Inventar a heresia? ZERNER (VH)

ZERNER, Monique (org.). Inventar a heresia? Discursos polêmicos e poderes antes da Inquisição. Campinas: Editora da Unicamp, 2009, 304 p. Resenha de: SILVA, Carolina Gual da. Varia História. Belo Horizonte, v. 28, no. 47, Jan./ Jun. 2012.

A Editora da Unicamp, em parceria com o LEME (Laboratório de Estudos Medievais USP/Unicamp), inaugura com essa obra uma série de traduções de importantes textos dedicados à História Medieval com o intuito de tornar acessíveis obras que discutem de forma original e atualizada temas da historiografia medieval. Este livro, organizado por Monique Zerner, discute a construção do discurso anti-herético na Europa pré-Inquisitorial.

Monique Zerner, professora emérita da Universidade de Nice, pesquisadora vinculada ao CNRS e experiente em estudos sobre as heresias, 1 coordenou os trabalhos de outros nove pesquisadores da Antiguidade Tardia e Idade Média, reunidos no seminário “Heresia, estratégias de escrita e instituição eclesial” acontecido em Nice entre 1993 e 1995. O livro publicado na França em 1998 agora chega para os leitores brasileiros em versão traduzida.

A obra é composta por uma introdução, feita pela organizadora, oito capítulos, dois excursos e um posfácio. Os dois primeiros capítulos se referem a textos da Antiguidade Tardia com Jean-Pierre Weiss escrevendo o primeiro capítulo, “O Método Polêmico de Santo Agostinho no Contra Faustum” e Jean-Daniel Dubois com “Polêmicas, Poder e Exegese: o exemplo dos gnósticos antigos no mundo grego”. A esses capítulos se segue o primeiro excurso que inaugura a discussão em torno do século XI, “Saint-Victor de Marselha no Final do Século XI: um eco de polêmicas antigas?”, escrito por Michel Lauwers. A partir do excurso temos os capítulos referentes aos séculos XI e XII, o principal foco do livro: capítulo 3, de Guy Lobrichon, Arras, 1025, ou o “Processo Verdadeiro de uma Falsa Acusação”; capítulo 4, “A Argumentação Defensiva: da polêmica gregoriana ao Contra Petrobrusianos de Pedro, o Venerável”, de Dominique Iogna-Prat; capítulo 5, de Monique Zerner, “No Tempo do Apelo às Armas Contra os Hereges: do Contra Henricum do monge Guilherme aos Contra Hereticos“; capítulo 6, novamente de Michel Lauwers, “Os Sufrágios dos Vivos Beneficiam os Mortos? História de um tema polêmico (séculos XI-XII)”; capítulo 7, “Na Época em que Valdo não era Herege: hipóteses sobre o papel de Valdo em Lyon (1170-1183)”, de Michel Rubellin; capítulo 8, escrito por Jean-Louis Biget, “Albigenses: observações sobre uma denominação”; o segundo excurso, “Um Caso de não Heresia na Gasconha no ano de 1208”, por Benoît Cursente; e finalmente o posfácio escrito por Robert Ian Moore.

É interessante notar que, embora seja uma coletânea de diferentes autores, os textos aparecem como capítulos de uma mesma obra e não como artigos independentes reunidos. Isso se deve, em parte, ao contexto de produção do livro, resultante de pesquisa conjunta dos autores ao longo de cerca de cinco anos. Os textos de Inventar a Heresia? possuem uma coerência e coesão muito grande não apenas na temática, mas também no tipo de documentação utilizada e principalmente na linha teórico-metodológica que seguem. Eles podem, sim, ser lidos separadamente, mas é em seu conjunto que eles ganham uma força argumentativa e explicativa que tornam essa uma obra tão rica.

Zerner nos apresenta, na introdução, todas as motivações teóricas e metodológicas que guiaram os textos apresentados no livro. O impulso inicial veio das pesquisas dos anos 1980 da própria autora e da inquietação dela e de vários outros pesquisadores, principalmente a partir dos anos 1990, em relação ao tratamento dado pelos historiadores ao catarismo, nas palavras da autora, “tomado como um fato indiscutível na historiografia francesa”.2 Com os seminários de Nice colocou-se a necessidade de pensar as relações entre heresia e estratégias eclesiásticas que tiveram um papel fundamental em sua construção doutrinal e historiográfica.

