Trabalho escravo contemporâneo: tempo presente e usos do passado | Angela de Castro Gomes e Regina Beatriz Guimaraes Neto

El trabajo, al igual que muchos, si no es que la mayoría, de los temas que tienen que ver con la actividad humana, no es un “hecho de la naturaleza” sino que se trata de un fenómeno que se ha visto modificado, tanto en su forma como en su contenido, a lo largo de las civilizaciones. En La condición humana (España, Paidós, 1993) dice la filósofa Hannah Arendt: “La Edad Moderna trajo consigo la glorificación teórica del trabajo, cuya consecuencia ha sido la transformación de toda la sociedad en una sociedad de trabajo” y, desde este mirador es que el libro Trabalho eslavo contemporaneo: tempo presente e usos do passados de Angela Castro Gomes y Regina Guimaraes Neto, nos ayuda a mirar mejor cómo una de las características del trabajo en la era moderna sigue siendo la superexplotación, concepto acuñado por Ruy Mauro Marini que refiere a una forma particular de operaración del sistema productivo.

El texto es un recorrido útil, bien documentado, de la historia de las actividades agrarias en la región norte de Brasil, entre cuyas características resalta precisamente el esclavismo, fenómeno que por cierto, al amparo de las formas de producción globalizadas, ha vuelto a ocupar “puestos” importantes bajo las firmas – y formas – de capital maquilador. Leia Mais

Jango: as múltiplas faces – FERREIRA; GOMES (AN)

FERREIRA, Jorge; GOMES, Angela de Castro. Jango: as múltiplas faces. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007, 272p. Resenha de: TEIXEIRA, Wagner da Silva. Anos 90, Porto Alegre, v.15, n.28, p.279-287, 2008.

de História do Brasil na Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutora em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), Angela de Castro Gomes é pesquisadora do CPDOC/FGV e autora de diversos livros, entre eles Burguesia e trabalho: política e legislação social no Brasil (1979), A invenção do trabalhismo (1988) e História e historiadores: a política cultural do Estado Novo (1996). Doutor em História pela USP, Jorge Ferreira é pesquisador do CNPq e já publicou uma série de livros, tais como Trabalhadores do Brasil: o imaginário popular (1997), Prisioneiros do Mito: cultura e imaginário político dos comunistas no Brasil (2002) e O Imaginário trabalhista: getulismo, PTB e cultura política popular (2005).1 Escrever uma biografia certamente não é tarefa fácil, descrever uma vida inteira já é complexo, ainda mais analisar todo o período de uma existência, levando em conta seu contexto, suas especificidades, seus meandros, as visões que outras pessoas têm do mesmo personagem.

Uma biografia pode tender a contar a história de uma vida de forma linear, os fatos parecem encadeados, numa seqüência que pode dar a idéia de ser imutável, como se a vida das pessoas não pudesse ser alterada, como se não houvesse alternativas possíveis, escolhas a serem feitas. Nesse sentido, Giovanni Levi afirma que, muitas vezes, “seguindo uma tradição biográfica estabelecida e a própria retórica de nossa disciplina, contentamo-nos com modelos que associam uma cronologia ordenada, uma personalidade coerente e estável, ações sem inércia e decisões sem incertezas” (LEVI, 1989, p.169). Sobre isso, vale lembrar a advertência de Pierre Bourdieu em A ilusão biográfica: “não podemos compreender uma trajetória sem que tenhamos previamente construído os estados sucessivos do campo no qual ela se desenrolou” (BOURDIEU, 1986, p. 190).

O livro de Angela e Jorge escapa a essa cilada, com uma linguagem objetiva e direta, que diz claramente o que pretende. Os autores realizaram um trabalho que mostra diversas visões e diferentes opiniões sobre João Goulart. Sua trajetória é contada de forma que parece muito mais o sujeito da história do que um objeto de análise.

O livro é composto por sete capítulos, organizados de forma que cada capítulo é dividido em duas partes, uma primeira escrita pelos autores, na qual se apresenta o contexto político do período abordado e a trajetória de Jango, e uma segunda formada por entrevistas e documentos. Os relatos dos entrevistados dão vida à narrativa, é a fala de quem conviveu com Jango, quem o viu de perto e teve contato com ele, pessoas que estavam ao seu lado ou contra ele, que trabalharam em seu governo ou que articularam a sua queda. Os documentos também são outra fonte de vitalidade para o livro, demonstram as preocupações, as decisões e as escolhas que foram realizadas no momento em que foram escritos. A obra compreende a trajetória de Jango, de seu nascimento em São Borja em 1919, até sua morte em uma de suas fazendas na Argentina, na fronteira com o Brasil em 1976.

No primeiro capítulo, Jango em pessoa nos é apresentado sua infância no campo entre a estância e a escola, a convivência com os peões e o gado. A adolescência marcada pela expulsão da escola e pela conquista do campeonato gaúcho juvenil de futebol pelo Internacional.

A realização do curso de Direito, a preocupação com os negócios particulares da família e, no final de 1945, o contato cada vez maior com Getúlio Vargas, exilado dentro de suas fazendas em São Borja. Seguindo conselho de Vargas, entrou no Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e se elegeu deputado estadual em 1947; em 1950 participou da Campanha de Getúlio para a Presidência e se elegeu deputado federal; em 1952, foi definitivamente para o Rio de Janeiro onde teve um escritório político dentro do Palácio do Catete: estava pronto “para novas funções no PTB e no governo” (p.19).

