Jango: as múltiplas faces – FERREIRA; GOMES (AN)

FERREIRA, Jorge; GOMES, Ângela de Castro. Jango: as múltiplas faces. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2007. 272p. Resenha de: RODEGHERO, Carla Simone. Anos 90, Porto Alegre, v.14, n.26, p.235-242, 2007.

Jango: as múltiplas faces, de Ângela de Castro Gomes e de Jorge Ferreira, é um livro que foi pensado a partir do reconhecimento de que a memória e a história sobre João Goulart se concentram no período da presidência da República e a partir da percepção de que, ainda hoje, esse personagem histórico continua suscitando paixão e polêmica. Para mostrar que a atuação política de Jango foi muito mais longa do que seu mandato presidencial, os autores optaram por produzir uma narrativa biográfica acompanhando a trajetória de Jango e contemplando tanto sua dimensão política quanto a pessoal. (p. 9). Optaram também por mostrar que essa trajetória foi multifacetada. Segundo Gomes e Ferreira, as múltiplas faces de Jango vão além da pluralidade constitutiva do homem moderno., já que Goulart pode ser caracterizado, por excelência, como um personagem assinalado pelo contraditório, sendo, por isso, um desafio para interpretações que se queiram unívocas e lineares. (p. 9).

Essa percepção ganha corpo, a cada capítulo do livro, com a apresentação de um vasto conjunto de depoimentos e de alguns pessoal de Jango aí retratado. Assim, após uma exposição elabora- da pelos autores e acompanhada por imagens, são transcritos os depoimentos e os demais documentos, que possibilitam que o leitor se confronte com a diversidade dos pontos de vista a respeito de João Goulart. Com esta estratégia, os autores buscaram escrever uma biografia aberta à interpretação dos leitores., (p. 10) sem, no entanto, descartar o auxílio e a mediação dos historiadores.

A maior parte das entrevistas foi recolhida no acervo de depoimentos do Setor de História Oral do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da Fundação Getúlio Vargas. São entrevistas realizadas no contexto de diferentes projetos de pesquisa, desenvolvidos desde a década de 1970. Outras, mais recentes e relacionadas à trajetória pessoal de Jango, foram recolhidas pelos autores. Entre os depoentes estão familiares e pessoas próximas da família, como a esposa, Maria Thereza; a filha, Denise; o procurador Bijuja. Outro grupo é formado por membros do PTB e do governo deposto, como Abelardo Jurema, Ministro da Justiça entre 1963-1964; Almino Afonso, Ministro do Trabalho e da Previdência Social, em 1963; Evandro Lins e Silva, Chefe do Gabinete Civil da Presidência da República e Ministro das Relações Exteriores, em 1963; Hugo de Faria, Ministro do Trabalho em 1954, Chefe do Gabinete Civil da Presidência da República em 1963 e Presidente do Banco do Brasil em 1964; Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul entre 1958 e 1962 e deputado federal pela Guanabara, eleito em 1962; Raul Ryff, Secretário de Imprensa da Presidência da República entre 1961 e 1964; e Wilson Fadul, Ministro da Saúde, entre 1963 e 1964. Também são apresentados depoimentos de apoiadores e de opositores políticos, que revelam os diferentes níveis de apoio e de oposição que se fizeram sentir ao longo da trajetória política de Jango. No primeiro caso, têm-se, entre outros, Francisco Julião, Deputado federal e líder das Ligas Camponesas, e Hércules Correia, ser citados Afonso Arinos de Mello Franco, da UDN, e os milita- res ligados ao golpe, Antônio Carlos Muricy e Ernesto Geisel.

Os depoimentos são apresentados ao final de cada capítulo, aprofundando, exemplificando, complexificando e enriquecendo a narrativa dos autores. No final do livro, o leitor encontra um quadro com a relação dos depoentes, com um breve currículo dos mesmos, a data da entrevista e o nome dos entrevistadores. Porém, como boa parte dos entrevistados não é automaticamente reconhecida pelo leitor comum e mesmo pelo especializado, fica faltando, no momento em que cada depoimento é apresentado, a remissão a uma nota de rodapé que permita situar, com rapidez, quem está falando, qual sua relação com os fatos em discussão, para quem está falando e quando concedeu a entrevista. Este de- talhe técnico beneficiaria o leitor, já que a consulta ao quadro final quebra o ritmo da leitura e prejudica a avaliação sobre as escolhas feitas pelos autores quando da seleção dos depoimentos. Por outro lado, várias notas explicativas acompanham os capítulos, mas elas se referem a personagens, fatos, instituições, leis que são, muitas vezes, de maior conhecimento público do que a trajetória ou filiação política dos depoentes.

Feita esta breve apresentação da obra, antes de entrar no relato das múltiplas faces de Jango., é preciso lembrar que a trajetória de pesquisa de Gomes e Ferreira sobre os temas do getulismo e do trabalhismo torna-os altamente qualificados para escrever sobre João Goulart. Ao longo das últimas décadas, seus trabalhos têm contribuído para repensar fenômenos da história brasileira pós- 1930, especialmente no que diz respeito ao período que é inaugurado com a redemocratização de 1945 e com a Constituição de 1946.

