História medieval – SILVA (S-RH)

SILVA, Marcelo Cândido da. História medieval. São Paulo: Contexto, 2019, 160p.  Resenha de: SILVA, Kléber Clementino da. SÆCULUM – Revista de História, João Pessoa, v. 24, n. 41, p. 453-463, jul./dez. 2019.

A vinda a lume do novo livro do professor da USP Marcelo Cândido da Silva, História medieval, pela editora Contexto, deve sem dúvida dar motivo a comemorações por parte de estudantes e professores de história, bem como do mais público interessado. Apesar dos recentes avanços da medievalística em terras tupiniquins, por mérito de pesquisadores como Neri de Barros Almeida, Renato Viana Boy, Johnni Langer, entre outros, sem excluir o próprio autor ora resenhado – que já publicou sua tese doutoral sobre a monarquia franca, um conhecido livro discutindo a “queda” do Império Romano do Ocidente e outro sobre o crime no Medievo – sínteses atualizadas e de qualidade, ao alcance do leitor brasileiro, sobre os dez séculos em que, na periodização tradicional, se alonga a Idade Média são ainda produtos raros.  E é precisamente esta a lacuna que a recente publicação procura preencher: uma obra de pequena extensão e linguagem simples, tecida com sólida erudição e rigor acadêmico, revisitando tópicos julgados basilares para o primeiro contato com o campo da medievalística: o debate sobre as migrações germânicas e a “queda” do Império Romano do Ocidente; a dominação senhorial; a Reforma da Igreja; a crise dos séculos XIV e XV, entre outros. A opção pela exposição que combina capítulos temáticos com um discernível encadeamento cronológico, ademais, diferencia o novo texto do já clássico Idade Média: o nascimento do Ocidente, de Hilário Franco Jr., publicado em 1986, cujos blocos temáticos pensam o tempo medieval a partir de “estruturas” (políticas, econômicas, sociais, culturais, etc.), faceta teórico-metodológica recorrente nos estudos daquele professor. Este, aliás, como veremos, não é o único elemento que aparta ambos os estudos.

História Medieval afasta-se dessa abordagem estrutural, sobretudo no que ela comporta de imobilismo braudeliano, sem por isso abandonar, em alguns momentos, a interpretação historiográfica a partir da longa duração. Desvenda, à medida que avança a obra, desde a desestabilização política do Império Romano tardio, uma Idade Média que são muitas. Recusa peremptoriamente esquemas explicativos consagrados. No breve texto introdutório, contrasta a narrativa histórica formulada por seus predecessores do século XX com descobertas e reinterpretações das últimas décadas, oriundas de escavações arqueológicas e da releitura de fontes já levadas a prelo, como a compilação Monumenta Germaniae Historica ou os escritos do bispo Gregório de Tours e do godo Jordanes. Abre, também, nas referências bibliográficas, espaço para a recente produção brasileira, com a qual o leitor é convidado a se familiarizar. Do conjunto, emerge uma Idade Média multifacetada, irredutível a quadros teóricos de largo alcance espacial e geográfico – o que, como argumentaremos, é ao mesmo tempo bem-vindo e, em certa medida, problemático.

A introdução, ademais, antecipa os elementos centrais que serão desenvolvidos ao correr do livro. Não mais se sustenta a imagem de um Medievo exclusivamente marcado pela penúria, violência, pestes e caça a hereges, como foi tão comum pensar desde o século XIX até meados da década de 1980. Mesmo a Alta Idade Média, situada, na periodização tradicional, entre os anos 476 e 1000, não é retratada como época apenas de retrocesso civilizacional e depressão econômica. Os espaços urbanos jamais desaparecerão de todo, defende Silva, tampouco as feiras onde sobrevive o comércio de excedentes agrícolas e artesanais, muito embora reduzido a um raio de ação regional. O Império Carolíngio presidirá, na mesma direção, certa revivescência da prosperidade econômica e do interesse pela cultura clássica, relida sob uma ótica cristã. Estas iniciativas frutificarão após o ano mil, quando as trocas comerciais e a urbanização aceleram-se e as escolas citadinas proliferam e adensam seus estudos teológicos e jurídicos. O professor uspiano, pois, introduz o livro revelando seu contraste, em boa medida, com a historiografia mais largamente conhecida no Brasil, vinculada a nomes como Georges Duby, Guy Fourquin, Philippe Contamine, Édouard Perroy e o já citado Franco Jr. Todos estão, sintomaticamente, ausentes das referências bibliográficas. Há um quê freudiano no texto, um “assassinar o pai medievalista”, por assim dizer. A obra traz animada verve de polêmica erudita e não receia enveredar por novos caminhos.  O primeiro capítulo, “O mundo romano e os reinos bárbaros”, percorre o intervalo temporal entre os séculos III e VIII. Muito embora sem citar as teses de Peter Brown e Henri-Irénée Marrou (que desenvolvem o conceito de Antiguidade Tardia e vislumbram uma Roma a se projetar temporalmente para além das “invasões bárbaras”) desfaz, na esteira deles, a imagem de um Império Romano do Ocidente destruído pela crise do século III ou pelas invasões bárbaras. Ao contrário, avalia esta como uma época de transformação: germânicos e asiáticos não arruínam o Império, modificam-no e modificam-se com ele, configurando uma nova realidade “romano-germânica”. A metáfora biológica da “morte” latina do século V não encontra eco aqui. O autor demonstra por meio de que estratégias retóricas Jordanes, em sua Gética, forjou a imagem da Roma selvagemente conquistada pelos bárbaros, para satisfazer as ambições políticas de Justiniano, que em meados do século VI ansiava por reconquistar territórios ocidentais “usurpados” por godos e vândalos. Era uma representação entre outras então aventadas: o nacionalismo do século XIX alçou Jordanes à condição de voz definitiva do processo, erigindo o mito da espetacular queda imperial ainda hoje em voga.

