História pública no Brasil: Sentidos e itinerários – MAUAD et al (RTA)

MAUAD, Ana Maria; ALMEIDA, Juniele Rabêlo de; SANTHIAGO, Ricardo (orgs.). História pública no Brasil: Sentidos e itinerários. São Paulo: Letra e Voz, 2016, 348p. Resenha de: FRAZÃO, Samira Moratti. História pública no Brasil: espaço de apropriações e disputas. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.8, n.19, p.374-379. set./dez., 2016.

Na contemporaneidade, momento em que a história é vista midiaticamente como uma bússola para questões políticas, sociais, religiosas e culturais que emergem no presente, como refletir a necessidade de revisitar o passado com abordagens que fogem às práticas históricas institucionalizadas? Como pode ser traduzida fora do ambiente acadêmico essa produção ou intenção de propor um conhecimento histórico que se encontra em circulação em diversos suportes e tecnologias? A história pública pode ser uma das respostas a essas e outras questões abordadas no livro “História Pública no Brasil: Sentidos e itinerários”, lançado em 2016 pela editora Letra e Voz.

Para além de novas reflexões, a obra é uma continuidade ao trabalho empreendido em 2011, ano em que foi lançado o livro “Introdução à História Pública”, organizado por Juniele Rabêlo de Almeida e Marta Gouveia de Oliveira Rovai. Posteriormente os pesquisadores, entre historiadores, comunicólogos e especialistas de diversas áreas das Ciências Humanas e Sociais, formaram a Rede Brasileira de História Pública (RBHP), cujos membros – dos quais se destacam Ana Maria Mauad, Juniele Rabêlo de Almeida e Ricardo Santhiago, organizadores deste livro – propõem com “História pública no Brasil” conectar percepções atualizadas sobre a prática, considerada uma produção histórica “feita para, com e pelo público” (MAUAD, ALMEIDA & SANTHIAGO, 2016, p. 12, grifo dos autores).

O livro reúne 24 ensaios, além da introdução e do posfácio, cuja tônica principal é a história pública, seus significados e a polifonia reflexiva de subtemas que agregam questões epistemológicas, teóricas e metodológicas sobre a prática, seus usos e abusos. Enquanto campo emergente no Brasil, suscita a reflexão sobre as disputas existentes evocando não apenas o endosso a esse tipo de produção histórica, mas também o seu questionamento crítico. A obra fornece, nesse sentido, subsídios para refletir acerca do tema sob a ótica concordante e dissonante e, acima disso, a compreensão de que o cruzamento de saberes pode possibilitar a expansão do conhecimento.

É dividido em seis partes, que agrupam, cada uma, capítulos os quais versam sobre questões gerais da história pública (parte um), seu uso no universo da criação (parte dois), nas comunicações (parte três), na educação e no ensino de história (parte quatro), nas políticas públicas e culturais (parte cinco) e nos debates no espaço público (parte seis). Uma das principais questões abordadas é o que seria então a história pública. A partir das definições sugeridas pelos autores, este campo e/ou prática pode ser entendido como um modo de divulgação histórica empreendida pelo público ou com o auxílio dele em um panorama dialético, do qual participam diversos agentes profissionais, não apenas historiadores.

De modo geral, a história pública pode ser vista como um ambiente de múltiplas possibilidades, por meio do qual é possível considerar o outro em sua diferença e estabelecer diálogos, promover trocas e possibilitar uma pluralidade de sentidos epistêmicos em prol de um saber histórico maior. Como no capítulo “História pública e educação: Tecendo uma conversa, experimentando uma textura” (p. 175-184), no qual Everardo Paiva de Andrade e Nívea Andrade propõem a história pública em suas diferentes modalidades como um entrelugar onde os docentes promovem o confronto de ideias com a interação entre alunos e o compartilhamento de saberes, acadêmicos ou não, sobre as práticas e teorias da Educação. Em uma perspectiva semelhante, Thais Nívia de Lima e Fonseca busca compreender em “Ensino de história, mídia e história pública” (p. 185-194) como o conhecimento histórico pode ser problematizado com o auxílio das mídias e tecnologias contemporâneas, visando pensar em formas inovadoras de produzir e visibilizar a produção historiográfica em benefício do ensino e, consequentemente, da circulação do aprendizado.

No capítulo inicial, “Duas palavras, muitos significados: Alguns comentários sobre a história pública no Brasil” (p. 23-35), o comunicólogo e historiador Ricardo Santhiago evidencia que a história pública ainda suscita “suspeita e apreensão” ou é vista com “precaução e entusiasmo” (p. 23) no Brasil, onde vive um momento de expansão nos últimos quinze anos, desenvolvimento ligado a publicações disponíveis, como é o caso do livro lançado em 2011, ou a eventos que trataram de temas convergentes na história pública, como são os casos da história oral, da memória, da história do tempo presente, do patrimônio e da musealização. A história pública se ancora em um campo interdisciplinar, com uma pluralidade de vozes, saberes, técnicas e reflexões teóricas. Não pertence ou é institucionalizada apenas na História, ainda que tenha na disciplina sua essência.