Boa parte das manifestações políticas e sindicais desse período havia sido alvo de severas avaliações e críticas, construídas a partir do conceito de populismo, ao longo dos anos 1960 e 1970.

Gomes e Ferreira têm realizado trabalhos pioneiros que permitem repensar tais interpretações. Além disso, o próprio personagem João Goulart já foi alvo de atenção direta de ambos os autores, em diversas oportunidades.

Ao longo do primeiro capítulo, o leitor acompanha João Goulart desde seu nascimento, em 1919, até sua entrada no mundo da política. Fica sabendo a respeito das posses da família em São Borja, do curso de Direito realizado em Porto Alegre e da posterior volta à terra natal para assumir os negócios, após a mor- te do pai. Acompanha, em São Borja, a rotina do jovem Jango transformada com a chegada de Getúlio Vargas, no final de 1945, seu posterior envolvimento com a criação do PTB e sua eleição para a Assembléia Legislativa gaúcha em 1947. É informado sobre o aprofundamento da sua atuação política nas articulações para a eleição de Vargas em 1950, ano em que Goulart também é eleito deputado federal. Neste capítulo, ainda é descrito o período de 13 meses, durante o qual Jango se afastou do mandato para atuar como Secretário do Interior e da Justiça no Governo de Ernesto Dornelles, no Rio Grande do Sul. Sabe-se, finalmente, que ao reassumir o cargo, no Rio de Janeiro, Vargas lhe concedeu um gabinete de trabalho no Palácio do Catete. Lá, Jango seria muito mais visto do que no Congresso Nacional.

Essa trajetória de envolvimento na política se consolidou com a passagem de Jango pelo Ministério do Trabalho, em 1953, o que é tratado no segundo capítulo da obra. Neste momento, teria se revelado a capacidade de negociação de Goulart, mediando questões entre empresários e trabalhadores, como aconteceu na greve dos marítimos. Medidas como a abolição do atestado ideológico para dirigentes sindicais permitiram a atuação em conjunto de lideranças trabalhistas e comunistas. A informalidade com que Jango se dirigia a essas lideranças aceitando, inclusive, convites para churrascos em final de semana para discutir demandas sindicais de trabalhadores, segundo relatam os autores, chocou setores da sociedade brasileira. A estada no Ministério culminou com militares com ampla repercussão levou à saída de Goulart da pasta do Trabalho.

Antes da entrada no Ministério, porém, Jango havia assumi- do a Presidência do PTB. O terceiro capítulo trata do sindicalismo no período entre 1945 e o começo da década de 1960, mostrando as aproximações entre os trabalhistas e o PCB. Em parte desse período, Jango viria a ocupar a vice-presidência da República (nos governos Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros). Naquela época, como se lê no quarto capítulo da obra, ser vice-presidente exigia fazer uma campanha à parte e, depois de eleito, assumir, entre outros encargos, a presidência do Senado. Segundo os autores, ser vice-presidente significava possuir espaços políticos próprios extremamente visíveis e valiosos. (p. 111). A junção das possibilidades oferecidas pelo cargo com a prévia experiência de diálogo de Jango. que mantinha forte influência sobre o Ministério do Trabalho com o movimento sindical, teria contribuído para a estabilidade política do governo JK. O relacionamento com Jânio, todavia, teria sido mais difícil, já que o presidente fazia questão de demonstrar seu distanciamento em relação ao vice, eleito pela chapa oposta. O episódio da renúncia de Jango e a campanha da Legalidade também são narrados neste capítulo.

No capítulo seguinte, os autores se debruçam sobre o período em que Jango esteve na Presidência da República. Nesta parte, são enfatizados, entre outros aspectos, o seu programa nacionalista mínimo; as dificuldades com os credores internacionais; a falta de apoio no Congresso, onde PSD e PTB divergiam sobre questões essenciais do programa de governo; o afastamento das forças reformistas da estratégia da luta parlamentar; as substituições de gabinetes e o plebiscito que aprovou a volta do presidencialismo.

A partir dessa fase, é apresentado o Plano Trienal, com suas metas e a conjuntura que levou ao seu abandono. O capítulo é concluído com o tratamento da crescente radicalização política que atingiu optativas de negociação, aproximando-se das organizações que, ao longo do tempo, mais abertamente o sustentaram: o movimento sindical e as esquerdas radicais. (p. 144).

O golpe de 1964 é tratado no penúltimo capítulo do livro, que narra os acontecimentos que se seguiram ao comício de 13 de março: a revolta dos marinheiros e fuzileiros navais, o compareci- mento do presidente à solenidade de posse da nova diretoria da Associação dos Sargentos, no Automóvel Clube, o levante em Minas Gerais e a movimentação de Goulart até sua saída para o Uruguai. O não-apelo à resistência estaria ligado à percepção do Presidente de que havia um alto risco de guerra civil. (p. 196).

