Garota/mulher/outras | Evaristo Bernardine

Garota, mulher, outras é um romance arrebatador. Vencedor do Booker Prize em 2019 – uma das mais importantes premiações da Inglaterra – é de ler com a alma, leitura de fazer reverberar nossas memórias e histórias – mesmo as que ainda vamos querer (re)descobrir.

A autora, atualmente com mais de sessenta anos, é inglesa de ascendência nigeriana – seu pai é filho de um homem retornado do Brasil escravocrata e sua mãe, uma mulher branca. Sua trajetória cultural e politicamente engajada se faz no teatro, em projetos editoriais, na literatura e como professora de escrita criativa na Brunel University London e, antes disso, desenvolveu, de 2011 a 2015, um curso de escrita de ficção na University of East Anglia. Em seu portfólio, ela mesma se declara uma contadora de histórias ao tratar em seus romances da complexidade que envolve discussões sobre raça, cultura, gênero, história e sexualidade, a partir de uma mirada afrodiaspórica que conecta passado e presente, diálogos intergeracionais e inter-raciais e misturam vidas em diferentes espaços do mundo, sempre de maneira inusitada, explorando as possibilidades de criar, de brincar.

O livro é ambientado em uma Londres que vive realidades pós-Brexit – referendo que, em 2016, votou pela saída do Reino Unido da União Europeia –, processo que precarizou ainda mais a vida das pessoas, em especial negras e migrantes, que sentiram na pele os efeitos das desigualdades em todas as dimensões. A narrativa diz de corpos dissidentes que enfrentam o cotidiano em busca de dar sentido às suas existências. São sonhos, os de ontem, os de hoje, que marcam projeções, projetos. E a busca de afetos, de amizade, amor – em meio a conflitos, tensões, contradições – com ou sem serenidade, coragem ou medo.

O oitavo livro de Bernardine Evaristo revela o ousado projeto literário da autora desde a dedicatória

Para as irmãs & manas & minas & monas & as mulheres & mulherxs & mulherões, & a mulherada toda & nossos manos & chegados & parças & bróders & nossos homens & caras & pessoas LGBTQI+ da família humana

A dedicatória anuncia a multivocalidade que, no decorrer de muitas páginas, trazem cenas que giram em torno de vidas que se fazem no entrelaçamento entre marcadores sociais vários presentes na pauta do dia, quando interessa discutir de identidades e diversidade. Diferentes fios que ligam tão diferentes histórias na diáspora negra.

O livro está organizado em cinco partes. As quatro primeiras trazem doze capítulos com os nomes de cada uma das garotas, mulheres outras: Amma e Yazz e Dominique e Carole e Bummi e La Thisha e Shirley e Winsone e Penelope e Megan/ Morgan e Hattie e Grace. Finalmente, vem “A festa” e “Epílogo”. São muitos modos e maneiras de vidas em trânsito, em contato, que se ancoram na busca de suas (in)completudes. Sem certezas. Engendram. Tentam. Testam. São vozes ruidosas lembrando rodas de conversa nas mesas de almoço nas casas das famílias numerosas em festas e comemorações, em velórios, em Áfricas ou na diáspora negra.

A história começa com o dia de estreia da peça A última amazona do reino de Daomé, escrita por Amma, a teatróloga negra que, mesmo depois de quarenta anos de produção e direção, está tensa e com receio das críticas, e se pergunta: “onde o National Theatre estava com a cabeça quando permitiu a entrada dessa impostora de quinta categoria?”. Logo depois se diz: “ah cala a boca, Amma, você é uma megera com anos de experiência, lembra?” (p. 13). E ela lembra sim e, revisitando sua trajetória, começa a contar suas experiências. Amma, mulher lésbica, amiga, filha, mãe de Yazz, com dezenove anos que mora fora e já cursa a universidade.