Bem informado sobre novas descobertas arqueológicas – como aquelas realizadas em túmulos na Gália, que sugerem poucas mudanças na composição das elites, agora romano-germânicas, a governar o mundo ocidental – Marcelo Cândido da Silva alude a um nascimento medieval ainda marcadamente romano, em que se assiste a transição lenta, sem o catastrofismo com que a caracterizaram autores cristãos como Jerônimo e Agostinho, tão acreditados pela historiografia moderna. Deixa de existir, sim, uma autoridade imperial assentada na “Hespéria” ou Itália. Reis germânicos na Gália, nas penínsulas Ibérica e Itálica, todavia, legitimam seu mando como delegados do imperador do Oriente, de quem recebem títulos e insígnias. O latim segue sendo o idioma da administração e das leis, as quais, apesar do apelido de “bárbaras”, espelham-se em códices como o de Teodósio. E, sobretudo, a religião predominante é romana: o Cristianismo, em franca expansão para as áreas rurais e para as franjas do continente, na Germânia, na Britânia e na Escandinávia.

Os reinos germânicos, assim, são pensados como herdeiros dos romanos, a partir do processo de assimilação étnica reforçado na crise do século III. Não se nega o abalo econômico a deprimir esta Alta Idade Média, mas este seria decorrência não das “invasões bárbaras” e sim das destrutivas guerras de Justiniano para “reconquistar” o Ocidente e da peste que, no século VI, matou cerca de um quarto da população. Godos, francos, burgúndios e lombardos, ao cabo, não liquidaram os romanos: eles agora são os romanos. Não por acaso, textos francos atribuirão a esse povo origens troianas, tal como haviam feito os romanos (ao remontar sua ascendência ao herói Enéas). Da mesma forma, as elites merovíngias e carolíngias denominarão “bárbaros” aqueles que, em seu tempo, não se haviam convertido ao cristianismo e se “civilizado”. A Germânia, conclui o autor, a partir de Patrick Geary, nada mais foi do que uma invenção romana, um espaço em negativo, uma “não-Roma”, onde o caos esperava ser domado, colonizado, organizado e a partir do qual os romanos poderiam enxergar a si próprios, como em um espelho invertido. Ficção tão poderosa, aliás, que, ao assumirem o comando político do Ocidente, os guerreiros germânicos não tiveram alternativa senão se pensar, ao menos em parte, com base nessas ideias latinas. Por meio delas escreveram sua história e codificaram suas leis.  Desta leitura do primeiro capítulo, sobressai uma questão que atravessa todo o livro: o professor uspiano elabora uma curiosa damnatio memoriae de quase toda a medievalística anterior aos anos 1990, como se irremediavelmente superada, com pouco ou nada mais a ensinar. Trabalhos de pesquisa consagrados, realizados a partir de consistentes repertórios documentais e fino instrumental analítico, têm suas conclusões rechaçadas: apenas para se limitar a um exemplo, as ideias de Duby sobre o declínio da vida material, entre os séculos V e VII, sob os reis francos e godos, são consideradas desmentidas por novas descobertas. Isto, naturalmente, não é um problema, exceto pelo fato de se mostrar um parti pris a orientar grande parte da obra, uma “medievalística de combate” que – sem jamais abandonar a elegância e a cordialidade, assinale-se – procura convencer o leitor de que a historiografia até os anos 1980 consistiu em um somatório de impertinências e equívocos, que os historiadores e arqueólogos da nova geração finalmente chegaram para corrigir. Não que as críticas não estejam embasadas em escavações e reinterpretações documentais sólidas; estão, mas o exame dos inventários de algumas propriedades rurais gaulesas (p. 32) dificilmente permitirá concluir que não houve o empobrecimento da população, em grande parte do Ocidente, nos séculos V e VI. No máximo, abre as portas ao debate entre duas explicações concorrentes. Nesta História medieval, porém, o descobrimento novo arruína o entendimento anterior e o exclui, como norma.