No segundo capítulo, Tempos de formação, são exatamente as atuações de Goulart na presidência do PTB e depois no Ministério do Trabalho que passam a ser analisadas. Em 1950, o partido aumentou sua bancada federal de 22 para 51 deputados, neste mesmo período, consolidaram-se novas lideranças no interior da legenda, nomes como o do próprio Jango, Leonel Brizola e Fernando Ferrari passaram a representar uma nova postura do partido, orientada pelo nacionalismo e pelo reformismo. Em 1952, passou a ocupar a presidência nacional do PTB e, em sua gestão, procurou reduzir as disputas internas e promover o crescimento do partido entre a classe operária. Em 1953, assumiu o Ministério do Trabalho e inovou ao retirar duas das principais amarras dos sindicatos – a necessidade de atestado ideológico e as intervenções quando alguma chapa de oposição era eleita. De acordo com o depoimento transcrito de Hugo de Faria, “foi a época de maior liberdade sindical” (p. 63).

O terceiro capítulo aborda a relação entre Jango, o movimento sindical e as esquerdas. A atuação de Jango no Ministério do Trabalho e na presidência do PTB propiciou uma aproximação com as esquerdas, principalmente o Partido Comunista do Brasil (PCB), mas também com as esquerdas de forma geral, em especial as que atuavam no movimento sindical. Naquele momento, o movimento sindical estava cada vez mais ativo, com um forte discurso nacionalista, reivindicativo e reformista. João Goulart foi se tornando um elo entre sindicalistas e governo. De acordo ainda com Hugo de Faria, Jango era um ministro que sempre dialogava com os sindicalistas, independente do seu grupo político: “tinha abertura política para discutir com um dirigente sindical sem se preocupar se aquele dirigente era comunista, socialista, trabalhista, petebista ou o que fosse” (p. 93).

O quarto capítulo, Jango vice-presidente, trata de sua ascensão à vice-presidência da República em 1955 e sua reeleição em 1960. Naquele período, o vice era eleito de forma direta e independente, isso implicava ter um projeto político e partidário próprio. Sua campanha tinha vida própria na disputa dos votos dos eleitores. O vicepresidente exercia ainda a presidência do Senado e tinha funções diplomáticas, isso “significava possuir espaços políticos próprios extremamente visíveis e valiosos politicamente” (p. 111). Como vice de Juscelino Kubitschek, exerceu uma função de mediação entre governo e sindicatos. Nas eleições de 1960, presidente e vice foram eleitos por chapas diferentes. Com a renúncia de Jânio Quadros e a tentativa de golpe dos ministros militares, teve início um forte movimento de resistência ao golpe, liderado pelo então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola. Depois do acordo parlamentarista que pôs fim à crise, “João Goulart e seu partido, o PTB, chegavam ao poder; um poder esvaziado e conquistado de forma muito tensa” (p. 117).

Jango presidente da República é o título do quinto capítulo, que mostra a conjuntura crítica na qual Jango assumiu a presidência e governou o país entre 1961 e 1964. Sua posse, nas palavras de Raul Ryff, deu-se diante de uma “situação completamente adversa, com crise política, crise militar, crise econômica, inflação em marcha, tudo isso” (p. 158). Nessa situação, suas primeiras medidas foram no sentido de garantir sua permanência no poder. Na fase parlamentarista, uma postura de “conciliação nacional” foi aos poucos sendo substituída por uma estratégia de enfraquecimento do parlamentarismo.

Após o plebiscito de janeiro de 1963 e o retorno ao presidencialismo, as esquerdas deram início a uma luta cada vez mais radical pelas reformas. De outro lado, a conspiração civil/militar para derrubá-lo ganhava cada vez mais espaço. As iniciativas de San Thiago Dantas de tirar Goulart do isolamento político depois da tentativa de decretação do Estado de Sítio em setembro de 1963 se viram frustradas. A opção de João Goulart foi de se reaproximar das esquerdas.

O tema do sexto capítulo é Jango e o golpe de 1964. Os autores destacam o papel que os vários grupos políticos e militares envolvidos tiveram naquele momento, evitando assim colocar somente sobre João Goulart a responsabilidade sobre aquele evento. De um lado, o alinhamento político de Goulart com o movimento sindical e as esquerdas radicais em defesa das reformas de base. De outro, a postura agressiva da oposição ao governo na Marcha da Família com Deus pela Liberdade em São Paulo. O impacto da Revolta dos Marinheiros nas Forças Armadas, a quebra da hierarquia e a anistia significaram “um golpe profundo em sua integridade profissional, sustentada pelos valores de disciplina e hierarquia militar” (p.193). No dia 31 de Março, o jornal Correio da Manhã publicou o editorial “Fora”; Auro de Moura Andrade manifestou o rompimento do Senado com o governo; o General Mourão Filho partiu de Juiz de Fora ruma à Guanabara. No dia 1º de abril, Jango foi do Rio para Brasília e de lá para Porto Alegre. O Congresso decretou a vacância do cargo. O presidente estava deposto e chegava ao fim aquele período democrático.

