociologie, Gallimard, Paris, 1966, p. 77.         [ Links ]

4 Laurent Vidal, Mazagão, la ville que traverssa l’Atlantique. Du Maroc à l’Amazonie (1769-1783). Aubier, Paris, 2005.         [ Links ]

5 Arlette Farge, « Penser et définir l’événement en histoire », op. cit., p. 6.         [ Links ]

6 Expressão que emprestamos de Siegfried Kracauer. Siegfried Kracauer, L’histoire. Des avant-dernières choses. Stock, Paris, 2006, p. 272.         [ Links ]

7 Arlette Farge, « Penser et définir l’événement en histoire ». In: Terrain, nº 38, Qu’est-ce qu’un événement ? (mars 2002), [En ligne], mis en ligne le 06 mars 2007. URL : http://terrain.revues.org/index1929.html. Consulté le 11 octobre 2010.         [ Links ]

8 Laurent Vidal, “Os ‘trilhos’ da história do Brasil urbano”. In: Ler História, nº 48, 2005, pp. 75-85. Aqui, p. 85.         [ Links ]

Fernando Lobo Lemes – Doutorando em História. IHEAL – Institut des Hautes Études de l’Amérique Latine Université Sorbonne Nouvelle/Paris 3 [email protected].

Escravizados e livres: experiências comuns na formação da classe trabalhadora carioca | Marcelo Badaró Mattos

Durante décadas, os pesquisadores avaliaram que o nascimento da classe trabalhadora brasileira foi epifenômeno mecânico das determinações estruturais: o florescimento do capitalismo industrial e a expansão do trabalho assalariado, após o fim do sistema escravista. Essas duas determinações estruturais teriam exacerbado a luta de classes ou, antes, engendrado a própria classe trabalhadora, que, nesse processo, adquiriu consciência de seu papel histórico, fundando sindicatos e partidos classistas na transição do século XIX para o século XX. Portanto, a formação da classe trabalhadora brasileira estava inextricavelmente ligada ao trabalho industrial-fabril e operário. O trabalhador livre e o trabalhador escravo no Brasil eram abordados, quase que invariavelmente, numa relação de dicotomia fixa, como duas categorias antagônicas e dissociadas, que jamais se aproximavam ou entrecruzavam em termos de vivências e experiências político-culturais.

Talvez, por isso, durante um longo tempo os especialistas da história social do trabalho ficaram apartados dos especialistas da história da escravidão. Os primeiros, quando investigavam a formação da classe trabalhadora brasileira, costumavam negligenciar a participação dos escravizados e ex-escravizados no processo. Já os segundos não davam a devida importância às experiências escravas no processo social do trabalho. Felizmente, esse panorama vem mudando, e as falsas dicotomias sendo superadas. Os historiadores estão cada vez mais se convencendo de que essas duas áreas de estudos e pesquisas são confluentes, entrelaçam-se, tecem interconexões, devendo, portanto, ser tematizadas de forma dialógica. Leia Mais

As transformações dos espaços públicos, imprensa, atores políticos e sociabilidades na cidade imperial (1820-1840) | Marco Moreil

A partir de meados da década de 1990, a historiografia luso-brasileira tem visitado o tema “da emergência e ordenação do império luso-brasileiro à definição do império do Brasil” – assunto correlato surge nos estudos históricos hispano-americanos, sobretudo à luz da obra de François-Xavier Guerra. Neste prisma, o livro se insere como poucos e areja suas abordagens. Primeiro, por centrar-se nas agitadas décadas de 1820-1840 no Rio de Janeiro. De antemão, busca não projetar a corte para todo o Brasil, como se um fosse gêmeo do outro ou mera decorrência. Antes, considera o Rio de Janeiro uma cidade imperial. Esta acepção, nada ingênua, remete a uma geografia do poder, que se almeja centralizado-e-centralizador em um vasto território, conforme as inspirações literárias e históricas de então do Império Romano. As palavras, as ações e as propostas empreendidas na cidade imperial – simultaneamente, corte da monarquia constitucional – reverberavam com maior contundência na Europa, em especial em Portugal, e no próprio Brasil. Por outro lado, o debate internacional acerca do liberalismo constitucional, do ideário contra-revolucionário, das memórias e das narrativas sobre as experiências políticas nas Américas e na Europa encontrava aí alargada recepção, divulgação, (re)tradução e (re)apropriação. Neste sentido, o Rio de Janeiro gozava de um forte apelo junto às elites locais e regionais do Brasil, sem que isto, obrigatoriamente, implicasse uma posição unânime e coerente dos atores políticos. Morel logo esclarece: nesse período e nessa cidade, chegou-se, às vezes, a duvidar da pertinência e da necessidade de se lutar e manter a integridade e a unidade do território brasileiro. Em miúdos, não reafirma a idéia de que uma outra parte do Brasil – por suposto, as regiões Norte, Nordeste e Sul – postularia uma quebra ou uma reorganização do território político e uma redefinição da autonomia política de cada uma. Longe disto, tal possibilidade efetiva atravessava a pauta política no Rio de Janeiro. Em circunstâncias tão delicadas e específicas das décadas de 1820-1840, Morel estuda a emergência da modernidade política no Rio de Janeiro. Nessa medida, data o surgimento de tal modernidade e marca as balizas internas dessa periodização. Leia Mais

