Gramsci: una nuova biografia A. D’orsi

O italiano Antonio Gramsci (1891-1937) pode ter seu pensamento caracterizado como essencialmente dialógico. Tendo sua personalidade intelectual construída em um período de crises marcado pela I Guerra e a ascensão do nacionalismo fascista, procurou dar respostas às questões de seu presente tanto no âmbito da elaboração intelectual como na política prática. Compreender seu pensamento exige conectá-lo com seu tempo histórico e assumir como premissa a dupla orientação de pensamento e ação que lhe marcou. Essa premissa pode parecer banal, mas devemos lembrar que se trata de uma produção mobilizada e disputada inicialmente pelo PCI (Partido Comunista Italiano) e depois pela leitura liberal estimulada especialmente a partir de Norberto Bobbio. Mais recentemente, conservadores radicais nos EUA e Brasil têm tratado a produção gramsciana como um tipo de manual que haveria orientado a esquerda em uma luta cultural, segundo esses conservadores vencida por seus antagonistas. Embora tais grupos e leituras não possam ter tratados como equivalentes, elas ilustram a persistente atenção a Gramsci e suas ideias, ainda que por vezes as mesmas sejam simplesmente instrumentalizadas ou intencionalmente distorcidas. Enfim, Gramsci está bastante vivo nos debates e controvérsia do tempo presente e não apenas no Brasil.

No âmbito da produção acadêmica, é importante notar que hoje ocorre o fortalecimento de uma agenda de pesquisa internacional pautada em fontes históricas e documentais e no rigoroso estudo filológico dos textos. Os estudos gramscianos passam no momento por uma renovação na qual a IGS-Italia (International Gramsci Society-Italia) tem tido um papel central. Pode-se destacar o Dicionário gramsciano (Liguori; Voza, [2009] 2017) e a edição anastática dos cadernos escritos na prisão, isto é, fac-símile, como resultados importantes do grupo (Francioni, 2009). Merece referência especial o projeto editorial em curso de publicação integral dos textos do marxista italiano, a Edizione Nazionale degli scritti Antonio Gramsci1. Temos, portanto, elementos mais apurados para tratar do marxista e sua obra, resultado de um esforço coletivo empreitado por pesquisadores altamente qualificados. A biografia escrita por Angelo D’Orsi (1947), ainda não publicada no Brasil, é produto desse acúmulo produzido pelos estudos gramscianos recentes e pode já ser considerada uma referência para aqueles que se orientam por uma abordagem atenta à trajetória do autor e às relações desta com o momento histórico.

Emerge nas páginas um sujeito concreto, historicamente vinculado ao seu tempo e lugar. D’Orsi é eficiente em tecer as relações entre a experiência de vida de Gramsci primeiro com a cultura e história sarda e do Mezzogiono, e depois com o movimento socialista turinense e o comunismo internacional. A biografia do marxista, nos indica D’Orsi, pode ser entendida em parte através de seus deslocamentos espaciais, como a migração para o Continente e a viagem à Moscou em 1922, sendo que cada um desses deslocamentos é vinculado a um momento ou fase de seu amadurecimento intelectual e político. O autor trata desde a origem familiar e dos primeiros anos de Gramsci em um pequeno vilarejo na Sardenha até as últimas horas de vida em uma clínica em Roma. A última obra que tratou de todo período da vida de Gramsci foi Vida de Gramsci (1979 [1966]) de G. Fiori. Era necessária uma nova publicação do tipo.

O desafio foi satisfatoriamente alcançado em Gramsci: una nuova biografia (2018). Olhando retrospectivamente o conjunto da produção de D’Orsi, é possível perceber a sua mais recente obra como desfecho de seu itinerário de pesquisa. Sua atenção à história política e intelectual de Turim, ao período de ascensão e consolidação do fascismo, às trajetórias e biografias intelectuais: suas produções anteriores pareciam indicar um encontro marcado, sem data definida, do autor com a tarefa de escrever a biografia de Gramsci. Considerar a inevitabilidade histórica e o ponto de partida a partir do desfecho é um procedimento que o biógrafo, rigoroso historiador e metodólogo, poderia recusar como simples teleologia; mas por outro lado acena para a coerência de seu projeto intelectual.