O isolamento final de Goulart no país e sua saída para o Uruguai são os temas do último capítulo Jango no Exílio. Para os autores, seu exílio teve início logo no dia 2 de abril quando foi para uma de suas fazendas em São Borja. Tentou permanecer no Brasil até o dia 4 quando o cerco militar apertou e, “sem alternativas, pediu asilo ao governo uruguaio” (p. 229). Após uma expectativa de retorno imediato, viu aos poucos os militares se consolidarem no poder.

Do ponto de vista pessoal, a estadia no Uruguai permitiu a Jango uma recuperação financeira. Houve tentativas de retorno à ação polí tica, uma reaproximação com Brizola e depois a formação da Frente Ampla com JK e Carlos Lacerda. O aumento da vigilância e das perseguições a ele e a sua família após o golpe militar, em 1973, no Uruguai, forçaram a mudança para Buenos Aires. Em 1975, diante das ameaças da Operação Condor, foi para Londres, onde realizou vários exames, pois sua saúde física e psicológica estava muito debilitada.

Foram várias as tentativas de retorno ao Brasil, todas elas sem sucesso. Em dezembro de 1976, às vésperas de uma nova tentativa de atravessar a fronteira, sofreu um infarto fulminante.

Uma das grandes contribuições do livro é jogar luzes sobre a vida de João Goulart, já que alguns trabalhos anteriores sobre Jango cometiam um equívoco indicado por Norbert Elias em sua biografia sobre Mozart. Segundo Elias, tal equívoco ocorre quando “o interesse é apenas por sua obra, e não pelo ser humano que a criou” (ELIAS, 1995, p. 10). No livro, aparece o João Goulart político: deputado, líder partidário, ministro, vice-presidente e presidente; mas também o gaúcho de São Borja: filho de estancieiro, estudante, jogador de futebol, pecuarista, pai e avô. A obra também não foge ao debate de assuntos polêmicos, como a crise que culmina com o golpe em 1964. Evita o caminho percorrido por outros trabalhos, nos quais a imagem de Jango aparece quase sempre de forma negativa, definindo-o como o único responsável por aquele desfecho. Prefere resgatar a participação de outros personagens políticos: os militares, as direitas, as esquerdas e as forças estrangeiras, enfatizando que todos eles tiveram sua parcela de responsabilidade nos acontecimentos de março e abril de 1964 que resultaram na instauração da ditadura militar.

O texto é muito bem escrito, com uma linguagem direta e explicativa. Sua originalidade fica por conta da forma como foram usados os depoimentos, do grande número de entrevistados e da transcrição de diversos documentos da época. O livro cumpre o seu objetivo ao permitir o encontro do leitor com as múltiplas faces do ex-presidente João Goulart. As diversas falas, algumas de pessoas de seu convívio pessoal, como sua esposa Maria Theresa; auxiliares diretos, como Hugo de Faria; aliados, como o comunista Hércules Correia e o trabalhista Almino Afonso; ou inimigos políticos, como os militares Ernesto Geisel e Antonio Carlos Muricy.

O livro conta ainda com a inclusão inovadora de um CD com discurso de Jango pronunciado na Câmara Municipal de Juiz de Fora (MG), em 31 de maio de 1963, no qual pode-se ouvir, entre outras coisas, a defesa da Reforma Agrária.

Outros elementos que enriqueceram o livro são as fotografias e notas explicativas. Ambas auxiliam o leitor na visualização e compreensão de diversos fatos e personagens citados pelos autores ou pelos depoentes ao longo da obra. Sobre as notas, vale ressaltar que os autores poderiam ter aproveitado melhor este recurso, inserindo- as também para apresentar os dados biográficos dos entrevistados, possibilitando ao leitor elementos para um melhor entendimento das opiniões expostas sobre Goulart e sobre o contexto político de sua trajetória. A lista de depoentes colocada ao final do livro permite essa contextualização, porém se os dados biográficos estivessem distribuídos ao longo do texto tornariam mais fácil a leitura da obra.

Essa é a primeira biografia escrita pelos autores, ambos com uma larga experiência no trabalho historiográfico, especialmente na temática do trabalhismo. O livro foi lançado num momento muito importante, em que se refletiam ainda as discussões em torno dos 30 anos da morte de João Goulart. Sem dúvida nenhuma, o livro dos historiadores Ângela de Castro Gomes e Jorge Ferreira constitui um marco na historiografia sobre o passado recente do Brasil, tocando em feridas ainda não cicatrizadas. Para isso, utilizam a trajetória de um dos principais personagens daquele período. Uma leitura que se torna indispensável para quem pretende conhecer ou pesquisar a história política brasileira do tempo presente.

Notas

1FERREIRA, Jorge. O Imaginário trabalhista: getulismo, PTB e cultura política popular.

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. FERREIRA, Jorge. Prisioneiros do Mito: cultura e imaginário político dos comunistas no Brasil. Niterói/Rio de Janeiro: Eduff/ Mauad, 2002. FERREIRA, Jorge. Trabalhadores do Brasil: o imaginário popular. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997. GOMES, Angela de Castro. A Invenção do Trabalhismo. São Paulo/Rio de Janeiro: Vértice/IUPERJ, 1988. GOMES, Angela de Castro. Burguesia e trabalho: política e legislação social no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1979. GOMES, Angela de Castro. História e Historiadores: a política cultura do Estado Novo. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996.

Referências

BOURDIEU, Pierre. A Ilusão Biográfica. In. AMADO, Janaína e FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos e Abusos da História Oral. 5. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002.

