Inventar a heresia? ZERNER (VH)

ZERNER, Monique (org.). Inventar a heresia? Discursos polêmicos e poderes antes da Inquisição. Campinas: Editora da Unicamp, 2009, 304 p. Resenha de: SILVA, Carolina Gual da. Varia História. Belo Horizonte, v. 28, no. 47, Jan./ Jun. 2012.

A Editora da Unicamp, em parceria com o LEME (Laboratório de Estudos Medievais USP/Unicamp), inaugura com essa obra uma série de traduções de importantes textos dedicados à História Medieval com o intuito de tornar acessíveis obras que discutem de forma original e atualizada temas da historiografia medieval. Este livro, organizado por Monique Zerner, discute a construção do discurso anti-herético na Europa pré-Inquisitorial.

Monique Zerner, professora emérita da Universidade de Nice, pesquisadora vinculada ao CNRS e experiente em estudos sobre as heresias, 1 coordenou os trabalhos de outros nove pesquisadores da Antiguidade Tardia e Idade Média, reunidos no seminário “Heresia, estratégias de escrita e instituição eclesial” acontecido em Nice entre 1993 e 1995. O livro publicado na França em 1998 agora chega para os leitores brasileiros em versão traduzida.

A obra é composta por uma introdução, feita pela organizadora, oito capítulos, dois excursos e um posfácio. Os dois primeiros capítulos se referem a textos da Antiguidade Tardia com Jean-Pierre Weiss escrevendo o primeiro capítulo, “O Método Polêmico de Santo Agostinho no Contra Faustum” e Jean-Daniel Dubois com “Polêmicas, Poder e Exegese: o exemplo dos gnósticos antigos no mundo grego”. A esses capítulos se segue o primeiro excurso que inaugura a discussão em torno do século XI, “Saint-Victor de Marselha no Final do Século XI: um eco de polêmicas antigas?”, escrito por Michel Lauwers. A partir do excurso temos os capítulos referentes aos séculos XI e XII, o principal foco do livro: capítulo 3, de Guy Lobrichon, Arras, 1025, ou o “Processo Verdadeiro de uma Falsa Acusação”; capítulo 4, “A Argumentação Defensiva: da polêmica gregoriana ao Contra Petrobrusianos de Pedro, o Venerável”, de Dominique Iogna-Prat; capítulo 5, de Monique Zerner, “No Tempo do Apelo às Armas Contra os Hereges: do Contra Henricum do monge Guilherme aos Contra Hereticos“; capítulo 6, novamente de Michel Lauwers, “Os Sufrágios dos Vivos Beneficiam os Mortos? História de um tema polêmico (séculos XI-XII)”; capítulo 7, “Na Época em que Valdo não era Herege: hipóteses sobre o papel de Valdo em Lyon (1170-1183)”, de Michel Rubellin; capítulo 8, escrito por Jean-Louis Biget, “Albigenses: observações sobre uma denominação”; o segundo excurso, “Um Caso de não Heresia na Gasconha no ano de 1208”, por Benoît Cursente; e finalmente o posfácio escrito por Robert Ian Moore.

É interessante notar que, embora seja uma coletânea de diferentes autores, os textos aparecem como capítulos de uma mesma obra e não como artigos independentes reunidos. Isso se deve, em parte, ao contexto de produção do livro, resultante de pesquisa conjunta dos autores ao longo de cerca de cinco anos. Os textos de Inventar a Heresia? possuem uma coerência e coesão muito grande não apenas na temática, mas também no tipo de documentação utilizada e principalmente na linha teórico-metodológica que seguem. Eles podem, sim, ser lidos separadamente, mas é em seu conjunto que eles ganham uma força argumentativa e explicativa que tornam essa uma obra tão rica.

Zerner nos apresenta, na introdução, todas as motivações teóricas e metodológicas que guiaram os textos apresentados no livro. O impulso inicial veio das pesquisas dos anos 1980 da própria autora e da inquietação dela e de vários outros pesquisadores, principalmente a partir dos anos 1990, em relação ao tratamento dado pelos historiadores ao catarismo, nas palavras da autora, “tomado como um fato indiscutível na historiografia francesa”.2 Com os seminários de Nice colocou-se a necessidade de pensar as relações entre heresia e estratégias eclesiásticas que tiveram um papel fundamental em sua construção doutrinal e historiográfica.

