História da saúde e das doenças: sujeitos/ saberes e práticas | Fênix – Revista de História e Estudos Culturais | 2021

Os anos de 2020 e 2021 marcaram profundamente a vida das pessoas de diferentes lugares do planeta. A pandemia de Sars-coV-2 (Covid-19) invadiu o espaço público, os corpos das pessoas e dizimou uma enorme parcela da população, especialmente a mais pobre.

A primeira grande pandemia do século XXI, embora precedida por outras manifestações epidêmicas como o Ebola e o H1N1, tomou proporções que só podem ser comparadas às da gripe “espanhola”, no início do século XX. Em 1918, a imprensa informava que o vapor Demerara, proveniente da cidade inglesa de Liverpool e que passou pelos portos do Recife, Salvador e Rio de Janeiro na primeira quinzena de setembro, registrou passageiros infectados a bordo, com cerca de cinco óbitos (SOUZA, 2009, p. 102). Era a chegada da doença ao Brasil.

A pandemia de Covid-19 levantou discussões sobre economia, política, desigualdades sociais, ciências, entre muitos outros temas constitutivos da sociedade, o que corrobora para a percepção de que a doença não é apenas um fenômeno biológico. Ela é um evento social que organiza e desorganiza as sociedades (LE GOFF, 1991; REVEL, PETER, 1976; SILVEIRA; NASCIMENTO, 2004). No debate travado na arena pública, que atualmente envolve espaços como a internet, as redes sociais, a televisão e o rádio, historiadores da saúde e das doenças foram convocados a explicar questões como: o que é uma pandemia? Que outras pandemias já ocorreram? Quais medidas foram tomadas em outros contextos? (BATISTA, 2021), e a mais recorrente (e com menor grau de certeza na resposta): quando tudo isso vai passar? Neste exato momento (dezembro de 2021), por exemplo, a variante ômicron emerge causando novos sintomas e como uma incógnita frente ao processo de vacinação já realizado.

A presença dos historiadores, naquele momento, auxiliou na (re)construção de uma memória social sobre os processos de adoecimento, que, guardadas as devidas diferenças e proporções, talvez tenha sido acionada pela última vez de forma coletiva, intensa e global, na epidemia de HIV/Aids da década de 1980. Dentro do próprio campo da História, os pesquisadores da história da saúde, das doenças e das ciências galgaram um maior reconhecimento. Isso ocorreu inclusive com pesquisadores de diferentes estados do país, mostrando a potência que os estudos sobre história, saúde e doença têm, mas que, por muito tempo, tiveram pouca visibilidade.

O Dossiê que ora apresentamos aos leitores foi pensado enquanto a pandemia de Covid-19 se apresentava ao mundo e tem o intuito de analisar sujeitos, saberes e práticas relacionados à saúde e à doença em uma perspectiva histórica. Acompanha uma amplitude de pesquisas que também foram gestadas, publicadas e divulgadas em plena pandemia, tanto em formato de livro, a exemplo de Sá et al. (2020); Mota (2021); Batista, Souza, Silva (2020), entre outros; quanto em dossiês publicados em revistas, tais como Sampaio e Batista (2020); Coe e Vieira (2020); Paula (2021); Batista e Porto (2021).1

Esta edição de Fênix – Revista de História e Estudos Culturais discute como a saúde e a doença perpassam as diversas dimensões do humano ao longo do tempo. Para isso, diferentes pesquisadores do Brasil, México e França se uniram e apresentaram um amplo panorama de possibilidades de estudo nesse campo, o que certamente contribuirá para despertar o interesse em fontes, bibliografias e temáticas. O Dossiê História da Saúde e das Doenças: sujeitos, saberes e práticas é um exemplo de como as questões do presente nos mobilizam para o conhecimento sobre o passado. Pretende atingir um amplo público que se sinta tocado pelas questões apresentadas e que possa ampliar seus horizontes de compreensão sobre as malhas do tecido social que habitamos. Assim, passemos à apresentação dos textos.