ELIAS, Norbert. Mozart: Sociologia de um gênio.Tradução Sérgio Góes de Paula. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.

LEVI, Giovanni. Usos da Biografia. In. AMADO, Janaína e FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos e Abusos da História Oral. 5. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002.

Wagner da Silva Teixeira – Tem graduação e mestrado em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP/FRANCA) e doutorado em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: [email protected]

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Jango: as múltiplas faces – GOMES; FERREIRA (RBH)

GOMES, Ângela de Castro; FERREIRA, Jorge Ferreira. Jango: as múltiplas faces. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2007. 280p. Resenha de: MONTENEGRO, Antonio Torres. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.28, n.55  jan./jun. 2008.

O livro Jango: as múltiplas faces, de autoria dos professores Ângela de Castro Gomes e Jorge Ferreira, vem de forma muito própria ampliar o debate em torno da trajetória pública de um político que teve participação fundamental na história do Brasil, particularmente na segunda metade do século XX.

Em que pese essa participação ampla e ativa nos acontecimentos, sobretudo políticos, econômicos e sociais, produziu-se em torno do ex-presidente João Goulart uma história carregada de significados negativos. E essa produção (como assinalam os autores) foi instituída tanto por setores adversários (partidos e grupos políticos dos mais diferentes matizes ideológicos e segmentos da sociedade civil) como pelos partidos e grupos políticos que o apoiavam. Em razão desse cenário, desconstruir essa história que hoje opera como uma memória não é algo instantâneo nem uma operação que ofereça facilidade aos historiadores.

É nessa trincheira de uma história a contrapelo que este livro irá se posicionar. E o primeiro movimento para quebrar o quadro monolítico das adjetivações de Jango indeciso, Jango sem controle da situação política do País, Jango dominado pelos comunistas, Jango de quem todos desconfiavam, é trazer à tona uma série de atores constituidores desses discursos e confrontá-los com outros atores e outros discursos que apontam em sentido diametralmente oposto. O segundo movimento é romper com um relato e uma imagem que comumente reduz a trajetória de Jango ao seu período como presidente. Assim, os autores ao reconstruírem a trajetória de Jango, desde seus primeiros encontros com Vargas em São Borja em 1945, depois deputado estadual pelo PTB no Rio Grande do Sul, deputado federal, secretário do Interior e Justiça do governo de Ernesto Dornelles no Rio Grande do Sul, presidente do PTB, ministro do trabalho de Getúlio em 1953-1954 e depois vice-presidente de Juscelino entre 1956 e 1960, instituem a história de um político que acumulou uma larga experiência ao longo da vida.

Entretanto, para todos que acompanham os artigos e livros dos professores Ângela de Castro e Jorge Ferreira, não é difícil perceber que tanto esse período da história do Brasil, como a atuação de João Goulart, constantemente atravessam as trilhas de seus escritos, mesmo quando o foco de suas narrativas históricas é outro. Este registro é importante, pois sem um amplo conhecimento do período e de uma documentação bastante diversificada, não seria possível construir uma contra-história que rompesse a rede de significações estabelecidas. Afinal, constitui-se um grande desafio aos historiadores que se dedicam a pesquisar esse período, não subsumir a sua produção a uma lógica dualista e teleológica que, de maneira ‘apriorística’, institui uma visão histórica positiva ou negativa acerca de João Goulart.

Em razão do exposto, qual engenharia escriturística montaram estes historiadores? Poderiam ter escrito uma biografia política tradicional. No entanto, optaram por um caminho muito mais sinuoso. Poder-se-ia dizer uma meta-história. Mas não reduzida à perspectiva lingüística, em que o sentido ou os significados se estabelecem a partir das figuras da linguagem, e sim, fundamentalmente por meio de um caleidoscópio documental. Neste, a história de vida e, sobretudo política de Jango, apesar de se apresentar narrada em sete capítulos ou períodos referenciais, adquire formas as mais diversas à medida que lemos o conjunto documental em que se apóia cada capítulo. Dessa maneira, desafia o leitor a realizar uma leitura difícil, articulando, detalhando a trama que obriga à reflexão a todo instante, pois os distintos documentos e imagens emitem signos de diferentes matizes. E, possivelmente, as pessoas que buscam uma resposta pronta, uma representação sem paradoxo, sem conflitos, sem dúvidas, não terão neste livro uma leitura fácil.

Ao percorrer atentamente as linhas labirínticas que instituem essa história, descobre-se como mãos extremamente habilidosas operaram no limiar ou na fronteira da unidade e da pluralidade de sentidos e significados. Os autores, ao afirmarem “que se buscou não foi a homogeneidade e a convergência de pontos de vista, ‘fechando’ a biografia, mas justamente o inverso: o confronto, o debate de opiniões, ‘abrindo’ a trajetória de Jango a leituras variadas”, possibilitaram ao leitor conhecer relatos de aliados e de adversários de Jango, produzindo as mais diferentes análises, avaliações e pontos de vista. Entretanto, essa pluralidade/diversidade caleidoscópica está montada para nos causar a sensação ou o efeito literário de que o acaso, a incerteza e a dúvida não são apenas atributos da história cotidiana, mas, também da reconstrução historiográfica.

