História e ciência em tempos de pandemia: reflexões e perspectivas | Temporalidades | 2020

Ciência, História e Sociedades: múltiplas possibilidades

A reflexão sobre História e Ciência em tempos de pandemia, tecida pelas múltiplas perspectivas e análises que compõem o presente dossiê temático da Revista Temporalidades, traz o convite para lançarmos novos olhares sobre a sociedade em que vivemos, seus códigos culturais e o papel da ciência e dos estudos das humanidades na compreensão de momentos de crises mundiais. A própria temporalidade da publicação acompanha um contexto de transformações nas estruturas econômicas, sanitárias e políticas, marcado pelo rápido alastramento de uma pandemia que trouxe como um dos grandes desafios o de se pensar o papel da ciência e do negacionismo como chaves de respostas às demandas sociais. A pandemia do COVID-19 apresenta suas peculiaridades pela complexidade do cenário no qual vivemos. Em pleno século XXI, temos um mundo extremamente conectado do ponto de vista de população, de espaços, de mercadorias e com uma capacidade intensa de disseminação do vírus.

A reflexão sócio-histórica sobre a saúde e a relação de epidemias e sociedades é herdeira da ampliação da agenda histórica experenciada desde a segunda metade século XX, que contribuiu para a incorporação de novos temas e perspectivas de abordagem, ampliando o universo de investigação histórica, com olhares múltiplos, como o das experiências em torno da saúde e das doenças. Representativos desse campo de investigação, os artigos que compõem o dossiê História e ciência em tempos de pandemia: reflexões e perspectivas refletem a variedade de temáticas, usos de fontes e possibilidades de diálogo com diferentes metodologias, explorando análises sobre doenças e contextos sociais, estudos biográficos e epistemologia científica, perpassando discussões acerca de histórias conectadas e circulação de saberes.

Pelas multiplicidades de fatores que mobilizam, as doenças, epidemias e práticas de saúde têm se revelado um importante ponto de inflexão na história das sociedades, através do qual é possível examinar aspectos e dimensões variadas da vida social. Inscritos na intercessão entre natureza e sociedade, os eventos epidêmicos, como as demais doenças, ultrapassam o âmbito biológico. Esses eventos ganham sentido a partir do contexto humano do qual emergem, das transformações que promovem no cotidiano – seus impactos econômicos, políticos, sociais – e do modo como expressam os valores culturais de uma sociedade.

As epidemias, portanto, são fenômenos biológicos e sociais que, assim como seus desdobramentos políticos, econômicos e culturais, acompanham a experiência humana em seus mais variados tempos e contextos históricos. Taxas de mortalidade atípicas, quarentenas, estigmas associados aos doentes, promessas de curas milagrosas e resistências a medidas profiláticas, são alguns dos elementos presentes na história das epidemias. O momento de uma grande epidemia é também o de interrupção de atividades cotidianas, dos ritos coletivos, como encontros sociais, velórios em obituários, dentre outros. A epidemia, portanto, traz consigo a questão do medo: medo da morte e medo da ruptura da vida cotidiana. Jean Delumeau, ao analisar o tempo da peste bubônica na Europa dos séculos XIV e XV, argumenta que esse foi um período de solidão forçada. Era o tempo do medo, tempo esse do desafio da ressignificação de uma série de relações, de convívios e códigos de conduta (DELUMEAU, 2009).

Os eventos epidêmicos possuem uma dramaturgia própria que impacta no dia-a-dia das sociedades, como argumenta Charles Rosenberg. Nesse sentido, a narrativa epidêmica apresentaria semelhanças a um enredo que se desenvolve através de uma sequência de atos previsíveis. O primeiro ato, da negação seguida do progressivo reconhecimento da existência e da realidade da epidemia. O segundo, envolvendo a tentativa de explicação, passando por elementos morais, religiosos e científicos. No terceiro, a negociação de uma resposta coletiva e comunitária, com a elaboração de ações para fazer frente à doença. E, no ato final, a reflexão que se constrói sobre a experiência do adoecimento, do caos social e da epidemia como um todo, na busca de se evidenciar os ensinamentos da experiência (Rosenberg, 1992).

As enfermidades epidêmicas, em toda sua complexidade, são ainda uma ocasião para que a saúde pública, os pesquisadores e os historiadores da saúde em particular endossem seus trabalhos e a importância dos mesmos para os processos de compreensão social. Nesse caminho, os artigos apresentados nesse dossiê, ao dialogarem com diferentes perspectivas da pesquisa histórica, evidenciam a expansão dos estudos sobre história e ciência no Brasil. A diversidade de perspectivas presente nos textos ora apresentados indica, além da multiplicidade de abordagens possíveis, que há um amplo campo a ser trabalhado, pesquisado e discutido e que apresenta, em sua natureza, a interdisciplinaridade como marca característica.