Achados de novas pesquisas, aos olhos de Silva, mesmo quando temporal e espacialmente limitados, parecem sempre ter o poder de rapidamente esfacelar quadros explicativos anteriores. Estes não raro são proscritos após mínima ou nenhuma discussão, e isto, muitas vezes, sem oferecer explicações substitutas à altura, o que se revela problemático a uma obra de iniciação. Há certo iconoclasmo a perpassar os capítulos: às vezes estimulante, outras vezes incômodo, pelo exagero. A ânsia de desdizer os “clássicos”, em alguns momentos, leva o autor a quebrar a harmonia do quadro que, no mais, colore com habilidade. A Alta Idade Média, emerge, no livro em tela, de uma transição quase suave, gradativa, a partir do Império Romano tardio. Passa-se ao largo de toda a discussão sobre a “crise imperial”, que, como mostrou Moisés Antiqueira, é ainda objeto de preocupação dos historiadores. Silva procura amiúde denunciar “excessos” nas fontes que descrevem razias, genocídios, horrores, sublinhando “interesses políticos” por detrás dos relatos “apocalípticos”. Já as fontes, escritas ou arqueológicas, que sugerem as continuidades do processo merecem dele maior destaque e credibilidade. Escolha teórico-metodológica legítima, sem dúvida, mas que também traz implicações éticas importantes a encarar.

O segundo capítulo, “A dominação senhorial”, dá sequência cronológica à discussão anterior e sublinha, novamente, a marca das investigações das últimas décadas, que têm demonstrado o papel declinante do “Feudalismo” como ideia-força para entender a dinâmica histórica entre os séculos IX e XIII. O Feudalismo, adverte, descreve obrigações contraídas entre membros da elite rural e urbana, envolvendo ritos, cessão de bens e promessas de serviço. Mais do que uma sociedade “feudal”, no entanto, vivia-se então em uma sociedade “senhorial”, a delimitar relações verticalizadas entre uma pequena elite militar-fundiária e uma larga base de camponeses (e, em número menor, de citadinos).  O Grande Domínio, modelo hegemônico da propriedade rural no último quartel do primeiro milênio, não é visto como célula econômica voltada à autossuficiência, tal como se afirma em outras obras. Ao contrário, uma vez que, como argumenta o autor, as feiras comerciais sobreviveram por toda a Alta Idade Média, tais latifúndios explorariam a terra de modo racional, tenderiam à produção especializada de produtos agrícolas e artesanais e à sua venda nos mercados. As crises alimentares do período, nessa ótica, seriam resultado não de uma economia em escassez crônica, mas da eventual carestia dos cereais negociados, superando o poder aquisitivo dos mais pobres. Posição controversa e que, como outras que veremos adiante, acaso mereceria mais sólido embasamento do que o oferecido. O capítulo, além de atribuir ao Grande Domínio a iniciativa de ampliar as áreas cultivadas, arroteando florestas e pântanos com o uso de novas técnicas, associa-o a termos como “rentabilidade” e “produtividade”, delineando-o quase como um empreendimento capitalista avant la lettre, cujos latifundiários gerenciariam consoante as balizas do mercado aberto, o que, embora se compreendam as intenções do autor, não deixa de soar anacrônico e impertinente.