A seleção de alguns pequenos trechos de relatos presentes no livro possibilita ao leitor antever como essa diversificada e paradoxal documentação sugere a potencialidade de distintas histórias, ou talvez a impossibilidade de uma história conclusiva. Observa Raul Ryff, secretário de imprensa da presidência de Jango, o qual abre a sessão de documentos do capítulo VI, “Jango e o golpe de 1964”:

Ele incentivou a sindicalização rural, mexeu numa área perigosa, uma área de coronéis, no sentido de chefia política. Lutou pela reforma agrária; estabeleceu a Lei da Remessa de Lucros controlando, colocando normas para essa remessa e diminuindo a taxa de retorno do capital estrangeiro; desapropriou as refinarias particulares entregando-as à Petrobras. Enfim, tomou várias medidas importantes. Foi um governo notadamente nacionalista, popular e democrático.

Ainda numa perspectiva muito próxima a esse depoimento de Ryff, poder-se-ia apontar nesse mesmo capítulo o depoimento de Hércules Correia, membro do PCB que no dia do golpe acompanhou o diálogo ao telefone entre Jango e um dos militares golpistas:

Aí o Kruel ligou e Jango pediu que um de nós fosse para o telefone na extensão. O Oswaldo Pacheco pediu: “Vai você”. Aí eu fui para a extensão e ouvi a conversa. O Kruel disse que a única forma de evitar um golpe era dissolver oficialmente a CGT e prender todo mundo. Naquela época, seria prisão de mais ou menos 500 dirigentes sindicais aqui do Rio e dos estados; as principais cabeças. E o Jango não aceitou. Respondeu na hora, disse que não, que não ia prender, não ia fazer aquilo. A partir daí não tinha mais condições de ficar na presidência. Então foi para Brasília e, de Brasília, pegou outro avião e foi para o Uruguai.

Esses fragmentos positivam a atuação e o comportamento do presidente João Goulart. No entanto, há nos autores uma clara opção por uma trilha marcada por paradoxos que recolocam a dúvida e a incerteza, desconstruindo a possibilidade de instituir uma história conclusiva. E nesse sentido é revelador o relato de Hugo Faria, que conhece Jango ainda no período em que este assumiu o Ministério do Trabalho de Getúlio, vindo posteriormente a se tornar seu amigo e conselheiro:

E chegou um ponto em que ele me disse: “Hugo, você sabe por que tirei você da Casa Civil?”. Eu respondi: “Saber eu não sei, mas desconfio. O senhor não tem condições de aceitar críticas, e como eu sou por natureza um crítico, o senhor se encheu. Como é meu amigo, me deu uma outra posição. Na verdade, o senhor não aceita crítica”. Ele concordou: “É, você me enchia… Todo o dia era notícia ruim, notícia ruim…”. Não era. Eu estava mostrando a evolução, ele não queria acreditar. Não fui eu só, não! Juscelino foi três vezes ao palácio alertar Jango de que a revolução ia estourar. E na última vez Jango disse: “Eu boto esse pessoal nas ordens em meia hora, uma hora. O Assis Brasil tem um esquema montado”. Ele preferia acreditar nas bazófias do general Assis Brasil…

Este pode ser visto como um fragmento de um relato crítico de um amigo, que foi preterido como voz aconselhadora quando tentou (da mesma forma que outros também o fizeram) alertar Jango acerca do perigo de uma conspiração golpista que se avizinhava. Ou seja, o presidente não era receptivo a críticas e às boas avaliações na visão do amigo de longa data, Hugo Faria.

Um relato do campo adversário, também instituindo uma perspectiva negativa da imagem de Jango, encontra-se no relato do general Geisel. Este irá apontar para uma grande resistência a Jango, apenas contornada provisoriamente enquanto se manteve o regime parlamentarista: “A conspiração começou a tomar vulto quando o Jango derrubou o parlamentarismo, foi para o presidencialismo e passou a ser dominado pelo Dante Pellacani e uma série de outros líderes sindicais que mandavam e desmandavam”.

Revela o general que, no momento em que o presidente obteve por meio de um plebiscito amplamente favorável os poderes constitucionais de presidente, o movimento conspiratório foi colocado em marcha.

Estes fragmentos oferecem ao leitor uma pequena visão da riqueza e diversidade documental dessa narrativa que elege a figura emblemática de Jango para estudo e que faz recordar Foucault com sua crítica ferrenha às biografias, que instituem representações fechadas, acabadas e na maioria das vezes heróicas dos seus personagens. Ou ainda, por que não lembrar Pirandello e seu maravilhoso Moscarda em Um, nenhum, cem mil?

Ao mesmo tempo, confirma-se o compromisso político da prática historiográfica dos autores, aliando o fazer intelectual a uma busca incessante de novas compreensões de uma realidade em que passado e presente são ressignificados em uma nova forma de fazer política, permanentemente desafiando nosso agir social. É possivelmente com esse espírito que os autores finalizam esta biografia com um pequeno texto manuscrito de Jango, datado de 18 de julho de 1975, portanto um ano antes de sua morte: “Os últimos acontecimentos não podem e não devem ser julgados apressadamente. Não podemos viver placidamente quando milhões de Brasileiros estão sofrendo inúmeros sacrifícios. Peço fé e confiança. Estarei sempre ao lado dos que sofrem em defesa de seus direitos e de nossos ideais”.