Surge, assim, a necessidade de considerar as fontes de uma maneira mais crítica, pensando-as dentro da lógica de sua produção, questão ressaltada por Moore no posfácio como sendo “a regra mais elementar porém facilmente negligenciada por nosso métier“.3 Assim, a preocupação com as fontes pode ser vista claramente no tratamento dado, em todos os capítulos do livro, aos seus respectivos documentos. Todos os autores baseiam suas pesquisas fortemente sobre a análise crítica das fontes primárias em relação aos seus contextos de produção (presente em todos os textos, mas com maior ênfase no capítulo de Monique Zerner no tratamento da autoria e composição dos manuscritos), aos mecanismos retóricos e discursivos (particularmente o texto de Jean-Pierre Weiss a propósito da obra de Santo Agostinho e de Dominique Iogna-Prat a respeito do discurso de Pedro, o Venerável), aos termos utilizados (especialmente na discussão sobre o termo “albigense” feita por Jean-Louis Biget) e às relações do texto escrito com as práticas sociais (Michel Lauwers no capítulo sobre os sufrágios dos vivos). Essa orientação dialoga com a historiografia anglo-americana sobre as práticas da escrita com o tema da literacy.4

Outro elemento de coerência da obra está na escolha das fontes utilizadas pelos pesquisadores. Os estudos trabalham com os textos polêmicos dos séculos XI e XII, à exceção dos dois capítulos iniciais dedicados aos textos polêmicos da Antiguidade Tardia. As fontes desses capítulos iniciais, especificamente o Contra Faustum de Agostinho e o texto de Irineu de Lyon contra os gnósticos, têm como função explicar o método polêmico e lançar luz sobre as técnicas retóricas utilizadas. Eles servem como uma ferramenta para que se possa entender, mais à frente, o tipo de texto que se desenvolveu nos séculos XI e XII e cujas formas de argumentação são bastante semelhantes.

Por fim, os textos são guiados pelo título provocador da obra em forma de pergunta: Inventar a heresia? O capítulo que se atém de forma mais direta a essa pergunta é o de Jean-Daniel Dubois, mas a resposta – ou a pergunta – é o fio condutor de todos os autores. Numa organização que vai progressiva e quase que cronologicamente montando o quadro das heresias nos séculos que antecedem a Inquisição, cada autor procura demonstrar que o discurso sobre a heresia se constitui muito mais como uma construção discursiva – daí a ideia de invenção – do que uma realidade vivida.

Guy Lobrichon, por exemplo, demonstra a autenticidade do sínodo de Arras de 1025. Entretanto, ele comprova que a maneira como o manuscrito foi registrado e organizado em um dossiê, mais de um século depois, junto com outros documentos anti-heréticos, deturparam seu sentido original em nome de interesses e realidades da época da compilação. Zerner faz o mesmo com a edição de um tratado contra o herege Henrique, feita por Raoul Manselli nos anos 1950. A autora mostra que a edição, na verdade, une três documentos diferentes de épocas também diferentes e cria a falsa impressão de um dossiê anti-herético que jamais existiu para o caso de Henrique.

De forma mais direta, Michel Lauwers inicia seu texto já com a afirmação “A heresia é certamente o produto de um discurso forjado pela instituição eclesial”. 5 Além da ênfase na construção do discurso, Lauwers coloca outro tema que é uma constante do livro: a relação entre a institucionalização da Igreja e o combate à heresia. Lobrichon associa esse movimento anti-herético ao crescimento e fortalecimento dos cistercienses, hipótese também fortemente sustentada por Michel Rubellin e Jean-Louis Biget. Iogna-Prat, Zerner, Rubellin e Cursente enfatizam o processo da reforma gregoriana, particularmente o fortalecimento do poder papal, como um importante fator na “invenção” da heresia.

