Linguagem, cultura e conhecimento histórico: ideias, movimentos, obras e autores | Diogo Roiz da Silva

Diogo da Silva Roiz é mestre em História pela Unesp de Franca- SP e Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná e tem se dedicado à produção de textos na área de Teoria da História e Historiografia, autor de diversos artigos e livros na área. Na obra intitulada “Linguagem, cultura e conhecimento histórico: ideias, movimentos, obras e autores”, Diogo Roiz nos apresenta seis capítulos, divididos em duas partes. Na primeira delas, intitulada “História e Literatura”, destaca os debates teóricos em torno de tal questão, sobretudo no que tange ao período pós-1960, posteriormente à denominada “virada linguística”, mostrando como os historiadores procuraram responder às críticas efetuadas pelas obras de Friedrich Nietzsche, Hayden White, entre outros. Na segunda parte da obra, “Literatura e História”, Roiz exibe algumas possibilidades de empreender um estudo utilizando fontes literárias, mostrando o quanto elas podem ser prósperas para a pesquisa histórica.

O que é instigante no trabalho é o fato de o autor fazer alguns importantes questionamentos, tais como, “De que maneira os historiadores se posicionaram, quando, a partir dos anos 1960, se tornou mais corriqueira a evidência de uma relação ambígua no campo dos estudos históricos, ao ser situado entre a ‘ciência histórica’ e a ‘arte narrativa’?”, ou então, “como as fontes literárias podem ser utilizadas na pesquisa histórica?” (ROIZ, 2012, p. 13).

A primeira parte do livro inicia com o capítulo intitulado “Linguagem e cultura: o desafio do “linguistic turn” ao contextualismo inglês”. Nesse texto, Roiz divide sua discussão em três momentos. No primeiro deles, o autor introduz o leitor no debate acerca da denominada “virada linguística” e a discussão em torno da questão da narrativa na história com a intenção de evidenciar como a contenda envolvendo a ideia de “história narrativa” e “história problema” esteve ligada ao linguistic turn.

Diogo faz a instigante indagação: “a linguagem representa o acontecido ou o acontecimento já se encontraria na própria linguagem (?)”. Na sua concepção, o primeiro momento da frase circunstanciaria a relação “texto-contexto”, isto é, “a importância da ‘história vivida’, da ‘realidade’ extratextual que dá forma ao acontecimento e a sua (re)configuração no interior de uma narrativa, cujo princípio metodológico se consolidou na historiografia oitocentista” (2012, p. 35, grifos do autor). Em outras palavras, “a linguagem representaria o acontecido na forma de uma narrativa pautada em fontes documentais, que comprovariam o que foi vivido no passado” (Idem, p. 36, grifos do autor).

O segundo momento da frase indica uma alteração significativa na ideia de realidade extratextual. Segundo Roiz, desde o crepúsculo dos anos de 1920 já existia a concepção de que “o discurso traria consigo o produto de uma representação, que indicaria que a ‘história como tal’, não existiria, mas, sim, interpretações, versões sobre o passado”. Nesse sentido, a partir dos anos de 1950, intensificou-se tal percepção, pois “passou-se dar cada vez maior atenção aos processos de produção do texto seja do documento, seja da narrativa histórica, demonstrando-se que cada qual se limitava a certos aspectos do passado e nunca a sua totalidade” (id., ibid., grifos do autor). Tal redução do contexto ao texto atingiu níveis extremos, uma vez que foi colocada em dúvida a existência de uma realidade extratextual, especialmente após as críticas de Hayden White em O fardo da História (1966) e Paul Veyne e Como se escreve a História (1971).1

Roiz nos mostra, então, como o contextualismo linguístico articulado por Quentin Skinner refletiu sobre tal problemática. Como sabemos, Skinner é um historiador preocupado com a história dos intelectuais e pretendia se afastar de duas concepções relacionadas a este campo de pesquisa, sendo que a primeira delas primava pela análise puramente textual, como a única chave necessária para extrair o seu significado, dispensando, qualquer busca contextual. Do mesmo modo, ele se afastaria da visão eminentemente contextualista que insistiria na ideia de que o contexto social é a causa e o fator determinante para o significado do texto (SKINNER, 1969). Assim, Skinner elaborou “um conjunto de procedimentos para inquirir os motivos e as intenções dos autores ao formarem suas explicações dos acontecimentos, e, ao fazerem isso, também plasmarem certos tipos de ação, no contexto da história do pensamento político ocidental” (ROIZ, 2012, p. 43).

Levando em consideração que a “virada linguística” mostrou-se muito cética no que diz respeito a uma realidade extratextual, Skinner respondeu a tal ceticismo indicando que existe um espaço extratextual que permite ao historiador, por exemplo, rastrear as motivações e as intenções dos produtores dos textos no ato de escrevê-los.