Antonio Torres Montenegro – Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) – Pesquisador do CNPq. Rua Acadêmico Hélio Ramos s/n – Cidade Universitária. 50670-901 Recife – PE – Brasil. [email protected]

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Jango: as múltiplas faces | Ângela de Castro Gomes e Jorge Ferreira

Em primeiro de abril de 1964, um furioso editorial intitulado “Fora” era publicado pelo jornal carioca Correio da Manhã. O golpe civil-militar efetivava-se no país, sem que a ordem de resistência, esperada por muitos, fosse dada pelo Presidente João Goulart.

O personagem, centro da crise instaurada a partir da renúncia de Jânio Quadros, do qual fora vice-presidente, sofreu, a partir de então, como toda a sociedade brasileira, as conseqüências do golpe civil-militar desencadeado contra o seu governo, amargando o exílio no qual morreu em dezembro de 1976. A partir do golpe, sofreria também constante julgamento de aliados, colaboradores e adversários dos mais diversos lugares sociais e políticos. Leia Mais

Jango: as múltiplas faces – FERREIRA; GOMES (AN)

FERREIRA, Jorge; GOMES, Ângela de Castro. Jango: as múltiplas faces. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2007. 272p. Resenha de: RODEGHERO, Carla Simone. Anos 90, Porto Alegre, v.14, n.26, p.235-242, 2007.

Jango: as múltiplas faces, de Ângela de Castro Gomes e de Jorge Ferreira, é um livro que foi pensado a partir do reconhecimento de que a memória e a história sobre João Goulart se concentram no período da presidência da República e a partir da percepção de que, ainda hoje, esse personagem histórico continua suscitando paixão e polêmica. Para mostrar que a atuação política de Jango foi muito mais longa do que seu mandato presidencial, os autores optaram por produzir uma narrativa biográfica acompanhando a trajetória de Jango e contemplando tanto sua dimensão política quanto a pessoal. (p. 9). Optaram também por mostrar que essa trajetória foi multifacetada. Segundo Gomes e Ferreira, as múltiplas faces de Jango vão além da pluralidade constitutiva do homem moderno., já que Goulart pode ser caracterizado, por excelência, como um personagem assinalado pelo contraditório, sendo, por isso, um desafio para interpretações que se queiram unívocas e lineares. (p. 9).

Essa percepção ganha corpo, a cada capítulo do livro, com a apresentação de um vasto conjunto de depoimentos e de alguns pessoal de Jango aí retratado. Assim, após uma exposição elabora- da pelos autores e acompanhada por imagens, são transcritos os depoimentos e os demais documentos, que possibilitam que o leitor se confronte com a diversidade dos pontos de vista a respeito de João Goulart. Com esta estratégia, os autores buscaram escrever uma biografia aberta à interpretação dos leitores., (p. 10) sem, no entanto, descartar o auxílio e a mediação dos historiadores.

A maior parte das entrevistas foi recolhida no acervo de depoimentos do Setor de História Oral do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da Fundação Getúlio Vargas. São entrevistas realizadas no contexto de diferentes projetos de pesquisa, desenvolvidos desde a década de 1970. Outras, mais recentes e relacionadas à trajetória pessoal de Jango, foram recolhidas pelos autores. Entre os depoentes estão familiares e pessoas próximas da família, como a esposa, Maria Thereza; a filha, Denise; o procurador Bijuja. Outro grupo é formado por membros do PTB e do governo deposto, como Abelardo Jurema, Ministro da Justiça entre 1963-1964; Almino Afonso, Ministro do Trabalho e da Previdência Social, em 1963; Evandro Lins e Silva, Chefe do Gabinete Civil da Presidência da República e Ministro das Relações Exteriores, em 1963; Hugo de Faria, Ministro do Trabalho em 1954, Chefe do Gabinete Civil da Presidência da República em 1963 e Presidente do Banco do Brasil em 1964; Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul entre 1958 e 1962 e deputado federal pela Guanabara, eleito em 1962; Raul Ryff, Secretário de Imprensa da Presidência da República entre 1961 e 1964; e Wilson Fadul, Ministro da Saúde, entre 1963 e 1964. Também são apresentados depoimentos de apoiadores e de opositores políticos, que revelam os diferentes níveis de apoio e de oposição que se fizeram sentir ao longo da trajetória política de Jango. No primeiro caso, têm-se, entre outros, Francisco Julião, Deputado federal e líder das Ligas Camponesas, e Hércules Correia, ser citados Afonso Arinos de Mello Franco, da UDN, e os milita- res ligados ao golpe, Antônio Carlos Muricy e Ernesto Geisel.

Os depoimentos são apresentados ao final de cada capítulo, aprofundando, exemplificando, complexificando e enriquecendo a narrativa dos autores. No final do livro, o leitor encontra um quadro com a relação dos depoentes, com um breve currículo dos mesmos, a data da entrevista e o nome dos entrevistadores. Porém, como boa parte dos entrevistados não é automaticamente reconhecida pelo leitor comum e mesmo pelo especializado, fica faltando, no momento em que cada depoimento é apresentado, a remissão a uma nota de rodapé que permita situar, com rapidez, quem está falando, qual sua relação com os fatos em discussão, para quem está falando e quando concedeu a entrevista. Este de- talhe técnico beneficiaria o leitor, já que a consulta ao quadro final quebra o ritmo da leitura e prejudica a avaliação sobre as escolhas feitas pelos autores quando da seleção dos depoimentos. Por outro lado, várias notas explicativas acompanham os capítulos, mas elas se referem a personagens, fatos, instituições, leis que são, muitas vezes, de maior conhecimento público do que a trajetória ou filiação política dos depoentes.