Com a desagregação do Império Carolíngio e o vácuo do poder imperial, entre fins do século IX e meados do XI, a Igreja procura assumir maior protagonismo político. Não ainda na condição de instituição coesa e encabeçada pela figura papal, mas sim pela atuação das diversas dioceses e monastérios que, com graus variados de autonomia perante a nobreza local, presidiam aos assuntos espirituais no Ocidente. Este esforço por instaurar uma nova ordem social, “pós-carolíngia”, tem na Paz ou Trégua de Deus (impondo, mediante rituais, a suspensão das ações militares em determinados períodos do ano litúrgico) um de seus instrumentos mais eficazes, tanto que, em breve, autoridades laicas se apropriarão da prática. No entanto, o autor, aqui em consenso com diversos pesquisadores das últimas décadas, não vislumbra no cenário da época a “anarquia feudal” defendida por Georges Duby, em seu famoso estudo sobre o Maconnais, segundo o qual o poder político antes detido pelos monarcas carolíngios e seus vassi dominici se pulverizara em inúmeros senhorios, cujos castelãos se teriam rebelado e soberanizado perante os estratos superiores da nobreza. Ao contrário, Silva julga exageradas as fontes que detalham os atos de violência senhorial, desconfiando da tática de carregar nas tintas para sobrevalorizar o papel pacificador dos clérigos. Contudo, leva além as críticas ao modelo explicativo dos chamados “mutacionistas”: nega até mesmo a clássica noção de privatização do poder público, que teria caracterizado o domínio dos senhores feudais. O mando que exerciam, contra-argumenta, fosse nos espaços rurais ou nos urbanos em ascensão, era de natureza ainda pública e por delegação divina, tal como o dos antigos reis, apenas limitado a circunscrição menor.

Como dito, a imagem da anarquia feudal a suceder o colapso imperial tem sido abandonada pela historiografia. Os capítulos da coletânea Storia Medievale, organizada por Manuali Donzelli em 1998, por exemplo, já apontavam os perigos de generalizar as conclusões de Duby para o conjunto da Europa ou mesmo da Frância Ocidental. Dominique Barthèlemy, por sua vez, surpreendia seus leitores ao propor uma “ordem feudal”, atacando a herança nacionalista das leituras oitocentistas sobre o período, que preconceituosamente o difamavam. Silva, portanto, alia-se de novo ao melhor da pesquisa atual ao discutir a sociedade senhorial, porém passa ao largo desse debate crucial, sem o qual a exposição adquire um caráter fragmentário, não generalizável. Saímos do capítulo com a ideia de que o processo em curso é complexo e facetado demais para ser compreendido no conjunto, o que não deixa de ser um problema. Entendemos o que ele não foi, pela crítica feita às explicações clássicas, mas o que ele foi permanece confuso. Multiplicam-se, no texto, diversos eventos em paralelo: a formação dos vilarejos, o incastellamento, encelulamento, até mesmo o “feudo camponês”, sem que estes conceitos sejam adequadamente trabalhados e formem um todo coerente. É possível que o autor esbarre nos limites da própria medievalística atual, cujos estudos de caso refutaram narrativas anteriores sobre a passagem do mundo carolíngio para o senhorial, faltando a formulação de uma síntese nova aceita para descrever as linhas mestras da transformação.  Curiosamente, o terceiro capítulo, “Igreja e sociedade”, baixa uma oitava no tom aguerrido entoado nos dois precedentes. Quebrando o encadeamento cronológico até então seguido, retorna aos primeiros séculos cristãos e pretende revisitar em panorama a história da Igreja, das origens à véspera da Reforma. Sua narrativa dos desenvolvimentos da Ecclesia, desde as expressões do chamado “cristianismo primitivo”, nos séculos I e II, até a crise da monarquia papal, nos séculos XIV e XV, traz uma filiação maior para com teses clássicas sobre o tema, o que se percebe inclusive nas referências bibliográficas, em que são citadas obras de décadas mais recuadas. A seção também contraria os recortes temporais mais curtos até então trabalhados, examinando a conquista da Europa pelo cristianismo na longuíssima duração de quase um milênio e meio. Dadas as dimensões modestas do capítulo, com trinta e quatro páginas, certos elementos terminam abordados com brevidade, enquanto outros, sem dúvida relevantes, são deixados de lado. No todo, porém, constitui útil ferramenta para cursos de graduação e para o primeiro contato com a Igreja medieval, pois exibe síntese coesa e toca no essencial da temática.

No apagar de um primeiro milênio em que se expandiu para o interior rural, para as franjas da Europa continental e para os arquipélagos do Mar do Norte e do Mar Báltico, a Igreja encontrou no ocaso do Império Carolíngio, entre os séculos IX e XI, a chance de assumir a liderança política da sociedade ocidental e conduzir sua reorganização. Face a um Papado que perdera suas “costas quentes” imperiais e se via acossado pela nobreza romana, o mosteiro de Cluny põe em movimento a Reforma da Igreja, que assumirá como programa a defesa da liberdade perante os leigos (Libertas Ecclesia) e do celibato clerical, como preceito de moralização do corpo institucional que se ia diferenciando do restante da cristandade. Reforma, aliás, ambiciosa, que visa a reconfigurar o espaço e o tempo segundo novos preceitos desenvolvidos pelo clero, cada vez mais sacralizado e distante do cristão comum, ao menos no discurso eclesiástico. O monge altomedieval, calcado nas hagiografias então escritas, oferece um modelo para a imagem de santidade.