Surge, assim, a necessidade de considerar as fontes de uma maneira mais crítica, pensando-as dentro da lógica de sua produção, questão ressaltada por Moore no posfácio como sendo “a regra mais elementar porém facilmente negligenciada por nosso métier“.3 Assim, a preocupação com as fontes pode ser vista claramente no tratamento dado, em todos os capítulos do livro, aos seus respectivos documentos. Todos os autores baseiam suas pesquisas fortemente sobre a análise crítica das fontes primárias em relação aos seus contextos de produção (presente em todos os textos, mas com maior ênfase no capítulo de Monique Zerner no tratamento da autoria e composição dos manuscritos), aos mecanismos retóricos e discursivos (particularmente o texto de Jean-Pierre Weiss a propósito da obra de Santo Agostinho e de Dominique Iogna-Prat a respeito do discurso de Pedro, o Venerável), aos termos utilizados (especialmente na discussão sobre o termo “albigense” feita por Jean-Louis Biget) e às relações do texto escrito com as práticas sociais (Michel Lauwers no capítulo sobre os sufrágios dos vivos). Essa orientação dialoga com a historiografia anglo-americana sobre as práticas da escrita com o tema da literacy.4

Outro elemento de coerência da obra está na escolha das fontes utilizadas pelos pesquisadores. Os estudos trabalham com os textos polêmicos dos séculos XI e XII, à exceção dos dois capítulos iniciais dedicados aos textos polêmicos da Antiguidade Tardia. As fontes desses capítulos iniciais, especificamente o Contra Faustum de Agostinho e o texto de Irineu de Lyon contra os gnósticos, têm como função explicar o método polêmico e lançar luz sobre as técnicas retóricas utilizadas. Eles servem como uma ferramenta para que se possa entender, mais à frente, o tipo de texto que se desenvolveu nos séculos XI e XII e cujas formas de argumentação são bastante semelhantes.

Por fim, os textos são guiados pelo título provocador da obra em forma de pergunta: Inventar a heresia? O capítulo que se atém de forma mais direta a essa pergunta é o de Jean-Daniel Dubois, mas a resposta – ou a pergunta – é o fio condutor de todos os autores. Numa organização que vai progressiva e quase que cronologicamente montando o quadro das heresias nos séculos que antecedem a Inquisição, cada autor procura demonstrar que o discurso sobre a heresia se constitui muito mais como uma construção discursiva – daí a ideia de invenção – do que uma realidade vivida.

Guy Lobrichon, por exemplo, demonstra a autenticidade do sínodo de Arras de 1025. Entretanto, ele comprova que a maneira como o manuscrito foi registrado e organizado em um dossiê, mais de um século depois, junto com outros documentos anti-heréticos, deturparam seu sentido original em nome de interesses e realidades da época da compilação. Zerner faz o mesmo com a edição de um tratado contra o herege Henrique, feita por Raoul Manselli nos anos 1950. A autora mostra que a edição, na verdade, une três documentos diferentes de épocas também diferentes e cria a falsa impressão de um dossiê anti-herético que jamais existiu para o caso de Henrique.

De forma mais direta, Michel Lauwers inicia seu texto já com a afirmação “A heresia é certamente o produto de um discurso forjado pela instituição eclesial”. 5 Além da ênfase na construção do discurso, Lauwers coloca outro tema que é uma constante do livro: a relação entre a institucionalização da Igreja e o combate à heresia. Lobrichon associa esse movimento anti-herético ao crescimento e fortalecimento dos cistercienses, hipótese também fortemente sustentada por Michel Rubellin e Jean-Louis Biget. Iogna-Prat, Zerner, Rubellin e Cursente enfatizam o processo da reforma gregoriana, particularmente o fortalecimento do poder papal, como um importante fator na “invenção” da heresia.

O elemento político também aparece de forma bastante clara, culminando com o caso relatado no último excurso, de Benoît Cursente, em que aquilo que seria possivelmente considerado como heresia em outras regiões da França ou mesmo da Itália na Gasconha foi dispensado como um incidente sujeito apenas a leves penas e multas e facilmente resolvido. Não interessava ao contexto político envolvendo o papa Inocêncio III e o rei João da Inglaterra que aquilo tomasse as proporções de uma heresia. O caso deveria “ser tratado com cuidado, como um abscesso local a cortar e não como uma metástase da peste herética a erradicar”. 6

Outro exemplo da interferência do fator político é o caso de Valdo, como discute Rubellin. Até o ano de 1183, Valdo teria sido um aliado do arcebispo de Lyon, inclusive com a simpatia do papa Alexandre III, o que permitiu que ele seguisse seus ideias religiosos livremente. Com a morte desses dois aliados, a eleição de um novo arcebispo cisterciense e o contexto senhorial da região, Valdo e seus seguidores foram expulsos de Lyon. No momento em que os interesses locais se transformaram, Valdo tornou-se uma ameaça em potencial e foi, então, tachado de herege.

Jean-Louis Biget também demonstra o quanto a “fraqueza relativa” do condado de Toulouse, envolvido em inúmeras guerras e disputas internas, favoreceu o desencadeamento da cruzada albigense de 1209. A existência e quantidade de hereges na região de Albi foram amplamente exageradas com o intuito de desviar as forças que ameaçavam a região. Além do contexto político, Biget destaca, novamente, que o espírito cisterciense teve papel fundamental na elaboração da noção dos albigenses como hereges.

Essa referência repetida ao papel de Cister na criação do discurso anti-herético nos séculos XI e XII também aponta para o elemento religioso e espiritual presente nesse movimento. Embora enfatizem o elemento político, os autores em nenhum momento eliminam o componente religioso da equação. Há questões de doutrina e crença envolvidas, mas elas são colocadas, na maioria das vezes, a serviço dos interesses de unificação e institucionalização da Igreja.