Feita esta breve apresentação da obra, antes de entrar no relato das múltiplas faces de Jango., é preciso lembrar que a trajetória de pesquisa de Gomes e Ferreira sobre os temas do getulismo e do trabalhismo torna-os altamente qualificados para escrever sobre João Goulart. Ao longo das últimas décadas, seus trabalhos têm contribuído para repensar fenômenos da história brasileira pós- 1930, especialmente no que diz respeito ao período que é inaugurado com a redemocratização de 1945 e com a Constituição de 1946.

Boa parte das manifestações políticas e sindicais desse período havia sido alvo de severas avaliações e críticas, construídas a partir do conceito de populismo, ao longo dos anos 1960 e 1970.

Gomes e Ferreira têm realizado trabalhos pioneiros que permitem repensar tais interpretações. Além disso, o próprio personagem João Goulart já foi alvo de atenção direta de ambos os autores, em diversas oportunidades.

Ao longo do primeiro capítulo, o leitor acompanha João Goulart desde seu nascimento, em 1919, até sua entrada no mundo da política. Fica sabendo a respeito das posses da família em São Borja, do curso de Direito realizado em Porto Alegre e da posterior volta à terra natal para assumir os negócios, após a mor- te do pai. Acompanha, em São Borja, a rotina do jovem Jango transformada com a chegada de Getúlio Vargas, no final de 1945, seu posterior envolvimento com a criação do PTB e sua eleição para a Assembléia Legislativa gaúcha em 1947. É informado sobre o aprofundamento da sua atuação política nas articulações para a eleição de Vargas em 1950, ano em que Goulart também é eleito deputado federal. Neste capítulo, ainda é descrito o período de 13 meses, durante o qual Jango se afastou do mandato para atuar como Secretário do Interior e da Justiça no Governo de Ernesto Dornelles, no Rio Grande do Sul. Sabe-se, finalmente, que ao reassumir o cargo, no Rio de Janeiro, Vargas lhe concedeu um gabinete de trabalho no Palácio do Catete. Lá, Jango seria muito mais visto do que no Congresso Nacional.

Essa trajetória de envolvimento na política se consolidou com a passagem de Jango pelo Ministério do Trabalho, em 1953, o que é tratado no segundo capítulo da obra. Neste momento, teria se revelado a capacidade de negociação de Goulart, mediando questões entre empresários e trabalhadores, como aconteceu na greve dos marítimos. Medidas como a abolição do atestado ideológico para dirigentes sindicais permitiram a atuação em conjunto de lideranças trabalhistas e comunistas. A informalidade com que Jango se dirigia a essas lideranças aceitando, inclusive, convites para churrascos em final de semana para discutir demandas sindicais de trabalhadores, segundo relatam os autores, chocou setores da sociedade brasileira. A estada no Ministério culminou com militares com ampla repercussão levou à saída de Goulart da pasta do Trabalho.

Antes da entrada no Ministério, porém, Jango havia assumi- do a Presidência do PTB. O terceiro capítulo trata do sindicalismo no período entre 1945 e o começo da década de 1960, mostrando as aproximações entre os trabalhistas e o PCB. Em parte desse período, Jango viria a ocupar a vice-presidência da República (nos governos Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros). Naquela época, como se lê no quarto capítulo da obra, ser vice-presidente exigia fazer uma campanha à parte e, depois de eleito, assumir, entre outros encargos, a presidência do Senado. Segundo os autores, ser vice-presidente significava possuir espaços políticos próprios extremamente visíveis e valiosos. (p. 111). A junção das possibilidades oferecidas pelo cargo com a prévia experiência de diálogo de Jango. que mantinha forte influência sobre o Ministério do Trabalho com o movimento sindical, teria contribuído para a estabilidade política do governo JK. O relacionamento com Jânio, todavia, teria sido mais difícil, já que o presidente fazia questão de demonstrar seu distanciamento em relação ao vice, eleito pela chapa oposta. O episódio da renúncia de Jango e a campanha da Legalidade também são narrados neste capítulo.

No capítulo seguinte, os autores se debruçam sobre o período em que Jango esteve na Presidência da República. Nesta parte, são enfatizados, entre outros aspectos, o seu programa nacionalista mínimo; as dificuldades com os credores internacionais; a falta de apoio no Congresso, onde PSD e PTB divergiam sobre questões essenciais do programa de governo; o afastamento das forças reformistas da estratégia da luta parlamentar; as substituições de gabinetes e o plebiscito que aprovou a volta do presidencialismo.

A partir dessa fase, é apresentado o Plano Trienal, com suas metas e a conjuntura que levou ao seu abandono. O capítulo é concluído com o tratamento da crescente radicalização política que atingiu optativas de negociação, aproximando-se das organizações que, ao longo do tempo, mais abertamente o sustentaram: o movimento sindical e as esquerdas radicais. (p. 144).

O golpe de 1964 é tratado no penúltimo capítulo do livro, que narra os acontecimentos que se seguiram ao comício de 13 de março: a revolta dos marinheiros e fuzileiros navais, o compareci- mento do presidente à solenidade de posse da nova diretoria da Associação dos Sargentos, no Automóvel Clube, o levante em Minas Gerais e a movimentação de Goulart até sua saída para o Uruguai. O não-apelo à resistência estaria ligado à percepção do Presidente de que havia um alto risco de guerra civil. (p. 196).