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O artigo que abre o Dossiê é intitulado La quinta pandemia de cólera em México y el debate entre saberes, escrito por Ana María Carrillo Farga e Marisol Hernández Rivas. Apresenta um evento pandêmico, entre 1882 e 1883, e as disputas políticas em torno dele. De um lado, médicos enviados pelo Governo Federal – que negavam a existência do cólera – e, de outro, colonos e médicos locais, que defendiam a presença da enfermidade no México. Para as autoras, tratava-se de um enfrentamento entre saberes acadêmicos e populares, em uma disputa não só para definir quem estava melhor preparado para enfrentar o cólera, como quem teria direito de nomeá-lo.

Em seguida, Maria Izilda Santos Matos e Tânia Soares da Silva analisam as representações de gênero, de família e de maternidade propaladas pelos discursos médicos, através dos materiais de campanhas de São Paulo, no texto Corpos e maternidade na paulicéia desvairada (São Paulo inícios do século XX). As autoras se voltam para as primeiras décadas do XX, quando a instituição familiar foi identificada como a célula principal da sociedade. Destacam, ainda, as reformas empreendidas pelo médico sanitarista Geraldo de Paula Souza quando da sua gestão no Serviço Sanitário paulista (1922-1927) que causou impacto na condução das questões da saúde pública.

Só as mães são felizes”: maternidade e a experiência com AIDS, de Eliza da Silva Vianna, problematiza os ideais de maternidade atribuídos às mulheres historicamente, em uma análise sobre mães que tiveram seus filhos acometidos pelo HIV/Aids. A partir de autobiografias e entrevistas, a autora apresenta os preconceitos sociais relativos à enfermidade, as atitudes frente ao adoecimento dos filhos e as formas de engajamento em torno da causa da doença.

A profissionalização da enfermagem no Rio Grande do Norte é investigada por Larissa Maia de Souza, Avelino Aldo de Lima Neto e Jacques Gleyse, em A Escola de Saúde da Universidade Federal do Rio Grande do Norte: apontamento sobre a feminização do cuidado na educação profissional em saúde. Também com um olhar voltado para as questões de gênero, são analisados os dispositivos legais sobre Educação Profissional em Saúde e na construção da Escola de Saúde da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e a feminização do trabalho relativo ao cuidado.

No artigo de Azemar Soares dos Santos Júnior, intitulado História e Historiografia da saúde e das doenças na Paraíba, discute-se a produção historiográfica sobre a saúde e as enfermidades na Paraíba, a partir da classificação de diferentes gerações de escritores. Inicialmente, são apresentados os ditos intelectuais que produziram fontes para os estudos sobre a temática e, logo em seguida, as produções recentes defendidas em nível de pós-graduação, o que revela uma ampla gama de possibilidades de entendimento e de estudo sobre o processo de construção social e cultural da doença.

Ricardo dos Santos Batista e Christiane Maria Cruz de Souza se debruçam sobre a interiorização da assistência à saúde no Brasil, pela análise do Serviço de Saneamento Rural da Bahia, no texto Interiorização da assistência à saúde no Brasil: o Serviço de Saneamento Rural e o controle das endemias rurais na Bahia (1920-1930). Os autores dão ênfase ao Posto de Saneamento Rural de Ilhéus, que, para além do controle das endemias do campo, também atuava em outras áreas – inclusive em atribuições federais como a inspeção do porto. A investigação revelou que não bastava a coalizão política em torno do grupo calmonista para garantir a realização dos serviços de saúde.

A “Comissão de Profilaxia” e a produção bioestatística sobre a saúde e a doença nos canteiros de obras do IFOCS (1932-1934) é escrito por Juciene Batista Félix Andrade, em uma investigação sobre a documentação produzida na experiência de campo de médicos e enfermeiras, em um contexto marcado pela seca de 1932. A elaboração do Relatório da Comissão Médica de Assistência aos Flagelados do Nordeste de 1933 deixou uma fonte importante sobre a avaliação, planejamento e levantamento do estado sanitário das obras da Inspetoria Federal de Obras contra as Secas, que auxilia na compreensão sobre as condições sanitárias da região no período.

O texto de Liane Maria Bertucci, Spanish flu and the “brilliant work” of Drs Revoreso, Meira and Monteiro of the São Paulo Academy of Medicine, discute a atuação dos médicos da Academia Paulista de Medicina, na cidade de São Paulo, no contexto da “gripe espanhola”. Galeano de Revoredo, Rubião Meira e Eduardo Monteiro foram responsáveis por um relatório com recomendações para o controle da gripe epidêmica no interior do estado. A partir da história social, a autora o enfatiza, contextualizando-o com debates sobre a doença e o tratamento dos gripados.