O Papado, que desde muito defendia sua proeminência sobre o mundo cristão, após a aliança com os carolíngios encontra, finalmente, sustentação política para este pleito. Obtém o senhorio sobre diversos territórios no centro da Itália, formando o núcleo dos Estados Papais. Desde o ocaso imperial carolíngio, porém, tal projeto via-se ameaçado, com a dominação senhorial pesando sobre a Igreja, interferindo em suas eleições e investiduras. A Reforma que Cluny inicia e que o Papado, a partir do século XI, continua responde a esta conjuntura adversa: um “tomar as rédeas” da instituição e, no limite, da própria cristandade, algo expresso já pela fundação do Colégio dos Cardeais por Nicolau II, em 1059, a quem incumbe eleger novos pontífices. Dá-se a “Querela das Investiduras”, opondo o papa e o imperador no tocante à nomeação dos bispos nas dioceses, cujas consequências serão favoráveis à constituição do que se denomina “monarquia papal”, com apogeu no século XIII.  A concordata firmada em Worms, em 1122, não liquida as tensões entre estes poderes, sobrevivente por todo o Medievo, e o autor verá a Europa submetida a uma “teocracia pontifícia”, com governo sobre o espiritual e o temporal. A expressão não deixa de ter seu traço de exagero, pois as disputas com os reis de Portugal, da França, da Inglaterra e do imperador germânico apontam que tal “teocracia” era mais desejo que realidade. Para ficar em um exemplo – e não revisitar as excomunhões de João I Sem Terra da Inglaterra, Felipe II Augusto da França e Frederico II de Hohenstaufen do Sacro Império – D. Afonso III reinou em Portugal, por décadas, sob interdição papal, mas com significativos apoios no clero luso, e só à beira da morte se reconciliou com Roma. Era possível reinar sem aliança formal com a Cúria, pois. O anseio dos monarcas de manter controle sobre seu clero já é latente no século XII e produz resultados palpáveis a partir do XIII.  É esta Igreja cristã em empoderamento que estimula o “tempo das catedrais”, quando dezenas dessas gemas arquitetônicas foram erigidas em estilo românico e gótico, em especial nos espaços urbanos em desenvolvimento, e preside o movimento cruzadístico. Silva também aqui recusa explicações anteriores, que viam o crescimento populacional e os interesses comerciais como motivadores das Cruzadas. Não: é esta monarquia papal que põe em marcha as hostes feudais em direção à Terra Santa, contra os infiéis, ou ao Languedoc, contra os hereges albigenses. Trata-se de uma guerra essencialmente religiosa, à qual as cidades italianas, ao menos inicialmente, se opõem, por não vislumbrarem lucros na empreitada. A ideia de Trégua de Deus, impondo a paz entre os cristãos, teria como corolário a expedição externa contra os inimigos de Cristo. A imagem de uma cristandade latina unida exigiria a guerra para concretizar-se. Tem-se, pois, uma luta essencialmente político-ideológica, não obstante economicamente desvantajosa – o solo da Palestina é pobre para a agricultura, lembra o autor, e o avanço demográfico europeu, para outros historiadores o impulsionador das marchas, é posterior às primeiras cruzadas – mas ainda assim capaz de engajar milhares de soldados e peregrinos por um período de dois séculos. Uma guerra ideológica feita contra interesses econômicos? Posição intrigante, para dizer o mínimo, e que, infelizmente, não ocupa no texto espaço suficiente para uma adequada argumentação.