Jango no exílio. é o capítulo que encerra a biografia. Aí é tratado o rompimento definitivo entre Goulart e Brizola, depois de uma curta aproximação. Fica-se sabendo que após um ano de exílio, Jango passou a se dedicar a investimentos agropecuários no Uruguai. Por conta disso, além de engordar bois, tornou-se um dos maiores fornecedores de arroz daquele país. São brevemente descritas as articulações em torno da Frente Ampla, logo tornada ilegal. Vigiado pelo Serviço Nacional de Informações (SNI), o ex-presidente afastou-se de qualquer atividade política, voltando a se dedicar exclusivamente a seus negócios pessoais. (p. 231). Sofreu um enfarte em 1969, viu a sua situação e a da família se com- plicarem com o golpe de 1973, no Uruguai. Em 1974, passou a residir em Buenos Aires. Na Argentina, continuou com seus negócios agropecuários e comprou propriedades. Sua saúde, no entanto, estava debilitada: Jango alimentava-se mal, fumava e bebia muito, sofrendo de bruscas quedas de pressão arterial, desmaios e dores no peito. (p. 232). Em 1976, após receber ameaças de que seus dois filhos seriam seqüestrados, Goulart os enviou para Londres. Fez gestões para voltar ao Brasil. Em 6 de dezembro daquele ano, morreu no exílio, vítima de um enfarto fulminante.

para os autores do livro, o conjunto dos depoimentos e documentos apresentados instiga o leitor a tirar suas próprias conclusões, dialogando com a narrativa dos capítulos. Os autores resgataram também a própria voz de João Goulart, apresentando alguns discursos por ele proferidos, um dos quais no formato de CD. Tal material permite empreender uma série de comparações e de questionamentos. Avaliações absolutamente contrastantes sobre Jango convivem, em tais documentos, com diferentes valorações atribuídas a certas características pessoais ou políticas de João Goulart. A leitura dos depoimentos suscita questionamentos sobre como era visto e como foi descrito o preparo (ou a falta de preparo) de Jango para o cargo de Presidente da República; sobre as avaliações a respeito da consistência do seu programa de reformas de base e sobre a sinceridade no propósito de realizá-las; sobre o paradoxo de o rico proprietário de terras propor uma reforma agrária; sobre a sua capacidade de dialogar e de construir consensos, em situações nas quais os interlocutores eram sindicalistas e quando o diálogo precisou ser feito com os setores mais conserva- dores da sociedade brasileira. O perfil que os autores apresentam de Jango, como um governante que queria dialogar e, ao mesmo tempo, fazer as reformas acontecerem, faz pensar sobre o papel da conciliação e da radicalização na política brasileira, dos anos 1960 aos dias atuais.

Finalmente, é preciso chamar a atenção, no livro de Gomes e Ferreira, para a importância do recurso à memória na escrita da história recente do Brasil e para as contribuições da História Oral nesta tarefa. Isso é particularmente fecundo no caso de Jango, um personagem polêmico que, apesar de ter uma longa trajetória política, ainda é associado quase exclusivamente à derrota representada pelo golpe de 1964. Isso se deve, creio, ao fato do golpe e do regime militar serem, ainda hoje, marcos fundamentais da nossa da ditadura ainda permeiam boa parte das discussões políticas no Brasil. Ao mesmo tempo, cada vez mais, instigam historiadores a se voltarem a este período e àquele que o antecedeu. Desta tendência fazem parte livros como Jango: as múltiplas faces.

Notas

1 Sobre outras publicações dos autores sobre o assunto ver: Ferreira, Jorge. O governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964. In: Jorge Ferreira; Lucília de Almeida Neves Delgado. (org.). O Brasil Republicano O tempo da experiência democrática – Da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, v. 1, p. 343-425; Ferreira, Jorge. A estratégia do confronto: a Frente de Mobilização Popular. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 24, n. 47, p. 181-212, 2004. Ferreira, Jorge. O imaginário trabalhista. Getulismo, PTB e cultura política popular (1945-1964). Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2005 (especialmente os capítulos: O ministro que conversava: João Goulart no Ministério do trabalho; A legalidade traída: os dias sombrios de agosto e setembro de 1961 e O último ato: sexta-feira 13 na Central do Brasil). Ver ainda: Ferreira, Jorge (org.). O populismo e sua história. Debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. No que se refere a Ângela de Castro Gomes, ver: GOMES, A. M. C. . O Populismo e as Ciências Sociais no Brasil: notas sobre a trajetória de um conceito. Revista Tempo, Niterói – RJ, v. 1, n. 2, p. 59-72, 1996; GOMES, A. M. C.  Memórias em disputa: Jango, ministro do Trabalho ou dos Trabalhadores? In: FERREIRA, Marieta de Moraes (org.) João Goulart entre a memória e a história. Rio de Janeiro: FGV, 2006; e GOMES, A. M. C. O Populismo e as Ciências Sociais no Brasil: notas sobre a trajetória de um conceito. Revista Tempo, Niterói, v. 1, n. 2, p. 59-72, 1996.

Carla Simone Rodeghero – Professora do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS.

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