Jango no exílio. é o capítulo que encerra a biografia. Aí é tratado o rompimento definitivo entre Goulart e Brizola, depois de uma curta aproximação. Fica-se sabendo que após um ano de exílio, Jango passou a se dedicar a investimentos agropecuários no Uruguai. Por conta disso, além de engordar bois, tornou-se um dos maiores fornecedores de arroz daquele país. São brevemente descritas as articulações em torno da Frente Ampla, logo tornada ilegal. Vigiado pelo Serviço Nacional de Informações (SNI), o ex-presidente afastou-se de qualquer atividade política, voltando a se dedicar exclusivamente a seus negócios pessoais. (p. 231). Sofreu um enfarte em 1969, viu a sua situação e a da família se com- plicarem com o golpe de 1973, no Uruguai. Em 1974, passou a residir em Buenos Aires. Na Argentina, continuou com seus negócios agropecuários e comprou propriedades. Sua saúde, no entanto, estava debilitada: Jango alimentava-se mal, fumava e bebia muito, sofrendo de bruscas quedas de pressão arterial, desmaios e dores no peito. (p. 232). Em 1976, após receber ameaças de que seus dois filhos seriam seqüestrados, Goulart os enviou para Londres. Fez gestões para voltar ao Brasil. Em 6 de dezembro daquele ano, morreu no exílio, vítima de um enfarto fulminante.

para os autores do livro, o conjunto dos depoimentos e documentos apresentados instiga o leitor a tirar suas próprias conclusões, dialogando com a narrativa dos capítulos. Os autores resgataram também a própria voz de João Goulart, apresentando alguns discursos por ele proferidos, um dos quais no formato de CD. Tal material permite empreender uma série de comparações e de questionamentos. Avaliações absolutamente contrastantes sobre Jango convivem, em tais documentos, com diferentes valorações atribuídas a certas características pessoais ou políticas de João Goulart. A leitura dos depoimentos suscita questionamentos sobre como era visto e como foi descrito o preparo (ou a falta de preparo) de Jango para o cargo de Presidente da República; sobre as avaliações a respeito da consistência do seu programa de reformas de base e sobre a sinceridade no propósito de realizá-las; sobre o paradoxo de o rico proprietário de terras propor uma reforma agrária; sobre a sua capacidade de dialogar e de construir consensos, em situações nas quais os interlocutores eram sindicalistas e quando o diálogo precisou ser feito com os setores mais conserva- dores da sociedade brasileira. O perfil que os autores apresentam de Jango, como um governante que queria dialogar e, ao mesmo tempo, fazer as reformas acontecerem, faz pensar sobre o papel da conciliação e da radicalização na política brasileira, dos anos 1960 aos dias atuais.

Finalmente, é preciso chamar a atenção, no livro de Gomes e Ferreira, para a importância do recurso à memória na escrita da história recente do Brasil e para as contribuições da História Oral nesta tarefa. Isso é particularmente fecundo no caso de Jango, um personagem polêmico que, apesar de ter uma longa trajetória política, ainda é associado quase exclusivamente à derrota representada pelo golpe de 1964. Isso se deve, creio, ao fato do golpe e do regime militar serem, ainda hoje, marcos fundamentais da nossa da ditadura ainda permeiam boa parte das discussões políticas no Brasil. Ao mesmo tempo, cada vez mais, instigam historiadores a se voltarem a este período e àquele que o antecedeu. Desta tendência fazem parte livros como Jango: as múltiplas faces.

Notas

1 Sobre outras publicações dos autores sobre o assunto ver: Ferreira, Jorge. O governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964. In: Jorge Ferreira; Lucília de Almeida Neves Delgado. (org.). O Brasil Republicano O tempo da experiência democrática – Da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, v. 1, p. 343-425; Ferreira, Jorge. A estratégia do confronto: a Frente de Mobilização Popular. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 24, n. 47, p. 181-212, 2004. Ferreira, Jorge. O imaginário trabalhista. Getulismo, PTB e cultura política popular (1945-1964). Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2005 (especialmente os capítulos: O ministro que conversava: João Goulart no Ministério do trabalho; A legalidade traída: os dias sombrios de agosto e setembro de 1961 e O último ato: sexta-feira 13 na Central do Brasil). Ver ainda: Ferreira, Jorge (org.). O populismo e sua história. Debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. No que se refere a Ângela de Castro Gomes, ver: GOMES, A. M. C. . O Populismo e as Ciências Sociais no Brasil: notas sobre a trajetória de um conceito. Revista Tempo, Niterói – RJ, v. 1, n. 2, p. 59-72, 1996; GOMES, A. M. C.  Memórias em disputa: Jango, ministro do Trabalho ou dos Trabalhadores? In: FERREIRA, Marieta de Moraes (org.) João Goulart entre a memória e a história. Rio de Janeiro: FGV, 2006; e GOMES, A. M. C. O Populismo e as Ciências Sociais no Brasil: notas sobre a trajetória de um conceito. Revista Tempo, Niterói, v. 1, n. 2, p. 59-72, 1996.

Carla Simone Rodeghero – Professora do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS.

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