No artigo Vírus e Mapas: o mapeamento da Covid-19, da Febre Amarela e os paradigmas da Medicina Cartográfica, Carmem Marques Rodrigues traz como proposta de análise o paradigma da medicina cartográfica como tônica no entendimento e controle das doenças. Os mapas, como recurso de entendimento das epidemias, foram utilizados desde o século XVIII, na percepção da relação entre saúde e geografia e na possibilidade do mapeamento do ciclo das doenças através da coleta de dados estatísticos | laboratoriais e do mapeamento geográfico. O trabalho discute o uso dos mapas para entendimento de epidemias no presente e no passado, tomando como estudos o Dashboard da John Hopkins University, no mapeamento em tempo real da pandemia de COVID19, permitindo não somente a visualização geográfica em tempo real da sua marcha, mas também a colaboração de informações. E, relacionados ao controle da febre amarela, mapas do Dr. Seaman sobre o surto de febre amarela em Nova York (1798), e dos criados pelos | para pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz e da Fundação Rockfeller (1930-1942), esses últimos na combinação de dados laboratoriais e estatísticos com o mapeamento geográfico, num projeto de erradicação da doença.

Na linha da história das doenças e epidemias, A peleja contra uma epidemia de varíola negra e possíveis aproximações com o tempo da pandemia da COVID-19, de Valdeci Rezende Borges, analisa a representação literária de um surto epidêmico de varíola com o romance de Jorge Amado “Tereza Batista cansada de guerra”, tecendo relações com o imaginário contemporâneo em torno da pandemia de COVID-19. A obra, publicada em 1972, abordava em sua terceira parte a luta da protagonista contra a bexiga negra em Buquim | SE, em plena Campanha Nacional Contra a Varíola, que tinha por objetivo a erradicação da doença. A partir da narrativa da luta da protagonista contra a epidemia, do episódio de pânico social que se abateu sobre a cidade e seus arredores, o autor estabelece relações e similitudes com os medos coletivos vivenciados na contemporaneidade com a pandemia da COVID-19.

Seguindo no estudo de doenças e contextos políticos, José Augusto Leandro, et, al., propõe uma análise da meningite nos anos 1970, em Entre o surto e a epidemia: a meningite meningocócica em Guaraniaçu nas páginas do Diário do Paraná, 1973. O contexto da ditadura civil- militar brasileira foi marcado por um rígido controle dos meios de comunicação existentes na divulgação de dados sobre determinadas doenças, na preocupação de que a exposição midiática sobre a presença de epidemias no país poderia trazer malefícios às imagens de modernização e progresso que se propalava naquele contexto. A partir desse cenário, os autores discutem a veiculação de notícias sobre a ocorrência da meningite meningocócica na cidade de Guaraniaçu, no estado do Paraná, em 1973, por um jornal apoiador do regime, o “Diário do Paraná”. Na análise, são problematizados temas que foram destacados pelo jornal quando da elaboração de suas matérias sobre a meningite na localidade, apontando a complexidade do contexto epidêmico no município.

Ainda no âmbito da história das doenças, Elane Cristina Rodrigues Gomes analisa os discursos sobre a lepra em Belém no final do século XIX e início do século XX, no artigo Escritos médicos: a Ciência e as ervas disputam a cura da lepra. A análise acompanha os debates no cenário médico nacional e internacional sobre a doença, pensando nas formas de propagação e medidas terapêuticas e nas relações entre a medicina diplomada e as práticas de cura relacionadas aos curandeiros. O discurso científico apontava para uma tensão sobre as práticas fora do âmbito da medicina diplomada, num contexto em que o vislumbre de diversas possibilidades de cura para a doença vinha do desconhecimento de um medicamento específico para a mesma. Os jornais do período refletiam em suas páginas essa miscelânea de tratamentos, com notícias locais e de outras capitais que relatavam tentativas e experiências no âmbito da incerteza.

Caminhando para a perspectiva do desenvolvimento da ciência, Francieli Lunelli Santos, em Indústria farmacêutica durante os anos (nem tão) dourados: euforia e desencanto (1950-1960), discute a produção de medicamentos entre as décadas de 1950 e 1960, período da “Idade de ouro” ou os “anos dourados” da indústria farmacêutica. No escopo de um contexto de otimismo sanitário, os jornais atuaram tanto como veículos de legitimação dessa indústria, através do apelo ao desenvolvimento científico e econômico fomentado pelo setor, como na denúncia das questões relativas a venda indiscriminada de fármacos. Nessas denúncias estavam críticas à ausência de pesquisas sobre riscos e efeitos colaterais, cobrando do Estado mais responsabilidade em relação à circulação dos produtos.

Partindo da perspectiva de que a medicina influencia o social e o social influencia a medicina, o artigo As cartas do “doutor”: a influência do discurso médico-científico no engendramento de comportamentos sociais, de Gabriel Afonso Vieira Chagas, investiga como o discurso médico-científico impactou no comportamento matrimonial de vários grupos familiares num espaço geográfico recortado, nesse caso, a Zona da Mata Mineira. Analisa as relações entre as práticas médicas e científicas e os comportamentos sociais, através do estudo sobre a influência do discurso médico-científico sobre as decisões matrimoniais de grupos familiares no abandono da estratégia de casamentos consanguíneos em prol de casamentos extrafamiliares a fim de se precaver de doenças hereditárias. A mudança das práticas sociais de casamento, resultadas dos enunciados emanados pelas pesquisas cientificas é explorada no texto como um campo em potencial para se analisar o lugar do discurso médico no engendramento dos comportamentos sociais.