Conhecemos Yazz, sentada, a contragosto, num dos melhores lugares reservado por sua mãe na plateia do teatro. Aos poucos chegará boa parte da “família humana” nomeada na epígrafe. Yazz reza para que o espetáculo seja bem recebido pelo púbico e pela crítica, o que lhe poupará dores de cabeça, segurando a frustração de Amma, que demorou tanto tempo para conhecer o sucesso. Chega seu pai – que ela descobriu com pouco mais de dez anos ser gay – agora famoso autor de best-seller, palestrante de televisão e o primeiro professor da disciplina Vida Moderna do país, na Universidade de Londres, sem ter ganho a admiração dela por, entre outras razões, usar sempre e exclusivamente referências masculinas e brancas em seus programas acadêmicos. Diante disso, Yazz indica:

que tal bell hooks? Ela revidou, descendo rapidamente a lista de leitura do módulo “Gênero, Raça e Classe” no celular que tal Kwame Anthony Appiah, Judith Butler, Aimé Césaire, Angela Davis, Simone de Beauvoir, Frantz Fanon, Júlia Kristeva, Audre Lorde, Edward Said, Gayatri Spivak, Gloria Steinem, V.Y. Mudimbe, Cornel West e os outros? (p. 56)

Assim, as referências, acadêmicas ou não, elencadas por Yazz e outras que aparecerão ao longo do romance são posicionadas em favor da diversidade em diversos âmbitos, para além de raça, classe, gênero e sexualidade. Longe de ser apenas política de citação bastante reivindicada nos meios intelectuais, estão aplicadas às histórias que dão vida ao livro.

Encontraremos ao longo do romance uma das marcas de Bernardine: o chamado às agendas identitárias nos pequenos detalhes, nas nuances e nas grandes questões da vida sendo vida. No cotidiano de Dominique, comadre e amiga de Amma, que já não mora em Londres por ter que, literalmente, fugir de violências. Em Carole, amiga de Amma, bem-sucedida financeiramente e que ainda busca se livrar de traumas duros de seus tempos de adolescência. E Bummi, nigeriana, mãe de Carole, faxineira boa parte da vida e depois empresária no ramo, em busca de amores.

Também encontramos La Tisha, mulher batalhadora, mãe solo, que leva vida simples e já adulta, e sem saber estabelece um laço inusitado com Carole, sua antiga colega de escola. Ambas tiverem Shirley, uma profissional idealista e frustrada da educação, como professora na escola em que estudaram. Winsome, a mãe de Shirley, que surpreende quando se fala em amor e busca por felicidade. Penelope, que trabalha com Shirley e tem sua vida revirada com uma revelação que a pega se surpresa.

Também Megan/Morgan, uma pessoa não binária que revoluciona o seu entorno familiar e teve apoio de sua bisavó, Hattie, uma mulher negra que, com certa frustração, sente que sua família quer botar as mãos em sua propriedade. Uma propriedade que tem história longa vivida também por Grace, a mãe de Hattie.

Várias garotas, mulheres, outras com narrativas intensas e entrelaçadas por mínimas sinalizações que, no romance, diz do quanto estamos longe do “sim e do não” em meio a um sistema político e cultural que teima em nos cristalizar em lugares e papéis que nos desumanizam.

A última parte do romance nos leva com mais força aos ensinamentos de Sankofa, um dos símbolos do cosmograma Adinkra da África Ocidental, que nos aproxima da máxima das africanidades recriadas na diáspora pelas vozes das ancestralidades em nossos corpos que vêm sendo traduzidos livremente como “nunca é tarde para voltar ao passado para ressignificar o presente e reconstruir o futuro!” Uma história no presente, bordada com fios do passado num movimento de continuidade.

A compreensão dos capítulos não raro exige de quem lê retornar às páginas anteriores para poder seguir. O som de folhas indo e voltando nos acompanhará até o final do livro. São nomes, cenas, detalhes que aqui e ali, de forma recorrente, vão aparecendo em espiral, chamando uma a uma as pessoas da família humana para a roda de conversa.