MERIDIONAL E MERIDIONALISTA

A biografia é dividida em quatro partes e o título de cada uma destas remete os anteriormente citados deslocamentos geográficos de Gramsci. Nell’Isola (1891-1911) [Na Ilha (1891-1911)] trata de sua vida na Sardenha, no Sul do país, região com a qual Gramsci sempre se sentiu profundamente vinculado. Além de oriundo do Mezzogiorno, foi um meridionalista, afirma D’Orsi, isto é, interessado pelas questões políticas e culturais da região, vista pelo resto da Itália como bárbara e atrasada. D’Orsi ilustra tal visão lembrando que em 1882, em Paris, ocorreu uma sessão da Société d’Anthropologie [Sociedade de Antropologia] sobre a etnologia das populações sardas. A questão colocada no evento foi: eram os sardos inteligentes? A pergunta foi negativamente respondida por Cesare Lombroso, amparado na craniometria aplicada em insulares locais (D’Orsi, 2018, p. 09).

Difundida no jornalismo e na literatura, circulava a ideia de uma “alteridade mental e patológica” dos sardos em relação aos continentais, considerados também com tendências inatas à criminalidade (D’Orsi, 2018, p. 11). Em uma chave biológica também justificava-se a situação econômica e cultural dos insulares, especialmente os camponeses, que constituíam as classes subalternas da ilha.

O positivismo pseudocientífico, amplamente difuso na Itália e presente também nos meios socialistas, foi o antagonista mais frequente de Gramsci e tal oposição estava ligada a sua particular experiência no mundo como um sardo – considera D’Orsi. Ao lado da forte recusa à cultura positivista, Gramsci recebeu o influxo do idealismo (especialmente através de Benedetto Croce) e da filosofia da ação; além da presença de Marx, que conhecia parcialmente desde o período da Sardenha e foi lido de maneira não dogmática. E a atividade de jornalista, desenvolvida pouco mais tarde, lhe permite estudar uma infinidade de casos humanos, um pouco ao modo dos sociólogos e dos antropólogos (D’Orsi, 2018, p. 74).

As questões familiares foram cuidadosamente exploradas na obra e nos dão pistas mais rigorosas, em relação à obra de Fiori (1979), da posição social dos Gramsci: trata-se de uma família que, embora não detentora de grandes meios, teve certo acesso a bens culturais e à emprego público. Por sua vez, a influência positiva mais significativa foi de sua mãe, Peppina Marcias, vista como uma mulher forte e objeto de afeto mais explícito, como a biografia demonstra citando diferentes passagens da correspondência de Gramsci.

Nell continente (1911-1922) [No continente (1911-1922)] aborda o período turinense. Nessa fase ocorreu o ingresso e interrupção do curso na Universidade de Turim, o vínculo com o movimento socialista e a amizade com A. Tasca, P. Togliatti e U. Terracini. Esse mesmo grupo participou ativamente do período de greves e insurgências nas fábricas (o Biênio Vermelho – 1919-1920), acompanhando e estimulando os conselhos que se formavam sob inspiração dos soviets. Riquíssimo de aprendizagem para Gramsci, começava então a desenvolver uma concepção de pedagogia política que D’Orsi vê como um dos seus traços essenciais e mais permanentes. A imprensa socialista foi assumindo uma proeminência na vida do militante e atuando como publicista, editor ou organizador de revistas e jornais – como L’Ordine Nuovo – sua escrita jornalística e trabalho editorial distinguiam-se da imprensa propagandista do período, com a recorrência constante aos “instrumentos da ciência social e histórica para interpretar os fatos, analisar pessoas, reconstruir os eventos” (D’Orsi, 2018, p. 72).

Voltando ao Biênio Vermelho. Devemos lembrar de fatos centrais que antecedem e se ligam ao Biênio: I Guerra (1914-1918) e a R. Russa (1917). Em seguida, o movimento internacional de criação dos partidos comunistas, depois da criação da IC (Internacional Comunista) em 1919. Gramsci foi ativo no processo de criação do Partido Comunista Italiano, ocorrida com uma cisão com a fração socialista. Isso ocorreu em 1921, quando se ampliavam as manifestações fascistas e a atuação dos Fasci di combatimento. D’Orsi acena que maioria dos socialistas e dos membros do recém-criado partido comunista não conseguia dimensionar o alcance do fascismo. Em um primeiro momento, Gramsci também indicou que o movimento deveria ser visto como algo passageiro, a ser enterrado pela história. Depois, teve maior acuidade do que grande parte dos militantes de esquerda. Conseguiu identificar como o fascismo ligava-se aos arranjos dos interesses financeiros e dos proprietários de terra em oposição ao ascenso do proletariado. Escapava a percepção de que o fascismo era também um movimento de setores urbanos em busca de compensações do que havia sofrido com a guerra e que os fascistas colocavam-se como capazes de atender. Para D’Orsi, a impossibilidade de enxergar essa faceta do movimento fascista deriva de uma visão turinocêntrica, isto é, extraiu de uma cidade progressista um parâmetro de análise para toda a Itália.