O imaginário da cidade. Visões literárias do urbano | Sandra Jathay Pesavento

Gravuras, desenhos e fotografias mostrando os vários lugares e espaços originais das cidades de Paris, Rio de Janeiro e Porto Alegre, em meados do século XIX e inícios do XX, compõem o livro Imaginário da Cidade. Visões literárias do urbano, de Sandra Jatahy Pesavento2. Algumas dessas imagens nos remetem à Paris de 1739 a 1876, aos sobrados sombrios das ruas Marmousets, Pirouette e de la Colombe – hoje desaparecidas em função das reformas urbanas. Outras revelam paisagens de Porto Alegre (no início do século XX) e do Rio de Janeiro (na segunda metade do século XIX). O mercado público, as praças e as ruas da capital gaúcha são flagrados em sua modesta suntuosidade por fotógrafos desconhecidos. A modernidade da Avenida Central da cidade carioca, com seus suntuosos palacetes, se justapõe aos registros de moradias populares (como os cortiços) e da destruição de morros da cidade – cenas captadas pelas lentes das câmeras de Victor Frond, Marc Ferrez e Augusto Malta. Leia Mais

Fundação Ataulpho de Paiva — Liga Brasileira contra a Tuberculose: um século de luta | Dilene Raimundo Nascimento

O livro de Dilene Nascimento acompanha a trajetória da Fundação Ataulpho de Paiva ao longo de um século de existência, desde o surgimento da Liga Brasileira contra a Tuberculose, em 4 de agosto de 1900, até o tempo presente, apontando suas perspectivas. Contudo, muito mais que “conhecer” a história da luta contra a tuberculose no início do século XX, seu trabalho nos permite refletir sobre a relação entre a filantropia, a assistência médica e o Estado ao longo deste período.

A Liga Brasileira contra a Tuberculose, criada no Rio de Janeiro, reunia médicos, higienistas, intelectuais, membros da alta sociedade carioca que buscavam a cura desta doença, bem como sua profilaxia. O debate em torno desta doença era grande desde o final do século XIX, tanto na Academia de Medicina quanto na imprensa quotidiana. Nesta época, foi criada uma comissão chefiada por Domingos Freire para ir à Alemanha estudar a eficácia terapêutica da tuberculina de Koch, recém-descoberta (1890) e, logo depois, o Jornal do Commercio patrocinou experiências com a tuberculina de Koch nas enfermarias da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro. Toda esta ambiência criou um espaço propício para a reunião de um grupo de médicos e intelectuais em torno da idéia, lançada em 1899 por Cypriano de Freitas na Academia de Medicina, de se fundar um órgão específico para o combate da tuberculose. Deste “marco zero” à atuação contemporânea da Fundação Ataulpho de Paiva, é uma longa jornada. Leia Mais

Tropical Versailles: empire, monarchy, and the portuguese Royal Court in Rio de Janeiro – SCHULTZ (VH)

SCHULTZ, Kirsten. Tropical Versailles: empire, monarchy, and the portuguese Royal Court in Rio de Janeiro, 1808-1821. New York: Routledge, 2001. Resenha de: NEEDELL, Jeffrey. Varia História, Belo Horizonte, v.17, n.25, p. 255-258, jul., 2001.