Ora, assim como as Cruzadas, também as heresias resultam da constituição dessa monarquia papal. A tese de História medieval é que, ao longo da Alta Idade Média, continuaram emergindo controvérsias doutrinais nas diversas dioceses, algo indicado nos escassos documentos sobreviventes. A Reforma da Igreja, a partir do século XI, introduzirá um conjunto de novos preceitos sobre o clero e o conjunto da cristandade, a partir de ideias-força como a imitatio Christi e a vita apostolica, impondo novos rigores sobre as práticas do clero. Isto, somado à multiplicação dos estabelecimentos de ensino e à difusão da alfabetização, transportou as divergências doutrinais prévias para novo patamar. E a monarquia papal, reivindicando a exclusividade de sua interpretação sobre os textos sagrados e sua supremacia sobre um mundo cristão uno, aplica-se a identificar, caracterizar e excluir grupos não-conformistas. Tais hereges, diante das perseguições sofridas, ou cedem e se integram, ou teimam e se radicalizam, o que termina por fazê-los alvos de cruzadas, após 1209, ou encaminhá-los aos tribunais da Inquisição, após 1231.  A heresia, argumenta Silva com perspicácia, não é uma realidade em si, mas formulação de uma Igreja militante, no processo de instauração de uma “sociedade persecutória” – também contra judeus, homossexuais, leprosos e feiticeiros. O catarismo, por exemplo, é um mito: jamais se tratou de uma “anti-Igreja” coesa, sim de numerosos movimentos independentes, da Espanha à Germânia, que o Papado, atribuindo-lhe “coerências imaginárias”, retratou como ameaça insidiosa à unidade cristã. O desafio desses intérpretes “não autorizados” do Verbo, como no caso de um Pedro Valdo, leigo comerciante da Lyon do século XI e inspirador dos valdenses, era particularmente perturbador ao clero. O que está em jogo, ao cabo, é a efetividade do dogma extra ecclesiam nulla salus: “não há salvação fora da Igreja”, de seus ritos, sacramentos, parafernálias e de sua compreensão das Escrituras. A “invenção do herege” é uma estratégia do poder, que se vê ameaçado e reage. Funcionará nos séculos XII e XIII, com os quatro concílios de Latrão elevando o Papado ao zênite e pontífices como Inocêncio III e Gregório IX tensionando as perseguições ao máximo. Por volta do pontificado de Bonifácio VIII (1295-1303), contudo, dar-se-á notável inflexão.  O quarto capítulo encerra o percurso cronológico da obra e, de certa forma, retoma o fio da meada momentaneamente interrompido ao fim do segundo capítulo. Intitula-se “Crises e renovações”, e não por acaso, pois seu argumento central é que os séculos XIV e XV, ordinariamente pensados como os da “crise medieval”, são, com efeito, de crise, mas de forma nenhuma generalizada. O tempo da Peste Negra é também época de maior letramento e difusão da escrita, de comércio crescente, de maior qualidade do artesanato, com produtos mais abundantes e baratos, de alimentação mais farta e variada. Crise e renovação convivem; mais do que isso, irmanam-se. O professor uspiano, de pronto, rejeita explicações malthusianas e marxistas sobre uma crise sistêmica e estrutural no mundo medieval. Tem-se crescimento demográfico, mas que jamais força a produção aos seus limites técnicos; há exploração do campesinato pela nobreza senhorial, mas sempre houvera e não é por conta dela que as revoltas se multiplicam.

O que teria produzido a depressão econômica – sempre pontual e circunstancial – agravada desde o último terço do século XIII, é a relação então firmada entre a economia rural e o comércio. Havia, é verdade, algumas áreas que vinham amargando estagnação econômica desde a década de 1270, mas acima disso há um mercado estruturado no período, que dirige seus produtos para zonas de maior lucratividade. A fome, assim, não resulta da falta de comida, mas da carestia especulativa dos preços dos cereais para além do poder aquisitivo dos pobres. Silva, pois, se empurra Malthus e Marx com uma mão, agarra-se logo à outra, invisível, de Adam Smith, para explicar o processo. Parece, aqui, apegar-se aos mesmos preceitos que o levaram a enxergar uma lógica empresarial no Grande Domínio e nos Senhorios dos séculos VIII a XIII. Em um contexto climático adverso, como no período entre 1315 e 1322, este inusitado laissez-faire medieval geraria fomes catastróficas, mesmo em meio a uma economia dinâmica, mas orientada para o lucro, a qual, pelo menos até meados do século XIV, não experimenta nenhuma fase de retração.