Do projeto literário de Bernardine salta aos olhos a sua prioridade por usar letras maiúsculas apenas para os nomes de pessoas ou lugares, preferência também por uma escrita que hibridiza verso e prosa com pontuação requintada a imprimir ritmo e entonação ímpar aos fatos que se sucedem em meio à quase inexistência de fechos:

Carole atravessa a estação Liverpool Street com seus vidros intergalácticos e teto de aço sustentado por imponentes colunas coríntias está a caminho das escadas rolantes e das janelas altas que deixam entrar o brilho sagrado do sol da manhã ela passa por baixo do quadro de horários com a listagem das partidas e chegadas divulgadas através do brilho alfanumérico, o texto mudando e se atualizando enquanto os anúncios das caixas de som agrupadas abaixo informam aos passageiros os números das plataformas e detalham todas as estações nos trajetos até os destinos finais onde esse trem vai parar (p. 129)

As escolhas lexicais indicam conexões, circularidade, criam dinâmicas de provocações, deslocamentos, deslizamentos, camadas, e se firmam nos prendendo do começo ao término de um romance que tem apenas um único ponto final na última página.

Bernardine Evaristo mostra que não andamos sós, como nos diz por aqui Jurema Werneck.1 Tantas vozes ruidosas, trançadeiras e insubmissas aproximam o nome Evaristo – o de Bernardine Evaristo, mãe de Yazz, com o sobrenome de Conceição Evaristo, mãe de Yainá Evaristo. Conceição Evaristo que a cada dia se torna mais aclamada como intelectual, acadêmica, poeta e crítica literária, com produção incrível que diz de nós.

Em vários aspectos, os projetos literários das duas Evaristo se tocam. Por agora, podemos trazer de Conceição a obra Insubmissas lágrimas de mulheres, coletânea de contos cujos títulos também são nomes de mulheres: Aramides Florença, Natalina Soledad, Shirley Paixão, Adelha Santana Limoeiro, Maria do Rosário Imaculada dos Santos, Isaltina Campos Belo, Mary Benedita, Mirtes Aparecida da Luz, Líbia Moirã, Lia Gabriel, Rose Dusreis, Saura Benevides Amarantino, Regina Anastácia. Também todas elas reinventando maneiras de buscar humanidade.2

Nos aproximemos de Garota, mulher, outras. O romance precisa ser lido por todas as pessoas que estão na dedicatória feita por Bernardine Evaristo. Dá vontade de lermos e passarmos para outras mulheres de nossas rodas de amizade ou da família, impulsionando a busca de histórias, de memórias que nos tragam as noções de pertencer, não a um mundo de aprisionamentos e silenciamentos para pessoas ora guerreiras ora frágeis, mas que se acolham em suas contradições, em suas buscas de ser, sem final feliz, sem fixidez, sem rigidez

Garota, mulheres, outras convida corpos e corpas para ouvir e contar histórias que coloquem em circulação preciosidades que possam constituir futuros (im)possíveis.


Notas

1 Jurema Werneck, Maisa Mendonça e C. Evelyn White (orgs.), O livro da saúde das mulheres negras: nossos passos vêm de longe, Rio de Janeiro: Pallas e Crioula; San Francisco: Global Exchange, 2000.

2 Conceição Evaristo, Insubmissas lágrimas de mulheres, 2ª ed., Rio de Janeiro: Malê, 2016.


Resenhista

Ana Lúcia Silva Souza – Universidade Federal da Bahia. https://orcid.org/0000-0002-2459-2042


Referências desta Resenha

BERNARDINE, Evaristo. Garota, mulher, outras. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. Resenha de: SOUZA, Ana Lúcia Silva. Sobre nós: corpos e corpas que contam histórias! Afro-Ásia, 66, p. 740-745, 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

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