O elemento político também aparece de forma bastante clara, culminando com o caso relatado no último excurso, de Benoît Cursente, em que aquilo que seria possivelmente considerado como heresia em outras regiões da França ou mesmo da Itália na Gasconha foi dispensado como um incidente sujeito apenas a leves penas e multas e facilmente resolvido. Não interessava ao contexto político envolvendo o papa Inocêncio III e o rei João da Inglaterra que aquilo tomasse as proporções de uma heresia. O caso deveria “ser tratado com cuidado, como um abscesso local a cortar e não como uma metástase da peste herética a erradicar”. 6

Outro exemplo da interferência do fator político é o caso de Valdo, como discute Rubellin. Até o ano de 1183, Valdo teria sido um aliado do arcebispo de Lyon, inclusive com a simpatia do papa Alexandre III, o que permitiu que ele seguisse seus ideias religiosos livremente. Com a morte desses dois aliados, a eleição de um novo arcebispo cisterciense e o contexto senhorial da região, Valdo e seus seguidores foram expulsos de Lyon. No momento em que os interesses locais se transformaram, Valdo tornou-se uma ameaça em potencial e foi, então, tachado de herege.

Jean-Louis Biget também demonstra o quanto a “fraqueza relativa” do condado de Toulouse, envolvido em inúmeras guerras e disputas internas, favoreceu o desencadeamento da cruzada albigense de 1209. A existência e quantidade de hereges na região de Albi foram amplamente exageradas com o intuito de desviar as forças que ameaçavam a região. Além do contexto político, Biget destaca, novamente, que o espírito cisterciense teve papel fundamental na elaboração da noção dos albigenses como hereges.

Essa referência repetida ao papel de Cister na criação do discurso anti-herético nos séculos XI e XII também aponta para o elemento religioso e espiritual presente nesse movimento. Embora enfatizem o elemento político, os autores em nenhum momento eliminam o componente religioso da equação. Há questões de doutrina e crença envolvidas, mas elas são colocadas, na maioria das vezes, a serviço dos interesses de unificação e institucionalização da Igreja.

Os autores tampouco negam a existência de heresias. A afirmação da “invenção” da heresia se refere especificamente à maneira como a Igreja construiu a imagem delas, transformando-as em uma heresia, exagerando seu alcance e seu perigo, definindo o que era um comportamento herege, por fim criando uma imagem tão bem elaborada que orientou boa parte das pesquisas sobre heresias até os dias atuais. Essa postura dos autores também revela uma crítica à leitura literal, quase ingênua, da documentação por boa parte dos estudiosos.

Ela também tem o intuito de deixar claro que o contexto dos séculos XI e XII é bastante diferente daquele do século seguinte, com a instituição dos tribunais inquisitoriais. Iogna-Prat, em seu capítulo sobre o Contra Petrobrusianos, lembra que, a partir do século XIII, a heresia se torna algo impronunciável. Não é mais o momento de polemizar, argumentar. O tom dos textos muda radicalmente. Com a Inquisição e o estabelecimento da heresia como crime de lesa-majestade passa-se do plano judiciário ao mais discursivo.

E foi nesse contexto da Inquisição que a maioria dos dossiês e tratados anti-heréticos foi compilado. Com isso, criou-se a falsa impressão de que as heresias, particularmente aquela denominada genericamente de “cátara”, explodiam já nos séculos XI e XII e exigiam empreitadas maciças para combatê-las. Sem uma análise criteriosa da documentação através dos elementos da crítica documental, corre-se o risco de ver nesses documentos uma expressão da realidade e não uma construção discursiva que cria uma realidade.

É ao trazer essa abordagem crítica e nova de fontes já conhecidas (é importante ressaltar que as fontes utilizadas são já estudadas, muitas delas editadas) que a obra organizada por Monique Zerner se mostra um elemento fundamental para o avanço dos estudos sobre as heresias na Idade Média. Além disso, os textos mesclam um caráter bastante didático – explicando os contextos e fornecendo dados biográficos e históricos para o leitor não tão familiarizado – com um tom altamente erudito – apresentando citações originais em latim, trazendo em anexos trechos dos documentos trabalhados e fazendo uma discussão teórica e metodológica muito aprofundada.

O Posfácio não é tanto uma conclusão quanto um apanhado geral da obra, ressaltando e resumindo alguns dos pontos mais importantes discutidos. Robert Ian Moore, ele próprio um grande contribuinte para o estudo das heresias,7 destaca que esse livro é apenas o começo, mas um começo de extrema importância para que se escreva de novo a história das heresias nos dois séculos que antecedem a cruzada albigense. Monique Zerner aponta para estudos e edições em andamento que poderão trazer novas interpretações. Espera-se que a tradução dessa obra para o português ajude os estudantes medievalistas brasileiros a se inserirem nesse debate historiográfico tão atual e significativo e quem sabe trazer, eles também, contribuições futuras. Reutilizando Duby a partir de Monique Zerner – que foi sua aluna – “A história continua”.8