A catástrofe da Peste Negra, que atinge a Europa a partir de 1347 e mata entre um terço e metade da população, agora sim, precipita profunda crise econômica. Especialmente porque as epidemias reincidirão em surtos anuais, embora de menor impacto, até fins do século XVII. No entanto, se o impacto foi geral (estima-se que o norte da França perdeu cerca de 70% de sua população), a recuperação foi mais rápida nas áreas mais férteis. O modo como Silva atenua o quadro da “crise medieval”, ao cabo, parece ligar-se à leitura que também fizera, no primeiro capítulo, da crise do mundo romano: ambas estariam exageradas e mitificadas na historiografia. Ele, portanto, não vislumbra os séculos XIV e XV como épocas economicamente depressivas, e sim, na longa duração, um período de expansão técnica e econômica interrompido, na segunda metade do século XIV, pela catástrofe epidêmica. Recuo cuja superação já se flagra nos começos do século XV (se não antes), sem dúvida acelerada pela emergência do Estado, no mesmo período. História medieval, nessa seara, diverge do conhecido livro de Jérôme Baschet, A civilização feudal, ao propor que o Estado moderno emerge entre os séculos XIV e XV. Baschet, no quarto capítulo daquela obra, mobilizara os conceitos de Estado de Weber e Bourdieu para concluir que, no fim da Idade Média, ainda não estavam dadas as condições – por exemplo, o monopólio do uso da força – para se falar da existência de um Estado. Silva, no polo oposto, vê na França, na Ibéria e na Inglaterra já delineados os componentes da entidade estatal: máquina administrativa crescente, com sua consequente burocracia, fisco em estruturação, poder central que a um tempo promove guerras e protege os mercados e feiras.  No cômputo geral, a obra sob análise fratura as explicações consagradas sobre a agonia do Medievo, a começar pela de Huizinga, que em 1919 via os séculos XIV e XV como um período outonal, em que a religião e a arte obcecavam-se pela morte. O macabro que Huizinga supunha específico desses séculos finais, todavia, era comum desde épocas anteriores, como as mortificações dos Flagelantes ou o tema da Dança da Morte. É verdade que o Estado e o Mercado em fortalecimento pesaram sobre os ombros dos camponeses, agora mais atentamente vigiados pelas autoridades, separados entre “bons pobres”, de quem se deveria ter piedade, e os “maus pobres”, a quem urgia enforcar. Contudo, nessa Idade Média tardia em que Gutemberg inventava a imprensa e os marinheiros portugueses iniciavam sua expansão, a imagem de uma crise geral resulta contraditória. O que se tem, conclui o autor, é um processo no qual, em todas as classes, há perdedores e ganhadores; algo que não se encerra no século XV, senão que continua pela chamada Modernidade.

O que, sim, se encerra com o capítulo quatro é a narrativa cronológica de História medieval. A obra oferece, não obstante, uma quinta seção, à guisa de apêndice, intitulada “A fabricação da Idade Média”, na qual propõe discutir a emergência do conceito e as disputas teóricas e políticas em torno dele. Reflexão pertinente, pois o século XX foi pródigo em interessadas revisitações do tema: nazistas em busca de arcaicas zonas de “aldeamento germânico”, da Tchecoslováquia à Rússia, para justificar seu discurso do Lebensraum; nacionalistas sérvios como Slobodan Milošević, reavivando rancores ligados à expansão islâmica do século XIV. Silva discute ambos os exemplos, apontando que se inspiravam em abordagens já comuns no século XIX, quando, apesar da má opinião geral ainda forte sobre o período medieval, lá se foram buscar personagens, lendários ou não, cuja memória servisse de emblema a identidades nacionais em construção: o rei Arthur, para a Inglaterra Vitoriana, e Joana D’Arc, disputada por revolucionários e conservadores, na França.

A concepção de uma “Idade do Meio”, entre a Antiguidade e o Renascimento, já no nascedouro era retoricamente mobilizada como negativo da Modernidade, tal como a Germânia para o Império Romano. “Feudalismo”, por exemplo, é termo do século XVIII, surgindo para descrever os privilégios da nobreza francesa de então, que se julgava remontarem ao período medieval – o que, em muitos casos, não era verdade. O mesmo se dá com a proeminência da Igreja, tão odiosa ao iluminismo francês, conduzindo às caricaturas sobre a Idade Média elaboradas por um Gibbon ou um Voltaire. Mesmo o Romantismo oitocentista, que empreende certa revalorização do Medievo, conserva, segundo Silva, em grande medida, a hostilidade à Igreja. Sua visão sobre os românticos e o Oitocentos minora o impacto de obras como O gênio do Cristianismo (1802), de Chateaubriand ou, algum tempo antes, dos escritos do irlandês Edmund Burke. O capítulo dá maior relevo à interpretação marxista do Oitocentos, a qual idealizava a Germânia pré-romana como um sistema comunista que, nas pegadas de Rousseau, teria sido corrompida em contato com o Império Romano. Seja como for, o nacionalismo europeu teria contaminado os estudos medievalísticos (por exemplo, enaltecendo ou deplorando as migrações germânicas para o Império) até o cessar-fogo da Segunda Guerra Mundial. Só então, no contexto de uma nova ordem mundial, a revisitação ao tema mitiga as colorações ideológicas e a medievalística, enquanto ciência social, pode nascer.  Pensando o caso brasileiro, o autor indaga se convém falar de uma “herança medieval no Brasil”, a partir da conhecida obra do mexicano Luís Weckmann. Suas conclusões, porém, sublinham o equívoco de pensar que não houvera declínio medieval na Península Ibérica, de onde uma “matriz medieval” teria sido transportada para a América Latina. O raciocínio de Weckmann, das ligações entre o senhorio medieval e as capitanias hereditárias, parece-lhe mecânico e pouco convincente. Embora haja paralelos possíveis e a proposta comparativa não seja impertinente, Silva não se deixa seduzir pela ideia de um “Brasil medieval”, pois as influências indígena e africana, bem como a constituição de uma “economia-mundo” em que as novas colônias se inserem, teriam alterado profundamente o contexto histórico. A metodologia de Weckmann, com efeito, é problemática e padece de artificialismo, mas suas hipóteses são tentadores convites à reflexão: em que medida importa estudar a Idade Média para se compreender o processo de colonização do Brasil? Silva, como em outras passagens, abandona o debate depressa demais. Suas críticas e aqueles “paralelos possíveis e pertinentes” terminam como o amuse-bouche de uma refeição aguardada, mas não servida.