Redefinindo a Monarquia em uma Sociedade Escrava1

É um antigo lugar comum observar a particularidade estabilidade política do Brasil no século dezenove. Normalmente, se discute que isso deriva de circunstâncias singulares da conquista da sua independência com a manutenção das instituições e do herdeiro da monarquia Portuguesa no Rio de Janeiro. É sempre sugerido que a estabilidade deveu-se, assim, muito ao fato de que as estruturas políticas e sociais da colônia brasileira se mantiveram relativamente intactas devido a essa singular transição. A bem sucedida história intelectual e cultural da Corte Real no exílio, de Schultz, deixa de lado esses lugares comuns ao examinar o quanto a monarquia mudou e como essa mudança foi percebida entre 1808 e 1822, e a forma com que essas mudanças foram vistas e se manifestaram no pensamento e no dia-a-dia.

Por mais que esse estudo se deva aos últimos dez ou vinte anos da moderna história cultural, ele se baseia em um estudo muito meticuloso de fontes de arquivos e trabalhos contemporâneos publicados. De fato, algumas das preocupações centrais do livro são baseadas na minuciosa leitura de correspondência particular e do Estado, registros policiais, teatro e literatura, panfletos de política contemporânea e da coleta invejável de outras fontes publicadas da época, tanto em Portugal quanto no Brasil. Além disso, Schultz lucrou com a recente preocupação de seus colegas em torno dessa época, citando um número de trabalhos recém-publicados e teses não publicadas e dissertações no Brasil e nos Estados Unidos. Também merece comentários a imparcialidade de suas análises e conclusões. Por mais provocativos que fossem os assuntos, ela transporta a perspectiva dos contemporâneos com cuidado e chega a sua própria avaliação com criteriosa objetividade.

Inevitavelmente há imperfeições. Na minha leitura, elas parecem se acumular no terceiro capítulo, onde, freqüentemente, uma ou duas fontes são a única evidência para o pensamento ou a resposta a um número de pessoas (e. g., pp. 73-74, 78-80, 81, 85), ou no terceiro e quinto capítulos, onde as citações nem sempre suportam o peso das interpretações (e. g., 73-75, 103,164, 166). Também me pergunto porque, em um livro em que se faz tão boas observações com tão boas evidências, a autora se sinta obrigada a citar tantos autores recentes no texto (ao invés de fazer nas notas) para apoiar seus argumentos ou sugerir questões em comum. Mas nenhuma dessas faltas ocasionais é de importância no argumento central do livro, e elas são um pequeno preço a se pagar pela informação, pela análise e pelas sugestões que a autora nos dá aqui.

A contribuição do livro deve ser entendida no contexto historiográfico. Pode-se dizer que o sentido político da monarquia Brasileira sofreu terrivelmente de uma extrapolação ahistórica, na contramão do seu sucesso histórico. Isto é, a unidade da América Portuguesa depois da independência e a sua relativa estabilidade política tendem a serem dadas por certas. A maioria dos historiadores, por algum tempo, gastou sua energia em estudar a monarquia posterior, para entender a passagem do regime, ou, mais freqüentemente, eles compreenderam a história política da monarquia como algo que não mudava e se concentraram na análise de história social ou econômica, particularmente, sobre a escravidão e a abolição. Essas modas vêm se revertendo vagarosamente tanto no Brasil, quanto nos Estados Unidos.