O artigo de Rita de Cássia Marques e Anny Jackeline Torres Silveira, intitulado Peste bubônica em Minas Gerais: a epidemia que não aconteceu (1899-1900), discute a chegada da peste bubônica no Brasil entre fins do século XIX e início do século XX. As autoras analisam o estado de Minas Gerais que não teve casos registrados, embora fizesse fronteira com outros afetados pela enfermidade, a exemplo de São Paulo e Rio de Janeiro. O médico Cícero Ferreira foi uma das personagens que auxiliaram nas medidas adotadas pelo estado na tentativa de impedir a chegada da bubônica.

A partir do método indiciário, Leicy Francisca da Silva e Sônia Maria de Magalhães apresentam O fortalecimento da profissão médica e militar no Brasil: a trajetória de Thomaz Cardoso de Almeida (1809-1875). O médico goiano é seguido pelas autoras como forma de compreender o seu percurso profissional, num momento em que o padrão de carreira se elaborava com a afirmação das elites médicas enquanto grupo social. Mesmo assim, percalços se apresentaram a essa personagem ao longo da sua jornada.

Chacauana Araújo dos Santos se debruça sobre aspectos urbanos e sanitários na Bahia e a construção de instituições de saúde, em “Medidas sanitárias de que a Bahia precisa”: as delegacias de saúde e a reforma sanitária em Salvador (1921-1930). Com um amplo panorama sobre as transformações que ocorreram na década de 1920 entre os baianos, ela dá ênfase aos órgãos que participaram ativamente desse processo, como as Delegacias de Saúde, seguindo a organização proposta pelo Departamento Nacional de Saúde Pública.

Em Exposição ou controvérsia médica? Nas tramas das relações de poder e saber entre médicos na cidade da Parahyba em 1877, Serioja Rodrigues Cordeiro Mariano e Janyne Paula Pereira Leite Barbosa apresentam conflitos médicos oriundos de diferentes interpretações sobre as patologias que assolavam a população da cidade de João Pessoa. As contradições em relação à eficácia de terapêuticas dinamizavam as relações sociais e davam espaço a diferentes saberes nos jogos que envolviam saber e poder.

As sociabilidades e a construção de prestígio social no Espírito Santo são discutidas por Sebastião Pimentel Franco e André Luís Lima Nogueira em Carreira médica, prestígio e práticas de sociabilidade no oitocentos. O caso do Dr. Ernesto Mendo (Espírito Santo, 1860- 1895). A personagem apresentada pelos autores ocupou diferentes cargos (científicos, acadêmicos, institucionais) e demonstrou habilidade nos círculos de poder da alta sociedade capixaba em fins do Oitocentos. A partir de fontes como periódicos, a trajetória de Ernesto Mendo auxilia na compreensão sobre diferentes posicionamentos dos sujeitos em mobilidade social.

O texto Antônio Carlos Pacheco e Silva e a patologização do feminino (Brasil, primeira metade do século XX), de Alzira Lobo de Arruda Campos, Lucciano Franco de Lira Siqueira e Paulo Fernando de Souza Campos analisa o compêndio Psiquiatria Clínica e Forense, de Pacheco e Silva, especialmente no que diz respeito à patologização do feminino. A problematização das normas instituídas para as mulheres faz com que os autores afirmem que a medicalização da sociedade construiu a representação do feminino desviante como negação do casamento e da maternidade.

A contribuição de Marcus Pierre de Carvalho Baptista, Francisco de Assis de Sousa Nascimento e Elisabeth Mary de Carvalho Baptista, em O cólera no jornal “O Expectador” (1862) no Piauí na segunda metade do século XIX, está na compreensão sobre como a imprensa pode ser um elemento importante na compreensão das enfermidades. Entre maio e setembro de 1862, o cólera ganhou as páginas do periódico destacando as ações tomadas pelo governo provincial, além de fomentar a produção de um imaginário do medo referente à doença.

E, por fim, em A histeria nas teses médicas brasileiras: a educação física e moral como método preventivo do histerismo, de Fernando Marques de Mello Júnior, é discutida a construção da histeria, ligada à constituição física do sexo feminino e ao processo de urbanização e civilização do Rio de Janeiro, com ênfase na produção dos médicos formados pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia.