1 Entre seus trabalhos estão: La croisade albigeoise. Paris: Gallimard, 1979; Le cadastre, le pouvoir et la terre:le comtat venaissin pontifical au début du XVe siècle. Rome: Ecole française de Rome, 1993; (org.). L’histoire du catharisme en discussion:le concile de Saint-Félix, 1167. Nice: Centre d’études médiévales, 2001.
2 ZERNER, Monique. Introdução. In: Inventar a heresia? Discursos polêmicos e poderes antes da Inquisição. Campinas/São Paulo: Unicamp, 2009, p.7.         [ Links ] 3 MOORE, Robert Ian. Posfácio. In: Inventar a heresia?, p.279.
4 Zerner aponta, particularmente, para os estudos de Brian Stock.
5 LAUWERS, Michel. Os Sufrágios dos vivos beneficiam os mortos? História de um tema polêmico (séculos XI-XII). In: Inventar a heresia?, p.163.         [ Links ] 6 CURSENTE, Benoît. Um Caso de não Heresia na Gasconha no ano 1208. In: Inventar a Heresia?, p.273.
7 Sua mais importante obra é MOORE, Robert Ian. The formation of a persecuting society: power and deviance in western Europe, 950-1250. Oxford: Blackwell Publishers, 1987,         [ Links ] na qual já apresentava a ideia da heresia como uma “criação” vinculada ao desenvolvimento e fortalecimento das autoridades eclesiásticas.
8 Citado por ZERNER, Monique. Introdução. In. DUBY, Georges. L’histoire continue. Paris: Poches Odile Jacob/Points/Seuil, 1991, p.13.         [ Links ]

Carolina Gual da Silva – Mestre em História Social pela USP. Doutoranda em História – Unicamp/Ecole de Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris – Bolsista CNPq/CAPES Departamento de História/IFCH Cidade Universitária Zeferino Vaz Distrito de Barão Geraldo -13083-896 – Campinas – SP [email protected]/[email protected].

Inventar a heresia? discursos polêmicos e poderes antes da Inquisição – NOGUEIRA; ZERNER (RBH)

NOGUEIRA, Carlos Roberto Figueiredo; ZERNER, Monique (Org.). Inventar a heresia? discursos polêmicos e poderes antes da Inquisição. Campinas (SP): Ed. Unicamp, 2009. 304p. Resenha de: NOGUEIRA, Carlos Roberto Figueiredo. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.31, n.62, dez. 2011.

Após mais de 30 anos de estudos sobre o aparecimento de seitas de ‘adoradores do Diabo’, que constituíram o tormento e a preocupação da Igreja ao longo do período medieval e que foram metodicamente mapeadas e perseguidas com rigor cada vez maior até culminarem na caça às bruxas da Europa moderna, uma questão foi se tornando cada vez mais clara: na construção dessas seitas existia uma combinação trágica, porém eficaz do ponto de vista repressivo, o amálgama da alteridade com uma enorme carga de erudição.

Daí, então, tornava-se cada vez mais óbvio para nós que, igualmente, não haveria um estranhamento, uma ‘estrangeirice’ nas seitas heréticas. Não eram crenças que migraram e se instalaram no seio da boa coletividade cristã, tampouco ‘sobrevivências de um paganismo’ há muito perdido e do qual restavam símbolos fragmentados e desenraizados ou vestígios de uma gestualidade claramente cristianizada. Tratava-se, sim, do produto dos intentos de uma ortodoxia de impor a outros a existência de outras interpretações do que era viver (espiritual e materialmente) a religião cristã.

O cristianismo nasce como uma religião que se propõe universal em um mundo de particularismos, em especial, particularismos religiosos. Para levar a Boa Nova a todos os homens, o cristianismo precisava se impor a partir do Outro.

Assim é construída a ecclesia, antes de tudo se apartando do judaísmo, o primeiro e mais incômodo ‘outro’, pela proximidade e pela responsabilidade de haver gestado a nova religiosidade.

Eliminados os ‘assassinos de Cristo’, os discordantes e opositores – em suma, os heterodoxos – são calados ou perseguidos, objetos de uma retomada erudita que mergulha na Antiguidade Clássica para buscar identidades, estabelecer ligações para garantir a credibilidade e legitimar a repressão.

