História da comunicação no Brasil | B

Fazer um consolidado de uma longa duração histórica, tendo um eixo temático como guia, não é tarefa fácil. Especialmente quando não se quer cair na tentação de fazer justamente o que se critica: pontuar datas, fatos e personagens, dando a impressão de que eles são os balizadores da verdade histórica. Marialva Barbosa, em sua obra sobre a história da comunicação no Brasil, tem plena consciência do caráter interpretativo que está embutido na abordagem histórica: não há uma verdade, mas – citando Paul Ricouer – cristalizações operadas pelo esforço científico do pesquisador em iluminar o passado a partir de uma hermenêutica dos vestígios que lhe estão disponíveis no presente. Tudo isso sem cair no anacronismo.

A aproximação do livro História da comunicação no Brasil com essa temática tão abrangente e prolongada ecoa uma postura teórica prévia da autora, que tradicionalmente aponta os perigos teóricos de uma narrativa da história feita a partir da exaltação de “grandes feitos”, considerados pontos de rompimento abrupto e transformador em relação ao passado, seja nos regimes de poder, seja nos costumes, seja nos valores, nos saberes, nos modos de vida, enfim, no próprio tempo. A autora faz questão de reiterar que a ênfase no poder individual de um único elemento na pesquisa histórica acaba por negligenciar a compreensão dos contextos e das continuidades, os quais estão necessariamente imbricados com o entendimento dos processos de mudança, sempre múltiplos e multifacetados.

A falta de uma contextualização adequada é uma das principais críticas que Barbosa endereça a boa parte dos estudos sobre história da comunicação no Brasil. Segundo a autora, existe uma tendência eurocêntrica, característica que perpassa esforços teóricos de três diferentes abordagens: uma que focaliza aspectos políticos, outra de cunho mais cultural e uma terceira de caráter mais técnicos. Cada uma com seu enfoque, acaba por enfatizar dimensões muito mais europeias que brasileiras, por exemplo: a cultura letrada e a cultura de massa baseada no letramento; o embasamento político na razão iluminista; os avanços tecnológicos e as mudanças proporcionadas por estes. Ainda tendo em conta essas três perspectivas identificadas na pesquisa histórica sobre comunicação, Barbosa afirma que outro traço compartilhado por elas é o entusiasmo com o novo e com o progresso, ou seja, uma orientação para o futuro, tempo onde supostamente se encontraria a redenção.

O desafio apontado pelo livro, então, é produzir uma história da comunicação que dê conta de traçar esse percurso não apenas acompanhando uma história dos meios (da mídia e de seus aparatos políticos, técnicos, culturais), mas os “modos comunicacionais relacionados sempre às características dos contextos que estudamos” (2013, p.14). Isso implica um posicionamento declaradamente humanista, quer dizer, em oposição – perceptível no tom do texto, mas não abertamente expressa – a tendências que enfatizam “filosofias do objeto” e/ou que priorizam as chamadas materialidades. Barbosa faz questão de afirmar que “a história da comunicação é a história das ações comunicacionais humanas” (2013, p.15), e com essa certeza, a autora prossegue promovendo interpretações de vestígios, de relatos, de memórias, de outros esforços interpretativos, enfim, de elementos que a ajudarão a percorrer múltiplos modos comunicacionais no Brasil desde o século XVIII (isto é: antes da chegada de tecnologias impressoras ao país) até a contemporaneidade.

Oralidade como primeira tecnologia de comunicação no Brasil

Como não falar de comunicação no país, sem mencionar a vida dos escravos? Um vasto contingente da população brasileira, muitas vezes ignorados pela história dos vencedores, merece um olhar comunicacional cuidadoso no livro de Marialva Barbosa. Suas músicas, a sonoridade constituída pelos seus corpos (palmas) e seus instrumentos musicais, suas reuniões ao redor do fogo, suas festas e danças, a capoeira, as conversas e partilhas de informação nos locais cotidianos de seus serviços (como os locais de se buscar água), tudo isso é levado em consideração no capítulo que trata dos primórdios da comunicação no Brasil. Também são abordadas pela autora as práticas letradas, a eventual chegada de jornais produzidos nas terras europeias, a constituição de primeiras bibliotecas por pessoas da elite, como professores, médicos, sacerdotes; e também em relação a esse grupo, menciona-se a importância de uma cultura oral em torno dos objetos impressos.