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É uma alegria compartilhar com os leitores esses dezesseis textos, que demonstram a diversidade nas propostas de estudo sobre história da saúde e das doenças em diferentes estados do Brasil e do exterior. Agradecemos a todas as pessoas que colaboraram para a construção desse Dossiê e desejamos: boa fruição!

Nota

1 Para acessar os dossiês, clique nos seguintes endereços: https://periodicos.ufsc.br/index.php/mundosdotrabalho/issue/view/2982; https://outrostempos.uema.br/index.php/outros_tempos_uema/issue/view/40; http://seer.upf.br/index.php/rhdt/issue/view/718  e http://seer.upf.br/index.php/rhdt/index.

Referências

BATISTA, Ricardo dos Santos. Covid-9 e a história pública: reflexões sobre o ofício do historiador. In: MOTA, André (Org.). Sobre a pandemia: experiências, tempos e reflexões. São Paulo: Hucitec, 2021.

BATISTA, Ricardo dos Santos; PORTO, Paloma. Fundação Rockefeller e o desenvolvimento da Saúde Global: contornos locais e circulações internacionais. História: Debates e Tendências, v. 21, n. 3, p. 5-15, 2021.

BATISTA, Ricardo dos Santos; SOUZA, Christiane Cruz de; SILVA, Maria Elisa Lemos Nunes da. Quando a história encontra a saúde. São Paulo: Hucitec, 2020.

COE, Agostinho Júnior Holanda; VIEIRA, Tamara Rangel. Editorial: Dossiê “As relações nação-região e os espaços de fronteira no processo de institucionalização das ciências e da saúde no Brasil”. Revista Outros Tempos. v. 17, n. 30, 2020.

LE GOFF, Jacques (Org.). As doenças têm história. Tradução Laurinda Bom. Lisboa: Terramar, 1991.

MOTA, André (Org.). Sobre a pandemia: experiências, tempos e reflexões. São Paulo: Hucitec, 2021.

PAULA, Éder Mendes de. Editorial. História: Debates e Tendências, v. 21, n. 1, p. 4-9, 2021. Disponível em: http://seer.upf.br/index.php/rhdt/article/view/12114/114115494. Acesso em: 21 out. 2021.

REVEL, Jacques; PETER, Jean-Pierre. O corpo: o homem doente e sua história. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre. História: novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976.

SÁ, Dominichi Miranda et al. (Orgs.). Diário da Pandemia: o olhar dos historiadores. São Paulo: Hucitec, 2020.

SAMPAIO, Gabriela dos Reis; BATISTA, Ricardo dos Santos. Tempos de Covid-19: as doenças têm história, os trabalhadores também. Mundos do Trabalho, Florianópolis. v. 12, p. 1-6, 2020.

SILVEIRA, Anny Jackeline Torres; NASCIMENTO, Dilene R. A doença revelando a história: uma historiografia das doenças. In: NASCIMENTO, Dilene R.; CARVALHO, Diana Maul (Orgs). Uma história brasileira das doenças. Brasília, Paralelo 15, 2004, p. 13-30.

SOUZA, Christiane Maria Cruz de. A gripe espanhola na Bahia: saúde, política e medicina em tempos de epidemia. Rio de Janeiro: Fiocruz, Salvador: Edufba, 2009.


Organizadores

Azemar dos Santos Soares Júnior – Doutor em Educação (PPGE/UFPB). É professor do Departamento de Práticas Educacionais e Currículo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (DPEC/UFRN), Campus Natal. É professor credenciado no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGEd/UFRN) e no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Campina Grande (PPGH/UFCG). Membro da Rede de Pesquisa em Histórias e Culturas no Mundo Contemporâneo.  https://orcid.org/0000-0003-0015-415X E-mail:  [email protected]

Ricardo dos Santos Batista – Professor do Programa de Pós-graduação em História da Universidade do Estado da Bahia e Pós-doutorando na Faculdade de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo. Doutor e mestre em História Social pela Universidade Federal da Bahia.  https://orcid.org/0000-0002-7959-5929 E-mail: [email protected]


Referências desta apresentação

SOARES JÚNIOR, Azemar dos Santos; BATISTA, Ricardo dos Santos. Apresentação. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais. Uberlândia, v.18, n.2, jul./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]

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