Tem-se, portanto, com o lançamento de História medieval, uma indiscutível contribuição para os estudos medievalísticos no Brasil, apresentando aos leitores problemáticas, métodos e resultados de pesquisas originais, que têm reavaliado quadros explicativos consagrados. A maior força da obra deriva da grande erudição do autor que, sem tirar-lhe a clareza, põe-nos em contato com uma Idade Média em franco processo de desconstrução. Invasões bárbaras, Feudalismo, “o terrível século XIV”: ideias e imagens bem assentadas, mesmo em outras obras recentes, sobre o que foi aquele período esmigalham-se sob a pena de Marcelo Cândido da Silva. Na senda de Nietzsche, que filosofava com o martelo, Silva historia com o martelo.

No entanto, com o perdão do lugar-comum, em sua maior força reside também seu ponto fraco. Numa obra de dimensões modestas, a desconstrução muitas vezes é feita de forma aligeirada e não é acompanhada de novas construções. O leitor é não raro deixado entre os escombros das explicações espatifadas. As teses de Duby sobre a formação da sociedade feudal, construídas ao longo de décadas, são negadas em poucas linhas; as motivações político-ideológicas das Cruzadas, que de início não prometeriam consideráveis ganhos econômicos, são defendidas sem os adequados esforços de embasamento, o que resulta pouco persuasivo. História medieval é quase uma “contra-história” da Idade Média, como aquela que recentemente compôs Michel Onfray, no campo filosófico. Posições historiográficas contramajoritárias, como as que predominam no texto, são bem-vindas, estimulantes e alvissareiras, todavia reivindicariam mais sólida argumentação e sustentação – o que nos põe diante de um problema metodológico, no plano de concepção do livro e na formulação de sua narrativa. Nesses e em outros casos, é provável que lidemos com limitações não do autor, mas da obra, posto que ele, em outros trabalhos, já demonstrou seu amplo domínio sobre a medievalística moderna. No entanto, é a obra que resta em nossas mãos, como instrumento a produzir novas aprendizagens. Desafios como o que ele lança ao saber historiográfico acaso exigiriam as dimensões não de um livrinho fininho, mas daqueles antigos compêndios, de vários volumes capazes de ficar de pé, sozinhos, em nossas estantes.

Referências

ANTIQUEIRA, Moisés. Era uma vez a crise do Império romano no século III: percursos de um recente itinerário historiográfico. Revista Diálogos Mediterrânicos, n. 9, dez/2015, pp. 152-168.

BARTHÉLEMY, Dominique. L’ordre seigneurial, XIè-XIIè siècles. Paris: Ed. Seuil, 1990.

BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: no ano mil à colonização. São Paulo, Globo, 2006.

DONZELLI, Manuali (org.). Storia Medievale. Roma: Donzelli Editore, 1998.

FRANCO JR., Hilário. Idade Média: o nascimento do Ocidente. São Paulo, Brasiliense, 2001 (1986).

ONFRAY, Michel. Contra-história da filosofia. 6 vols. São Paulo: Martins Fontes, 2008-2017.

Kléber Clementino da Silva – Graduado em História pela Universidade Federal de Pernambuco (2006), Mestre em Educação com distinção (2009) e Doutor em História (2016) pela mesma instituição, com estágio doutoral na Universidade de Évora, Portugal (2016). Desenvolveu, no mestrado, pesquisa sobre a prática docente nos cursos pré-vestibulares. No doutoramento, investigou as disputas em torno da escrita da história da Guerra Holandesa no Atlântico Sul (1625-1698). Áreas de interesse e atuação: História Medieval, História Moderna, Retórica e Escrita da História, Teoria e Filosofia da História, História da Historiografia, Didática e Ensino de História. E-mail: [email protected].

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