Seguindo pelo tempo, a autora avança para o segundo capítulo, tratando do século XIX, no contexto nacional a partir da chegada, em 1808, da família real que trouxe consigo máquinas de imprimir, e que, em seguida, implantou a imprensa régia. O capítulo é organizado por um texto que mostra duplamente o crescimento de práticas comunicacionais fundadas no universo impresso e a continuidade de uma cultura não letrada para a maior parte da população do país. Concomitantemente, com leituras interpretativas de quadros, desenhos, pinturas, gravuras de Rugendas e de Debret, os quais representam a presença de produtos impressos (livros, mapas, gazetas etc) no cenário da época, Barbosa chama atenção para o fato de que, mesmo diante da primazia do oral na sociedade de então, os produtos impressos “vão assumindo um lugar simbólico nas ruas da cidade e na imaginação daqueles que são capazes (ou não) de decifrar aqueles códigos” (2013, p.58).

Convivência da oralidade com a escrita

Os capítulos seguintes continuam a demonstrar o crescimento de uma presença simbólica e física dos aparatos comunicacionais escritos. Com o amparo de referências bibliográficas (por exemplo Morel, Chalhoub, Fonseca) e também de pesquisa feitas em arquivos como o da Biblioteca Nacional, o texto segue delineando um cenário de desenvolvimento dos jornais, sobretudo nas cidades brasileiras, igualmente em desenvolvimento. Dados estatísticos da época apontam para o surgimento de mais veículos de comunicação e a autora faz questão de destacar que nem todos os jornais eram derivados da recém chegada tecnologia de imprensa, já que houve um significativa produção de gazetas manuscritas, algo que é esquecido por boa parte dos trabalhos de história da comunicação.

Em constantes passagens do livro, a importância das práticas comunicacionais da oralidade continua vindo à tona no texto. A autora sempre faz questão de lembrar que a história da comunicação no Brasil também se escreve com o burburinho das cidades, com a circulação de opiniões, posições políticas e novidades em espaços públicos que ganhavam vulto nas ruas e nos ambientes públicos urbanos dos cafés, do comércio, das praças. Mas, é, sobretudo, na evocação de cenas que ilustram a convivência das práticas orais com as práticas escritas que a autora procura demonstrar a complexidade das relações comunicacionais entre os sujeitos de uma sociedade com diferenças sociais tão gritantes.

Ao reproduzir uma descrição feita por Monteiro Lobato de um senhor que lê sua revista ilustrada ao lado de uma “mulatinha” que lhe traz um café, ou ao especular sobre a possibilidade de um tal escravo Romão ter assinado, de próprio punho, a sua carta de alforria após a morte de seus senhores, a autora demonstra a circulação de traços da cultura do letramento entre os que, socialmente, se enquadravam no grupo dos não letrados. Em exercícios de imaginação (porque não se pode ter certeza do que efetivamente aconteceu no passado), as descrições e interpretações de Barbosa procuram vislumbrar a convivência dos sujeitos daquela época – pessoas alfabetizadas ou não, escravas e livres – com os meios de comunicação disponíveis. Enquanto passeia por cenas complexamente construídas pelos fragmentos do passado e atravessadas pelos contextos, Barbosa está, com efeito, interrogando sobre os modos de apropriação dessas tecnologias pelos sujeitos.

Tecnologias e suas mudanças

A autora não esconde sua predileção pelo século XIX. Sobre a comunicação no final do século XX e início do XXI há apenas capítulos curtos, ao final do livro. Antes de chegar, portanto, à contemporaneidade, o livro segue comentando as tecnologias do olhar e do ouvir (em especial a fotografia, o cinema e o rádio) surgidas em meados do século XIX, adentrando pelo início do XX, sobretudo aquelas que proporcionaram o que a autora chama de “novas visualidades e novas sonoridades”. Tais novidades trazidas dos países desenvolvidos começam a chegar nas maiores cidades brasileiras, começando a fazer parte das práticas comunicacionais do país.

Em diálogo com a pesquisa de Jonathan Crary sobre os aparatos técnicos capazes de moldar arranjos corporais e práticas de consumo de imagens do sujeito observador, Barbosa aponta o surgimento e ampliação de espaços nas cidades brasileiras destinados à formação de um público apto a conviver com tais tecnologias da imagem. Estúdios de fotografia e salas de projeção de cinema passam a fazer parte da arquitetura urbana. Paralelamente, também vai se formando um público apto a se ocupar de tecnologias de transmissão da escrita e da voz, como o telégrafo e o telefone, e, mais tarde, o rádio.