No capítulo seguinte, intitulado de “O ofício dos historiadores: entre a ‘ciência histórica’ e a ‘arte narrativa’”, Roiz faz um debate acerca dos estudos históricos estarem entre o pêndulo da “ciência” e da “arte” e como os questionamentos que circundavam tal problemática foram repensadas para a pesquisa histórica após os anos de 1970. Na primeira parte do texto, o autor nos mostra a notória influência do filósofo alemão Friedrich Nietzsche sobre a filosofia francesa de meados do século XX que culminou em contundentes críticas à escrita da História. Tal debate cruzou o Atlântico e foi muito forte também nos Estados Unidos, sobretudo pelos textos do historiador Hayden White, que levou ao extremo a crítica às pretensões do conhecimento histórico poder se constituir ‘cientificamente’, já que este, ao contrário, estava mais próximo da ‘arte’.

A importância da análise de Roiz reside no fato de que ele nos mostra que White mudou seu posicionamento com o passar do tempo, e que este fato é muitas vezes esquecido. Assim, centrando sua atenção em três textos publicados em 1966, 1974 e 19842, apresentará a reviravolta nas concepções do historiador norte-americano acerca de suas análises sobre a escrita da história. No primeiro deles, White dirá que os historiadores fizeram uso de uma “tática fabiana” para fugir das críticas que lhes eram feitas pelos cientistas sociais e literários, uma vez que quando perguntados pelos primeiros sobre a cientificidade de seus métodos, eles responderiam que “a história jamais reivindicou o status de ciência pura”, por outro lado, quando os literatos lhe criticavam, o historiador dizia que os dados históricos não se prestariam jamais à “livre” manipulação artística.

No segundo texto abordado por Roiz, White teria sido mais direto ao enfatizar que as narrativas históricas eram tão inventadas quanto descobertas e que sua forma teria mais em comum com a literatura do que com a ciência. Já no terceiro texto, o historiador estadunidense parece mais ameno em suas críticas ao dizer que qualquer campo de estudo que utiliza a narrativa para explicar, deverá ser questionado, o que não significa, entretanto, que a narração deva ser abandonada, pois para ele, o que difere os relatos históricos dos ficcionais não são suas formas de fazer, mas seus conteúdos. White pretendia dizer que devemos assumir, enquanto historiadores, que a aproximação com a arte literária não é algo que devamos nos envergonhar, pois a história é poética (REIS, 2010).

Nesse sentido, Roiz lança a pergunta: “como foi pensado o ‘ofício dos historiadores’ e a questão da ‘narrativa histórica’ diante dessas questões?” (2012, p. 62). Para nos responder, o autor faz uma abordagem a partir das concepções de Peter Gay que, em sua obra O estilo na história, respondera algumas das críticas feitas à pesquisa historiográfica ressaltando que o estilo da escrita na História é resultado da relação entre o “contexto de produção”, com o “lugar social ocupado pelo autor”, suas “leituras” e “formação” (ROIZ, 2012, p. 62-64)

Diogo Roiz analisará, na parte final do segundo capítulo, as contribuições de Koselleck e Rüsen, ambos os autores se posicionaram contra a crítica pós-moderna. Enquanto que para Hayden White, por exemplo, “a narrativa constituiria ‘uma estrutura verbal’, mediada por ‘urdiduras de enredo’, amplamente verificáveis numa análise ‘tropológica’, que corresponderia [o conhecimento histórico] a sua inevitável correspondência com a ‘arte’, e não com a ‘ciência’”, para Jorn Rüsen, “a narrativa daria ‘sentido a experiência do passado’, por torná-lo histórico com um ‘enredo’. Assim, ao ser adequadamente conduzido por meio de ‘métodos’ (…) o conhecimento histórico pode também ser ‘científico’” (ROIZ, 2012, p. 74).

No texto seguinte, intitulado “A reconstituição do passado e o texto literário: a resposta dos historiadores à ‘virada linguística’”, o autor faz uma conveniente e elucidativa abordagem mostrando como os historiadores Carlo Ginzburg, Jorn Rüsen e Josep Fontana responderam às teses céticas direcionadas à pesquisa histórica pelos denominados “pós-modernos”, especialmente as críticas feitas por Hayden White.

Na segunda parte da obra, intitulada de Literatura e História, Roiz nos mostrará como, na prática, é possível fazer o diálogo entre esses dois campos disciplinares, nos brindando com três textos. O primeiro deles é um interessante estudo em que Roiz apresenta como algumas peças teatrais portuguesas dos séculos XVIII e XIX podem ser bastante profícuas para o estudo das relações entre escravos e senhores. O autor selecionou 13 peças teatrais em que a figura do “escravo” aparecia em papéis centrais ou secundários. Em suas palavras, a “importância desse tipo de trabalho está em demonstrar como a escravidão moderna era percebida pelos autores de peças teatrais, nos séculos XVIII e XIX” (2012, p. 111).