No âmbito do simbólico e de heranças culturais, Letícia Elias Bernardes em “Eu te benzo, eu te curo, eu te livro”: um estudo de caso das relações entre religiosidade, doença e poderio a partir da prática da benzeção em Caldas, Minas Gerais, nos anos 2000, discute as relações entre religiosidade, doença e poderio a partir da prática da benzeção nos anos 2000. O recorte geográfico é o município de Caldas em Minas Gerais, e a diretriz metodológica, a História Oral e o relato de vivência de um benzedeiro local. Pensando a prática da benzedura em seus aspectos simbólicos, verifica-se que a manifestação apresenta vestígios de dinâmicas sociais e da ruralidade, traço da condição social no qual está inserida.

Wederson de Souza Gomes, em Entre Costas da África e a praça mercantil do Rio de Janeiro: os conflitos entre o Corpo do Comércio e os agentes de saúde na sociedade luso-brasileira oitocentista, analisa os conflitos entre o Físico-mor Manoel Vieira da Silva, primeiro a exercer a função na colônia, e os homens de negócio da praça mercantil do Rio de Janeiro no início do século XIX. O físico-mor e demais agentes de saúde ficavam responsáveis pelo licenciamento e fiscalização de atividades realizadas no âmbito mercantil. Nesse contexto, o ensejo do trabalho é apontar como as políticas régias de saúde incidiam sobre tais atividades, em particular o tráfico de escravizados, discutindo os limites entre o trato mercantil e as questões de saúde, como em relação à quarentena para os escravos recém aportados e a concessão de licenças e taxações.

Analisando a trajetória de personagens no campo da ciência médica, Bruno Marcio Gouveia, traz como proposta analítica a produção textual, em formato de crônica, do médico e sanitarista Octávio de Freitas, nas primeiras décadas do início do século XX, em Octávio de Freitas e as crônicas médicas em Pernambuco. O médico fazia parte do campo da medicina alopática, que estava se estruturando em princípios do século XX, e buscou em suas crônicas divulgar os saberes microbiológicos. Octávio de Freitas desenvolveu ainda outras atividades profissionais em Pernambuco, como o jornalismo e a docência na Faculdade de Medicina do Recife. A discussão de sua trajetória passa pela análise da participação de espaços, instituições e associações em saúde, que lhe possibilitavam a elaboração de estratégias para circulação e difusão de suas ideias.

Fechando as diferentes possibilidades de estudos em História das Ciências apresentadas nesse dossiê, o artigo de Luís Filipe Maiolini, apresenta uma discussão no âmbito da epistemologia científica, de caráter ensaístico, analisando as perspectivas de Karl Popper, o filósofo; Ludwik Fleck, o médico; e Thomas Kuhn, o físico, nas relações entre ciência e sociedade; prática científica e epistemologia; produção de conhecimento e condições sociais de sua elaboração. O filósofo, o médico e o físico: um caminho para pensar a prática científica e seus desdobramentos na história da medicina, trabalha com os autores citados na busca de compreensão dos seus principais conceitos e suas apropriações pelos novos estudos da ciência, sobretudo pela história da medicina, numa perspectiva ampliada da atividade científica, trazendo elementos sociais, culturais e históricos.

Diante desse breve percurso sobre o conteúdo do dossiê História e ciência em tempos de pandemia: reflexões e perspectivas, percebemos a multiplicidade de abordagens e temáticas nesse campo do conhecimento. Os trabalhos aqui apresentados circulam pela historicidade das práticas e discursos científicos e pelas doenças e experiências epidêmicas em múltiplas facetas, apontando para elementos da relação com o poder público, da exploração midiática e das transformações no cotidiano das populações. A riqueza de fontes, metodologias e espacialidades analisadas oferece ao leitor um amplo leque de perspectivas e possibilidades para compreensão da temática e para o próprio fortalecimento dos estudos em História das Ciências e da Saúde no país.

Boa leitura!

Referências

DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente – 1300-1800. Uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

ROSENBERG, Charles E. Explaining epidemics and other studies in the History of Medicine. Cambridge: Cambridge University Press, 1992.

ROSENBERG, Charles; GOLDEN, Janet. Framing disease: studies in cultural history. New Brunswick: Rutgers University Press. 1992.

Vanessa Lana – Doutora em História Casa de Oswaldo Cruz – Fundação Oswaldo Cruz. E-mail: [email protected]


LANA, Vanessa. Apresentação. Temporalidades. Belo Horizonte, v.12, n.2, maio | ago. 2020. Acessar publicação original [DR]

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