O período de virada do século XIX para XX é expresso com a descrição da atmosfera de cosmopolitismo que os centros urbanos brasileiros, invadidos por avanços tecnológicos, acabam por exalar. Do daguerreótipo e do cosmorama ao cinematógrafo; do daguerreótipo aos estúdios de fotografia prestando serviço à sociedade; com o telefone, com o movimentar dos bondes, todas essas tecnologias tornavam a vida mais ágil e mais permeada de novas visualidades. Velocidade e avanço tecnológico são impressões que o texto passa ao leitor quando o livro se estende na recapitulação de inúmeras transformações a sociedade brasileira passava naquele momento.

As descrições e análises dos fragmentos de textos e imagens da época sempre evocam a ideia de um Rio de Janeiro barulhento, agitado. O burburinho da cidade é visto como manifestação comunicacional e traço de uma cultura que mesmo diante das experiências com a escrita e a imprensa guarda lugar especial para as sonoridades, mesmo as mais espontâneas. Ao abordar a chegada da tecnologia do rádio, a partir dos anos 1920, Barbosa envereda pelas nuances de mediações sonoras que começarão a fazer parte do cotidiano público (2013, p.208).

A popularização do rádio no país, o uso desse meio para fins políticos no Estado Novo, o surgimento de revistas especializadas no grupo de celebridades que o rádio ajudou a criar, a formação de um público ouvinte são temas que o livro procura retomar. Análises da penetração do rádio no cotidiano comunicacional da sociedade brasileira são articuladas mesclando-se a interpretação das materialidades da tecnologia com os usos que os sujeitos deram àquele meio. Barbosa chama atenção para o fato de o rádio ser uma forma de comunicação mais individualizada, em um momento inicial, devido à necessidade de uso dos fones de ouvido. Mas, a reorganização da tecnologia proporcionando escutas coletivas moldou novas disposições corporais e novas ambiências de consumo daquele meio.

A televisão também é incluída no olhar sobre as transformações do universo da comunicação no Brasil. Mas em vez de pontuar os anos 1950, data que a maior parte de estudos sobre televisão atribuem ao momento inicial desse meio no país, Marialva Barbosa recupera, com a ajuda das referências contidas em artigo de Áureo Busetto, os primórdios da TV nos anos 1940, ainda no governo de Getúlio Vargas. Com isso, o imaginário acerca do improviso inicialmente associado às primeiras transmissões é contrabalanceado com interpretações de esforços e investimentos sistemáticos que vinham ocorrendo no Brasil antes da efetiva inauguração da televisão por Assis Chateaubriand.

Paralelamente, os outros veículos de comunicação também estão em conexão com a nova tecnologia audiovisual: rádio e imprensa escrita exaltam a chegada desse novo meio, interagem com ele, reproduzem publicidade de aparelhos de TV. Há um trânsito de celebridades do rádio para a televisão.

Sem esquecer as imbricações políticas e os jogos de poder que associaram o crescimento da televisão, sobretudo o da rede Globo, com a ditadura militar no Brasil, o capítulo 9 discorre sobre a singularidade dos anos 1970, quando a TV, tornando-se um meio massivo, colabora para edificar a ideologia de uma integração nacional.

Por fim, o livro alcança o capítulo final, no qual se vão discutir não apenas os aparatos tecnológicos da pós-modernidade (ou seja qual for o nome que se dê ao momento contemporâneo), mas as radicais alterações de tempo e espaço que as novas tecnologias digitais serão capazes de mobilizar.

O livro termina conscientemente sem uma conclusão, posto que é exatamente a dificuldade de se fazer uma história do presente – embora a autora lembre alguns historiadores que pensar ser uma tarefa fácil – que justifica a ausência de conclusões. O pensar sobre o presente, que já se faz passado, permanece em aberto, inacabado, mas pleno de certeza de que todo o esforço foi “engendrar uma interpretação para múltiplos processos que construíram desde o século XVIII, uma longa história da comunicação no Brasil” (2013, p.365).


Resenhista

Fernanda Lima Lopes – Doutora e mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Graduada em Jornalismo pela UFMG. Docente da Unesa e UVA (Rio de Janeiro).


Referências desta Resenha

MARIALVA, Barbosa. História da comunicação no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2013. Resenha de: LOPES, Fernanda Lima. Abordagem hermenêutica da história da comunicação: o agir comunicacional humano em foco. Revista Brasileira de História da Mídia. São Paulo, v.3, n.1, p.167-169, jan./jun. 2014. Acessar publicação original [DR]

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