José Murilo de Carvalho teceu competentemente uma elegante análise política das preocupações sócio-econômicas na publicação portuguesa de 1980 de sua dissertação feita em Stanford em 1974. Em 1985, Emilia Viotti da Costa retrabalhou muitos dos seus artigos originais em uma história do império; em 1988, Roderick Barman nos forneceu uma impecável narrativa política explicando a formação nacional entre a última década do século dezoito e 1853. Richard Graham tentou fazer um modelo provocativo do comportamento político nos níveis local e nacional, em 1990. Outros se ativeram a análises políticas mais particulares, como Thomas Flory, em 1981, sobre a ideologia e as reformas da oposição liberal dos anos de 1820 e 30. Neill Macaulay escreveu um delicioso estudo revisionista do primeiro imperador, em 1986. Eul-Soo Pang tentou desenvolver um entendimento da nobreza, em 1988, Barman forneceu aguda e completa biografia do segundo império, em 1999, e , no mesmo ano, Judy Bieber publicou estudo de caso da história política e comportamento no interior de Minas Gerais. Artigos bastante recentes de Jeffrey Mosher e Jeffrey Needell sugerem livros a serem publicados sobre a história política de Pernambuco e do Partido Conservador , respectivamente, e também temos artigos e livros de autoria de Hendrik Kraay (2001) e Peter Beattie (2001) interligando a instituição da monarquia, o exército, à história política e social do regime. No Brasil, o trabalho de Carvalho foi precedido por uma rica e pioneira antologia a respeito da independência, editada por Carlos Guilherme Mota em 1972, e então seguido pelo ambicioso estudo de Ilmar Rohloff de Mattos, sobre a ideologia do estado, em 1990. Em 1998, temos a sofisticada análise da cultura pública da monarquia colonial tardia e da recém-proclamada monarquia nacional de Iara Lis Carvalhos Souza e o tour fascinante de Lilia Moritz Schwartz sobre cultura pública e a iconografia do Segundo Reinado. Em 1999,Cecilia Helena de Salles Oliveira forneceu sua análise investigativa dos interesses sócio-econômicos influenciando a independência; em 2000, Isabel Lustosa publicou sua instigante análise da imprensa periódica política da segunda década do século dezenove, porta-voz dos interesses e das ideologias dominantes.

Em uma frase, o magistral trabalho de tais pioneiros como Murilo de Carvalho, Viotti da Costa, e Barman nos permitiu atacar partes menores de um todo, suprimindo muito que era pobre e superficialmente entendido. O livro de Schultz é, então, apenas a última contribuição à redescoberta e reavaliação da história política da monarquia. É, no entanto, especialmente convincente na metodologia, informando sua idéia e a centralidade do seu foco. A transição Portuguesa e Brasileira para monarquia constitucional e a independência foram habilmente traçadas por Macaulay e contribuintes da antologia de Mota (particularmente Maria Odila Leite da Silva Dias, Francisco D. Falcon e Ilmar Rohloff de Mattos), e Barman, entre outros. Estes, e mais recentemente Salles Oliveira, já nos serviram com narrativas políticas detalhadas e análises baseadas em fatos sobre a transição em termos de ideologia, contingência política e interesses sócio-econômicos. A contribuição de Schultz está em ir além dos eventos e das forças sócio-econômicas ou políticas dirigindo-nos a um entendimento de como a transição ocorreu na experiência vivida no centro político do Brasil.

Shultz faz essas coisas quando amarra a análise arquivística típica da melhor historiografia tradicional com as inovadoras preocupações dos estudos de cultura política comuns entre os novos historiadores. Ela o faz em um estudo de como a fuga e o exílio da Corte Portuguesa levou a uma reavaliação e reconstrução da instituição da monarquia em uma época revolucionária e em uma sociedade escravista marcada por distinções raciais. Os capítulos são organizados cronologicamente, amarrando questões chave: o impacto do exílio na natureza do império Português e a legitimidade da monarquia, a metamorfose do posto de vice-rei do Rio de Janeiro na Corte de um império, o impacto da proximidade monárquica dos seus vassalos americanos, a ambigüidade do papel da monarquia com respeito à instituição da escravidão, a metamorfose do comércio do Atlântico e o papel dos brasileiros, portugueses e ingleses em tudo isso e o desafio do constitucionalismo liberal na antiga metrópole e no novo reino do Brasil.

Nesses capítulos ela demonstra que o exílio transformou a monarquia de um regime absolutista Europeu com colônias no além-mar em uma regenerada, até mesmo nova, monarquia e então, finalmente, em uma instituição constitucional tentando conter revoluções políticas e equilibrar os reinos de ambos os lados do Atlântico. Ao fazê-lo, ela explora a forma com que discourso político e cerimonial indicam e incorporam as mudanças e desafios da época, e são refletidos nos usos da monarquia, no aparecimento da cidade, nas medidas de repressão e controle dos escravizados, na correspondência e nos memorandos dos oficiais e cortesãos da Coroa e na percepção e controle dos pobres e cativos. Essa aproximação cultural e íntima leitura ideológica são contribuições inovadoras com claro potencial para futuros trabalhos de outros historiadores. De fato, isso é algo que Schultz faz alusão quando nota que muitas das contradições da transição da monarquia foram legadas de forma intacta ao Império do Brasil. É um livro bem vindo, escrito claramente, vigorosamente discutido, e potencialmente seminal. Certamente vai resistir.