Para tanto, Roiz analisou três dessas peças. A primeira delas encenava um senhor “benévolo” e um escravo “passivo e submisso”. Na segunda, havia a presença de um senhor mais brutal e um escravo desobediente. A terceira peça analisada apresentava que havia também negociações entre senhores e escravos. Deste modo, o autor nos mostrará que, ainda que muitas vezes os autores daquelas peças desconheçam mais profundamente o funcionamento do sistema escravista, eles “tiveram a sensibilidade de visualizar formas de comportamento” que se aproximavam do que foi o “sistema escravista” (2012, p. 129).

No capítulo seguinte, “As metamorfoses de uma obra: leitores e leituras dos textos de Franz Kafka (1883-1924)”, há uma densa leitura das várias leituras de intérpretes da obra do enigmático e emblemático escritor austríaco, fazendo um tipo de análise da história da historiografia literária acerca da obra de Kafka, acompanhando as diversas leituras que foram feitas de toda a bibliografia do mesmo.

No último capítulo da obra, Roiz avaliou como o historiador francês Georges Duby, fez uso de fartas fontes literárias para a confecção de suas obras de história sobre a sociedade medieval, transformando-se em um dos grandes nomes da historiografia que soube fazer uso da literatura em favor dos estudos históricos. Segundo Diogo Roiz,

As fontes literárias que estiveram em O ano 1000, Domingo de Bouvines, Guilherme Marechal e na trilogia sobre As damas do século XII, como os principais documentos analisados pelo autor, foram interpretados não porque constituíssem uma fonte fidedigna sobre a “realidade do passado”, nem tampouco pela sua racionalidade, imparcialidade e objetividade, mas por que restaram como “o melhor testemunho”. Evidentemente, eles mesclavam realidade e imaginação, o acontecido e o imaginado, mas não era menos certo que o próprio período, envolvido pelas questões terrenas e divinas, também se fazia em meio a tais dilemas (ROIZ, 2012, p. 173).

Deste modo, o que Duby soube fazer magistralmente, foi mesclar fontes literárias com outros tipos de documentação ao mostrar “quais os canteiros da pesquisa histórica que poderiam ser abertos com esse tipo de documentação, por também permitir que fossem repensadas as representações da morte, o papel da mulher e a organização da ordem cavaleiresca na sociedade medieval” (Idem, p. 174).

Diogo da Silva Roiz demonstrou em mais uma produção de sua autoria que o campo da Teoria da História e os debates epistemológicos sobre a disciplina precisam ser feitos incessantemente, haja vista as diversas transformações ocorridas nesse campo disciplinar. Merece destaque a variada bibliografia utilizada pelo autor, demonstrando grande conhecimento e maturidade sobre o tema. Esse livro, no entanto, exige certo nível de conhecimento por parte do leitor, especialmente no debate em torno das crises que perturbaram as Ciências Humanas e especialmente a História após os anos de 1960, pois é bastante denso e profundo em seu conteúdo, especialmente a primeira parte da obra. No segundo momento, certamente será útil para aqueles que fazem uso da “companhia” da Literatura nos seus estudos históricos.

Referências

FONTANA, Josep. A história dos homens. Bauru: Edusc, 2004.

GAY, P. O estilo na História: Gibbon, Ranke, Macaulay, Burckhardt. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

GINZBURG, Carlo. Relações de Força. História, retórica, prova. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

REIS, José C. O desafio historiográfico. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010.

ROIZ, Diogo da Silva. Linguagem, cultura e conhecimento histórico: ideias, movimentos, obras e autores. 1. ed. Jundiaí/SP: Paco Editorial, 2012.

RÜSEN, J. Razão histórica. Teoria da História I: os fundamentos da ciência da história. Trad. Estevão de Rezende Martins. Brasília: Ed. UnB, 2001.

SKINNER, Quentin. Meaning and understanding in the History of Ideas. History and Theory, v. 8, n. 1, p. 3-53, 1969.

SOUZA, Vanderlei S. Autor, texto e contexto: a história intelectual e o ‘contextualismo lingüístico’ na perspectiva de Quentin Skinner. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais, v. 5 n. 4, dez. 2008.

VEYNE, Paul. Como se escreve a história e Foucault revoluciona a história. Trad. Alda Baltar e Maria Auxiliadora Kneipp. Brasília: Editora UnB, 1998.

WHITE, Hayden. A questão da narrativa na teoria contemporânea da história. Revista de História, Unicamp, n. 2/3, p. 47-89, 1991.

WHITE, Hayden. Trópicos do Discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Edusp, 1994.


Resenhista

Eduardo de Melo Salgueiro – Doutorando em História pela UFGD, Dourados/MS, Brasil. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

ROIZ, Diogo da Silva. Linguagem, cultura e conhecimento histórico: ideias, movimentos, obras e autores. Jundiaí/SP: Paco Editorial, 2012. Resenha de: SALGUEIRO, Eduardo de Melo. História e Literatura: discussões teóricas e possibilidades de estudo. Diálogos. Maringá, v. 17, n.2, p. 739-746, mai./ago. 2013. Acessar publicação original [DR]

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