A certa altura do livro, Santhiago afirma que o fazer ou mesmo pensar história pública está imbricado em um “grande guarda-chuva conceitual” (p. 26) que abriga perspectivas epistemológicas como os usos do passado, da memória e as demandas sociais oriundas de tais questões, a divulgação da história como ciência e saber e, nesse ensejo, as apropriações históricas em âmbito midiático, artístico, literário e cultural. A novidade que emana deste campo em particular é refletir sobre a interseção de agentes que atuam na visibilidade desse tipo de conhecimento histórico e as lacunas que tal discussão pode ocupar acadêmica e/ou publicamente.

Nesse sentido o embate sobre a atuação de jornalistas no campo dos historiadores é um dos pontos que geram controvérsias. Mesmo que seja evocado como um dos principais fatores de discussão em torno do fazer história pública no Brasil, não deve ser o motor central para instigar sua reflexão. Para Santhiago, sintetizar o debate sob este ponto de vista “… estreita possibilidades de diálogos e fortifica muros corporativos como também consiste em um empobrecimento enorme de uma discussão complexa” (p. 30). Portanto, mais que buscar pistas para entender quem é legítimo para promover a história pública, o importante é entender sua pluralidade epistemológica e o público do e para o qual se deseja falar.

Tal questão também está diluída no capítulo “O historiador-curador: a experiência de realizar uma exposição histórica voltada a públicos diversos” (p. 275-285), cujo autor é Benito Bisso Schmidt. A partir de sua experiência como curador de uma exposição no Museu da Universidade do Rio Grande do Sul entre 2010 e 2011, Benito discute como a história pode ser apresentada à sociedade por meio de ações diferentes das aplicadas por historiadores profissionais. Para ele, o historiador que pretende trabalhar com história pública deve entender a dinâmica do trabalho em uma equipe multidisciplinar. A administração dos conflitos e o respeito às diferenças nessa relação também é primordial para alcançar o objetivo pretendido.

E como se constitui esse público apropriado na abordagem dos diversos agentes que atuam em uma disseminação pública da história? É a ideia central partilhada por Renata Schittino em “O conceito de público e compartilhamento da história” (p. 37-46). Ela parte da reflexão em torno da concepção grega de organização da polis e da constituição de um espaço político por meio do qual os cidadãos livres e com poder poderiam decidir aspectos gerais sobre a vida em sociedade, as decisões que emanavam dessas discussões e a proposição de ações. Dialoga com a ideia de ver e ser visto, ouvir e ser ouvido como um dos sentidos de ser público postulados por Hannah Arendt. Em razão disso, nem tudo o que ocorre será público, assim como nem todo público será relevante, alinhavando a discussão de Jürgen Habermas e o conceito de esfera pública e dos públicos que participam desse processo.

A história pública também tem na imaterialidade um lugar para ser apresentada pelo e para o público, como as tradições orais, as perfomances e as festas, como exposto por Hebe Mattos e Martha Abreu em “A história como performance: Jogos, quilombos e a memória do tráfico ilegal de escravizados africanos” (p. 221-235), capítulo que abre a quinta parte do livro. As autoras realizaram um estudo de caso em três comunidades negras no Rio de Janeiro onde foi registrada a prática do Jongo do Sudeste, manifestação artística e cultural enraizada historicamente desde as práticas de canto, dança, percussão e verso realizadas por africanos escravizados que viveram em áreas cafeeiras na região sudeste do Brasil no passado e que ainda hoje são rememoradas. Na ocasião, coube a historiadores o papel de interlocução no processo de patrimonialização de um bem imaterial, como é o caso do Jongo e de outras manifestações culturais.

As oralidades, nesse contexto, possuem um parentesco com a história pública, na reflexão proposta por Juniele Rabêlo de Almeida no capítulo “Práticas de história pública: O movimento social e o trabalho de história oral” (p. 47-55). Juniele observa que os sujeitos que constituem o objeto de análise da pesquisa podem atribuir significações históricas não apenas ao problema analisado, mas também a suas trajetórias de vida. A história pública, pois, pode promover um ambiente no qual o conhecimento acadêmico e o não-acadêmico convergem para a produção de um saber amplo sobre o passado e o presente, elaborado por muitas mãos.

Portanto, entender a história enquanto algo público é um trabalho complexo, que demanda múltiplas abordagens, algumas mais próximas ao ofício do historiador, outras desafiadoras e instigantes sobre seu papel na circulação do conhecimento histórico em um campo em emergência. Saberes que convivem entrelaçados em uma atmosfera de disputas, mas que visam, sobretudo, a promoção de um conhecimento que não deve ter apenas no recinto acadêmico sua validade e legitimação.

Samira Moratti Frazão – Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina. Brasil. E-mail: [email protected]

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