No que diz respeito às estratégias políticas, isso resultou nas dificuldades em organizar a formação de uma frente única anti-fascista (com outras forças socialistas e democráticas), que era linha defendida pela Internacional Comunista. Na visão de D’Orsi, privilegiava-se a luta interna (entre comunistas e socialistas) em detrimento da luta antifascista. Em 1921, no entanto, Gramsci percebeu a capacidade de organização dos fascista e seu coroamento no próprio Estado. Nem os socialistas perceberam esse fato e Gramsci passava a criticar os comunistas que insistiam na insurreição proletária como resposta para o fascismo (D’Orsi, 2018, p. 111).

ORIENTE E OCIDENTE

Na terceira parte, In Europa (1922-1926) [Na Europa (1922-1926)], é explorado a chegada o período de permanência em Moscou. Foi ali que ele tornou-se um chefe de partido (como afirmou Togliatti). No âmbito pessoal, também marcou uma mudança profunda: ele conheceu Giulia Schucht, que se tornou sua companheira e mãe de seus dois filhos.

Para uma parte significativa dos estudiosos de Gramsci, foi nessa fase de Moscou que ele elaborou sua noção de hegemonia, com o que concorda o biógrafo acenando para a influência de V. Lenin, apesar de considerar que na produção do italiano a questão ganhou uma dimensão teórica mais cuidadosa. Duas problemáticas se acenam. Primeiro, a “exigência de conectar a revolução bolchevique, o modelo soviético, com as situações específicas das realidades nacionais” e a necessidade de reelaborar as relações estrutura e superestrutura escapando da visão canônica de distinção entre os elementos presente em certo marxismo. Nos anos de 1930 Gramsci elaborou uma crítica radical desta interpretação, cuja gênese que remetia à sua atividade jornalística e passava pela fase moscovita (D’Orsi, 2018, p. 137).

De volta à Itália, não mais a Turim e sim a Roma como deputado eleito do PCI (1924), encontrou um cenário que representava a derrota dos comunistas e do Estado liberal. Seus companheiros de partido foram presos.

A ideia de unidade entre Norte e Sul, como forma de enfrentar a questão meridional, começou a ser desenvolvido no documento do partido que ficou conhecido como Teses de Lyon (III Congresso do PCI – 1926) e que foi uma tentativa de pensar o partido (é tratado como documento de refundação) em sua especificidade italiana, como uma forma de “tradução”, uma linha italiana, do que seria um partido marxista e internacionalista. O debate conduzido nesse período por Gramsci indica um esforço em pensar em uma verdadeira dimensão internacional e, ao mesmo tempo, enfrentar as questões particulares do Estado italiano. A questão meridional aparece como central: a união do camponês do Sul com o proletário do Norte, como forma de livrar os camponeses da influência da burguesia agrária. Este é um documento político, de forte acento bolchevique, em um momento no qual a Internacional passava por uma “russificação”.

Pouco depois, no Alcuni temi della quistione meridionale [Alguns temas da questão meridional], Gramsci retomou e reavaliou o posição do camponês do Sul, pensando-o não como ligado/vinculado com o proletariado, mas sim capaz de se realizar politicamente de maneira autônoma. O meridionalismo não assumia mais a função de passivo diante do Norte. Ele explorou no texto o papel dos intelectuais, em especial dos intelectuais daquela porção da Itália – tal como o napolitano B. Croce – como construtores de consenso, capazes de criar as ligações entre o poder econômico e as massas populares, tema que será fundamental em seus escritos redigidos na prisão.

TEORIA POLÍTICA MARXISTA

Em 8 novembro 1926, em Roma, o deputado Gramsci foi preso. Ficou na prisão até outubro de 1934, quando finalmente obteve liberdade condicional. Em Da Roma a Turi (1926-1928) [De Roma a Turi (1926-1928)], parte 4, D’Orsi acompanha seu itinerário pelas prisões e julgamentos, labirinto de recursos e tentativas de obtenção da liberdade, ocorrida apenas depois de uma brutal derrocada de sua saúde. A condenação foi fundamentada em sua função de direção de um partido que, considerou a justiça fascista, conspirava contra a ordem estatal. As tratativas sobre uma possível liberdade jamais direcionaram-se para um pedido de graça de Mussolini e nem cogitou negar a função que exercia no partido.