Dessa maneira a ‘reação folclórica’, a sobrevivência pagã, criadora da heresia, muda de significado. O paganismo ganha o direito de existir por intermédio da ação de uma ortodoxia em busca de uma tradição que lhe permita estabelecer paralelismos e impor rótulos aos seus opositores.

Assim, é com grata surpresa que vemos aparecer no mercado editorial brasileiro o livro Inventar a heresia?, organizado por Monique Zerner.

Obra plural, mas com uma coesão interna bastante singular: a análise de tratados que constroem a heresia e ‘identificam’ o herege. Produto de investigações produzidas e discutidas em seminários, retoma, a nosso ver com grande acerto, os textos escritos antes da constituição dos Tribunais da Inquisição. Postura acertada, pois se o objetivo era confrontar os documentos com a ‘realidade’ das heresias, o período de ação inquisitorial traz enormes problemas, uma vez que a perseguição acaba consagrando a heresia ipso facto, tornando-a uma realidade irreversível, cuja punição traz aos olhos da comunidade a sua materialização objetiva e inquestionável. Realidade viciada que levou muitos historiadores a acreditarem na realidade das heresias, ou mesmo imaginá-la como outra religião, como no caso do Catarismo.

Inventar a heresia? percorre uma larga trajetória temporal, começando por santo Agostinho e o seu procedimento na polêmica contra o maniqueísmo que o havia desencantado, e se estende até um caso de não-heresia na Gasconha dos inícios do século XII.

E por que um intervalo de tempo tão alargado? A resposta está na perspectiva dos autores. Sabemos que no princípio do cristianismo a tônica é a persuasão. No entanto, no Contra Faustum Agostinho já prefigura a atitude que virá depois: se não persuadidos, os adversários serão por fim condenados.

De maniqueístas e exegetas gregos da Bíblia, a obra saltará para o século XI, o período de emergência das heresias, momento que Jacques Le Goff leu equivocadamente como um ressurgimento folclórico, o que justificava o aparecimento dos movimentos heréticos.

A obra que examinamos inverte a questão, buscando a ‘confecção’ dos hereges no interior dos embates de uma Igreja que tenta impor a sua hegemonia reformista. A heresia é esgrimida por Gerardo, no sínodo de Arras, como resposta à sua tentativa de manter sob controle um domínio que escapa por entre as suas mãos, pois remete a um sistema carolíngio antiquado, que não dá conta da nova ordem social.

Contudo, ainda com Pedro, o Venerável, e seu Contra Petrobrusianos, persiste a argumentação. No entanto é singular que esse abade de Cluny invista contra os hereges, contra os judeus e contra os sarracenos. O século XI, e fundamentalmente Cluny, preparam as armas para defender a Igreja. A argumentação ‘defensiva’ de nosso abade não resiste a uma política de hegemonia da religiosidade. Ao final do século XI, está aberto o caminho para a ausência de diálogo com a heresia, substituído pelo procedimento judiciário de fazer aqueles que a Igreja condena, confessarem a verdade.

E a ofensiva se intensifica. O front cada vez mais ampliado, o inimigo cada vez mais irredutível. A heresia com a incorporação do Direito Romano ao Direito canônico, tornada crime de lesa-majestade no século XIII, acaba necessariamente no apelo às armas contras os hereges, cujo exemplo emblemático foi a Cruzada Albigense.

“Mas quem são os hereges?”, pergunta-se Michel Lauwers, buscando os hereges nas tensões sociais (as contestações aos privilégios e às determinações eclesiásticas) e analisa como exemplo o tema “Os sufrágios dos vivos beneficiam os mortos?”, demonstrando como os polemistas passaram da recusa das práticas impostas pela instituição à doutrina, fazendo dela um instrumento de julgamento da recusa: a heresia.

“Albigenses: observações sobre uma denominação”, cujo título despretensioso oculta o seu verdadeiro teor, é de longe o ponto alto da coletânea. Nele Jean-Louis Biget identifica a origem e analisa a história do nome ‘albigenses’, protagonistas de uma história que começa em 1209, mas que bruscamente foram ‘esquecidos’ após 1960, sendo substituídos pelos ‘cátaros’. Para isso retoma o papel da ordem de Cister como construtora da heresia. Empenhada em consolidar a reforma da Igreja, traduz os conflitos internos e regionais que comprometem a tão almejada unidade, como as expressões de divergências doutrinárias. Ou seja: a invenção de um nome para batizar os desvios da verdadeira unidade até designar todos os dissidentes religiosos do Midi.