Os autores tampouco negam a existência de heresias. A afirmação da “invenção” da heresia se refere especificamente à maneira como a Igreja construiu a imagem delas, transformando-as em uma heresia, exagerando seu alcance e seu perigo, definindo o que era um comportamento herege, por fim criando uma imagem tão bem elaborada que orientou boa parte das pesquisas sobre heresias até os dias atuais. Essa postura dos autores também revela uma crítica à leitura literal, quase ingênua, da documentação por boa parte dos estudiosos.

Ela também tem o intuito de deixar claro que o contexto dos séculos XI e XII é bastante diferente daquele do século seguinte, com a instituição dos tribunais inquisitoriais. Iogna-Prat, em seu capítulo sobre o Contra Petrobrusianos, lembra que, a partir do século XIII, a heresia se torna algo impronunciável. Não é mais o momento de polemizar, argumentar. O tom dos textos muda radicalmente. Com a Inquisição e o estabelecimento da heresia como crime de lesa-majestade passa-se do plano judiciário ao mais discursivo.

E foi nesse contexto da Inquisição que a maioria dos dossiês e tratados anti-heréticos foi compilado. Com isso, criou-se a falsa impressão de que as heresias, particularmente aquela denominada genericamente de “cátara”, explodiam já nos séculos XI e XII e exigiam empreitadas maciças para combatê-las. Sem uma análise criteriosa da documentação através dos elementos da crítica documental, corre-se o risco de ver nesses documentos uma expressão da realidade e não uma construção discursiva que cria uma realidade.

É ao trazer essa abordagem crítica e nova de fontes já conhecidas (é importante ressaltar que as fontes utilizadas são já estudadas, muitas delas editadas) que a obra organizada por Monique Zerner se mostra um elemento fundamental para o avanço dos estudos sobre as heresias na Idade Média. Além disso, os textos mesclam um caráter bastante didático – explicando os contextos e fornecendo dados biográficos e históricos para o leitor não tão familiarizado – com um tom altamente erudito – apresentando citações originais em latim, trazendo em anexos trechos dos documentos trabalhados e fazendo uma discussão teórica e metodológica muito aprofundada.

O Posfácio não é tanto uma conclusão quanto um apanhado geral da obra, ressaltando e resumindo alguns dos pontos mais importantes discutidos. Robert Ian Moore, ele próprio um grande contribuinte para o estudo das heresias,7 destaca que esse livro é apenas o começo, mas um começo de extrema importância para que se escreva de novo a história das heresias nos dois séculos que antecedem a cruzada albigense. Monique Zerner aponta para estudos e edições em andamento que poderão trazer novas interpretações. Espera-se que a tradução dessa obra para o português ajude os estudantes medievalistas brasileiros a se inserirem nesse debate historiográfico tão atual e significativo e quem sabe trazer, eles também, contribuições futuras. Reutilizando Duby a partir de Monique Zerner – que foi sua aluna – “A história continua”.8

1 Entre seus trabalhos estão: La croisade albigeoise. Paris: Gallimard, 1979; Le cadastre, le pouvoir et la terre:le comtat venaissin pontifical au début du XVe siècle. Rome: Ecole française de Rome, 1993; (org.). L’histoire du catharisme en discussion:le concile de Saint-Félix, 1167. Nice: Centre d’études médiévales, 2001.
2 ZERNER, Monique. Introdução. In: Inventar a heresia? Discursos polêmicos e poderes antes da Inquisição. Campinas/São Paulo: Unicamp, 2009, p.7.         [ Links ] 3 MOORE, Robert Ian. Posfácio. In: Inventar a heresia?, p.279.
4 Zerner aponta, particularmente, para os estudos de Brian Stock.
5 LAUWERS, Michel. Os Sufrágios dos vivos beneficiam os mortos? História de um tema polêmico (séculos XI-XII). In: Inventar a heresia?, p.163.         [ Links ] 6 CURSENTE, Benoît. Um Caso de não Heresia na Gasconha no ano 1208. In: Inventar a Heresia?, p.273.
7 Sua mais importante obra é MOORE, Robert Ian. The formation of a persecuting society: power and deviance in western Europe, 950-1250. Oxford: Blackwell Publishers, 1987,         [ Links ] na qual já apresentava a ideia da heresia como uma “criação” vinculada ao desenvolvimento e fortalecimento das autoridades eclesiásticas.
8 Citado por ZERNER, Monique. Introdução. In. DUBY, Georges. L’histoire continue. Paris: Poches Odile Jacob/Points/Seuil, 1991, p.13.         [ Links ]

Carolina Gual da Silva – Mestre em História Social pela USP. Doutoranda em História – Unicamp/Ecole de Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris – Bolsista CNPq/CAPES Departamento de História/IFCH Cidade Universitária Zeferino Vaz Distrito de Barão Geraldo -13083-896 – Campinas – SP [email protected]/[email protected].

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