O isolamento era parcialmente rompido pelas cartas que escrevia e recebia, que sofriam limitações a depender da direção carcerária. A reconstrução dessa fase é feita sobretudo a partir das cartas trocada com Tatiana, sua cunhada, e da correspondência velada que estabeleceu com Pierro Saffra mediada pela mesma, sendo que Saffra era também um mediador entre Gramsci e o partido.

Apenas em 1929 começou a trabalhar em seu projeto fur ewig [para sempre] e que resultou nos Quaderni. D’Orsi reconstrói então o percurso de redação dos textos caracerários, dando especial destaque para os argumentos que foram depois organizados nos chamados cadernos especiais. Analisa o protocolo de trabalho que o prisioneiro seguiu rigorosamente, em parte por imposições externas (como o risco de censura) e também de sua meticulosa prática de pesquisa que lhe exigia a anotação cuidadosa das referências bibliográficas, por vezes acompanhadas de breves observações sobre o texto em questão, a cautela diante do escasso acesso a fontes e a reescritura de notas. A fragilidade de sua saúde e a impossibilidade de conhecer o que se passava fora da cela, por sua vez, são limites para o trabalho do prisioneiro, indica D’Orsi. Reconstruir todas essas questões, tal como fez o biógrafo, ajuda a delinear com traços mais fortes a adversa condição nas quais a obra foi produzida. Não considerando-as exteriores ao texto, D’Orsi assume seu caráter fragmentário e inconcluso não como uma limitação dos textos: ao contrário, são esses concretos testemunhos da ânsia de elaboração e reflexão teórica de Gramsci, ou de sua vontade, para usar um termo gramsciano.

Quando trata da leitura de Gramsci sobre Maquiavel, esboçada a partir de 1930 e que pode ser considerada uma das elaborações centrais da teoria política marxista que estava sendo construída nas páginas daqueles cadernos, D’Orsi escreveu as mais inspiradas linhas. Maquiavel, teórico da política em ato, ao redigir O Príncipe, estava em uma situação análoga àquela do prisioneiro. Ambos derrotados, mas animados por uma vontade política que faz de sua obras não apenas tratados, mas textos vivos e ainda que “científicos” têm componentes emocionais e voluntaristas (D’Orsi, 2018, p. 304). Maquiavel e Marx são autores-atores: seus textos são tratados de caráter histórico e teórico, mas são ao mesmo tempo manuais de ação política. O incitamento à ação prática, à praxis, os anima a ir mais e mais fundo na intenção de compreender os segredos da política. Não seria também ele, o prisioneiro fascista, um autor-ator a misturar utopismo e realismo?

A leitura da biografia é fortemente recomendada por mostrar o marxista sardo como compositor de uma obra viva e inacabada, tecida em uma experiência concreta marcada por seu tempo histórico e, ao mesmo tempo, capaz de inspirar atores do presente.

Nota

1 A Edizione nazionale publicará epistolário, textos jornalísticos e políticos, os trinta e três cadernos produzidos na prisão fascista entre 1929-1935 e documentos. O volume de textos é enorme, alguns são de recente atribuição de autoria a Gramsci e outros não tinham jamais sido publicados anteriormente, como no caso dos chamados cadernos de tradução.

Referências

FIORI, G. (1979). A vida de Antonio Gramsci. Rio de Janeiro, Paz e Terra.

FRANCIONI, G. (Org.) (2009), Quaderni del carcere. Edizione anastatica dei manoscritti. Roma, Istituto della Enciclopedia Italiana.

LIGUORI, G. VOZA, P. (Orgs.) (2017), Dicionário gramsciano (1926-1937). 1. ed. São Paulo, Boitempo.


Resenhista

Sabrina Areco – Doutora em Ciência Política (UNICAMP). E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

D’ORSI, A. Gramsci: una nuova biografia. Milano: Feltrinelli, 2018. Resenha de: ARECO, Sabrina. Gramsci no “mundo grande e terrível”: a nova biografia. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Rio Grande, v.11, n. 22, p. 364-371, jul./dez. 2019. Acessar publicação original [DR]

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