Como lembra Dominique Iogna-Prat, a escassez de análises de discursos anti-heréticos é marcante até nossos dias. Os trabalhos sobre heresia analisam os documentos como fontes que expressam a realidade herética e não como um discurso construído com base na ótica constitucional.

Assim, este livro nos ensina um princípio fundamental. Frente aos documentos que tratam da heresia deve-se, em primeiro lugar, duvidar da realidade dos fatos descritos pelos textos produzidos pelo meio eclesiástico ou por autores a ele vinculados. R. I. Moore em seu posfácio vai além: “nem mesmo de um movimento não enquadrado e relativamente inocente de entusiasmo pela vita apostolica entre rustici“. A acusação de heresia tornou-se a principal ferramenta de construção da unidade, revestindo de uma ‘aura sagrada’ a tarefa bem menos momentosa aos olhos da comunidade cristã de eliminar desvios e manter o rebanho cristão dentro da ortodoxia proclamada como religiosa, mas cuja real ameaça não está no plano do sagrado, mas nas divergências políticas e sociais que ameaçam a instituição eclesiástica.

Apenas um senão que não compromete fundamentalmente a qualidade da obra. A tradução dos capítulos, ainda que feita de maneira correta, ressente-se do fato de ter sido executada por diversos colaboradores, o que leva o texto a variar seu estilo, ora mais fluido ora mais ‘trancado’. Mas repetimos: isso afeta a estética, não o conteúdo dos capítulos.

Não poderíamos terminar sem tratar de um pequeno, mas não menos importante capítulo (altamente esclarecedor do caráter rigoroso dessa coletânea) que estabelece ao final da obra um precioso contraponto: “Um caso de não-heresia na Gasconha do ano de 1208”. Frente a uma ‘revolução’ dos leigos dependentes de Saint Sever, na Gasconha, o legado papal reinverte os papéis, ignora práticas e faz dos episódios uma leitura não-herética – extremamente necessária em razão da crise que se estabeleceu entre Inocêncio III e João I da Inglaterra, o qual detinha os domínios das terras insurgentes. Estamos diante de uma boa demonstração da exceção que confirma e elucida a regra!

Enfim, o livro reúne artigos instigantes, que abrem as portas à dúvida e ao questionamento da construção da heresia. O que nos leva a terminar esta resenha assumindo como nossas as palavras do autor Benoît Cursente, que resume a perspectiva de todos os demais: “E nessa circunstância, para que a heresia não existisse, era necessário e suficiente não nomeá-la”.

Carlos Roberto Figueiredo Nogueira – Professor Titular, Universidade de São Paulo. Av. Lineu Prestes, 338 – Cidade Universitária. 05508-000 São Paulo – SP – Brasil, E-mail: [email protected].

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Inventar a Heresia? Discursos polêmicos e poderes antes da Inquisição | Monique Zerner

Desde a publicação de Montaillou de Emmanuel Le Roy Ladurie2, em 1975, consolidou-se um campo de investigação para a heresia. Com sua obra, os cátaros ganharam o olhar dos estudiosos da chamada Idade Média Central e foram alvos de investigação de homens preocupados com o descortinar do processo inquisitorial. Tais comunidades heréticas do século XIII eram opositoras à Igreja e sua recusa podia ser verificada na doutrina que sustentavam, de cunho dualista, anticlerical e antiprocriacional, que os ligava a gnósticos e maniqueus dos séculos iniciais da era cristã. Essa imagem do herege dominaria a historiografia e caminharia ao lado de uma linha de interpretação historiográfica também iniciada nas décadas de 60 e 70 do século XX. Ali, a heresia era tida como foco de resistência, não só à estrutura clerical, mas à cultura que se pretendia homogênea e dominante. Ligados ao campo da Nova História Cultural, trabalhos como os de Jacques Le Goff3 situaram a heresia em uma dinâmica sócio-cultural que deslocava o conflito social entre dominantes e dominados para a esfera cultural. A heresia, juntamente com as superstições4, passava a ser parte da manifestação da cultura popular, da expressão religiosa dos camponeses e estava atrelada, de maneira inequívoca, ao conflito cultura erudita/cultura popular, ou “folclórica”. Leia Mais