Nota

1 Em parceria com H-LatAm e H-Net.

Jeffrey Needell – History Departmente/University of Florida/USA.

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[DR]

 

Famílias Abandonadas: Assistência à criança de camadas populares no Rio de Janeiro e em Salvador – séculos XVIII e XIX | Renato Pinto Venâncio

A infância como objeto de pesquisa dos historiadores só apareceu com o livro de Philippe Ariès, L’enfant et la vie familiale sous l’Ancien Régime (Paris: 1960). Na seqüência dos estudos relativos à criança, surge o interesse pela história das crianças enjeitadas ou abandonadas, como nos referimos atualmente.

Na década de setenta, refletindo a atenção que historiadores e principalmente historiadores-demógrafos davam ao tema da criança (abandonada ou não), foi publicado pela Societé de Démographie Historique um número consagrado ao novo campo de investigação que se abria: a história da infância. Leia Mais

O Rio de Janeiro e a Conjuntura Atlântica / Corcino M. dos Santos

Fruto de esmerada pesquisa, “O Rio de Janeiro e a Conjuntura Atlântica” situa-se na linha de pesquisa científica percorrida e iniciada pelos historiadores franceses Fernand Fruto de esmerada pesquisa, “O Rio de Janeiro e a Conjuntura Atlântica” situa-se na linha de pesquisa científica percorrida e iniciada pelos historiadores franceses Fernand Dividido em três capítulos, ordenadamente, o autor nos passa uma nítida noção da importância do Oceano Atlântico, da posição geográfica do Porto do Rio de Janeiro e das condições de seu aportamento. Num segundo momento, temos elencado o movimento de embarcações e de mercadorias chegando-se a questões de ocupação do solo e de estrutura fundiária, até às condições da Alfândega do Porto do Rio de Janeiro. O Capítulo III trata da navegação de longo curso e comércio internacional.

O livro é ainda leitura imprescindível para todos aqueles estudiosos dos primórdios do africanismo no Brasil. Assim, pontos como a mortandade de escravos em viagem, o comércio com portos de escravos e o atraso de Angola em benefício do Brasil são pormenorizadamente descritos. Um outro item importante é o comércio com as colônias espanholas do rio da Prata e a questão das fronteiras: “O vice-rei D. Nicolas de Arredondo se preocupou muito mais com as fronteiras por considerá-las grandes caminhos para o Brasil. Visava evitar a saída de prata, gado, couros, cavalhadas e mulas e ao mesmo tempo conter a introdução de mercadorias de contrabando” (p.183), bem como o comprometimento do “coronel Rafael Pinto Bandeira, processado pelo seu grande envolvimento com os espanhóis” referente à “prática constante do contrabando público” (p.191).

Três anexos referentes à relação dos gêneros e fazendas próprias do consumo do rio da Prata e Reino do Peru; produção da América Meridional, via Montevidéo e Bueno Aires com os preços correntes à época e a pauta da Alfândega do Rio de Janeiro de 1766-1799, encerram o volumoso estudo.

O resultado do trabalho de Corcino Medeiros dos Santos é analítico, lúcido e interpretativo, enriquecendo os estudos sobre o fortalecimento do capitalismo moderno, produção e circulação de riquezas. Com belíssima capa de Victyor Burton, ilustrada com vista de uma esquadra inglesa na Baía de Guanabara (séc. XVIII), editado pela Expressão e Cultura, constitui um magnífico exemplo de tentativa do que George Lluppert denominou de “1’idée de lliistoire parfaite.”.

Luciara Silveira de Aragão e Frota.


SANTOS, Corcino Medeiros dos. O Rio de Janeiro e a Conjuntura Atlântica. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1993. Resenha de: ARAGÃO E FROTA, Luciara Silveira de; Textos de História, Brasília, v.1, n.2, p.157-160, 1993. Acessar publicação original. [IF]