Memórias e Mortes de Imperadores romanos (I a.C. – VI d.C.) | História (Unesp) | 2020

Memórias e Mortes são dois temas que constantemente impulsionam questionamentos e pesquisas nos estudos das humanidades. A morte gera uma ausência e, certas vezes, o espaço vazio deixado pelo morto é parcialmente preenchido com discursos (escritos, esculpidos, proclamados…) sobre tal pessoa. A “busca pelo passado”, e uma idealização que vem com ela, pode explicar a frequência desses assuntos em nossas pesquisas. Nesta circunstância, observamos que os diversos documentos produzidos durante o Império Romano proporcionam diferentes pontos de vista para pensarmos nossa relação com a morte e com a memória que é elaborada sobre ela.

Conforme o estudioso das ideias, Paolo Rossi, “a memória (como bem sabia David Hume) sem dúvida tem algo a ver não só com o passado, mas também com a identidade e, assim (indiretamente), com a própria persistência no futuro” (ROSSI, 2010, p. 24). Na procura por identificação, por vezes, celebramos e lamentamos a morte através da construção de memórias que geram modelos positivos ou negativos de conduta. Portanto, memórias são discursos organizados por autores que desejam sistematizar o passado para a sua compreensão no presente. Neste ínterim, a memória é um dos suportes para o passado. Refere-se à elaboração de imagens sobre um passado, ou seja, é uma “memória manipulada” (RICOEUR, 2007, p. 93). Longe de serem elaborações neutras, as memórias respondem, sim, a objetivos determinados – normalmente por grupos que administram uma pequena região ou mesmo um país inteiro.

Discursos que edificam heróis ou inimigos depois de suas mortes, são bastante úteis neste processo de entendimento do passado, afinal despertam os sentimentos das pessoas em torno de um líder – que deveria ser amado – ou de um indivíduo que deveria ser odiado.

Entre os antigos romanos, notamos uma série de documentos de natureza diversificada destinada a elaborar e/ou propagar memórias sobre os imperadores. Monumentos arquitetônicos, esculturas, panegíricos, laudações fúnebres, poesias, biografias, histórias, pinturas, entre outros, integram um amplo corpus documental que nos permite desenvolver pesquisas sobre o assunto e conhecer como aquela gente percebia a morte de um augusto e quais os sentimentos estavam envolvidos nesse contexto.

Para estudar os funerais dos imperadores romanos, Javier Arce propõe que “religión, culto, rito, política, iconografía, simbolismo y arqueología de la muerte, y, consecuentemente, teoría del poder y modos de expresión del mismo, se combinaban en un mismo argumento” (ARCE, 1998, p. 15). Nesta proposição, percebemos a pluralidade através da qual podemos analisar o tema da morte dos governantes romanos. E a memória que se construiu pela união de diversos desses elementos é o foco deste dossiê.

No dossiê Memórias e Mortes de Imperadores romanos (I a.C. – VI d.C.) publicamos frutos de pesquisas nacionais e internacionais sobre o tema proposto. O dossiê se inicia com o artigo Construindo as bases de um Império: a dicotomia entre as vidas e as mortes de Marco Antônio e Augusto, de Natália Frazão José. Ao considerar tanto as memórias quanto os esquecimentos, a autora se dedicou a estudar as imagens do imperador Augusto, relacionando-as com as de Marco Antônio. Associado à temática deste primeiro artigo encontra-se o terceiro desse dossiê, de Luciane Munhoz de Omena. No texto intitulado Dimensões espaciais entre morte, memória e experiências emocionais: um estudo de caso à luz do Mausoléu de Otaviano, a professora analisa os aspectos políticos, sagrados e emocionais produzidos nas imagens do Mausoléu de Otaviano.

Ainda no período do Principado de Augusto, temos o segundo artigo, de Thiago Eustáquio Araújo Mota, Divinização Heróica e Catasterismos na Poesia de Virgílio: Polissemia e Apropriações Poéticas do Cometa/Estrela de César. O autor aborda de forma exegética e hermenêutica as representações da morte e da apoteose astral de César nas obras virgilianas, fazendo-nos compreender apropriações poéticas a respeito da morte e da divinização de César.

O quarto artigo deste dossiê centra-se na época do imperador Tibério, sucessor de Augusto. Em Remmenbering Julio-Claudian Emperors as patrons of Literature, Joseph Farrell sugere uma nova leitura a respeito da literatura imperial iniciada sob o governo de Tibério e argumenta que, com este governante houve, sim, o incentivo a atividades literárias e uma literatura greco-romana.

Em seu artigo A repercussão das mortes de Germânico e Druso na atuação jurídica de Tibério segundo os Anais de Tácito, os olhares de Dominique Monge Rodrigues de Souza estão voltados ao estudo dos Anais de Tácito e para as acusações de maiestas e de repetundae ocorridas logo após as mortes de Germânico e Druso. Embora a autora debata a atuação jurídica o imperador Tibério, acreditamos que este artigo deva ser o quinto deste dossiê, pois traz análises realizadas sobre uma obra produzida na época de Trajano.

Também referente ao período Julio-Claudiano é o artigo O incesto e o monstro: Uma construção da memória do Imperador Calígula, de Marina Regis Cavicchioli. Nele, a autora problematiza os escritos de Suetônio que apresentaram Calígula como um mostro a partir das acusações de incesto deste imperador com suas irmãs. Em suas análises, Cavicchioli considera a moral romana relativa a esse tipo de relação sexual ilícita e sua judicialização.

Deivid Valério Gaia, por sua vez, apresenta o artigo O século de ouro e a “adoção do melhor”: considerações sobre a sucessão imperial durante o século II d.C. No referido trabalho, o autor investiga a questão da sucessão imperial baseada na “adoção do melhor” durante a terceira dinastia do Império Romano, a antonina, entendida por muitos autores antigos e modernos como a “época de ouro” do Império.

Da humildade à força: imagens de Trajano na literatura do Principado é o oitavo artigo do presente dossiê cuja autoria é de Andrea Lúcia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi. Aqui, a imagem de optimus princeps do imperador Trajano, produzida por Suetônio, Plínio, o Jovem, Dion de Prusa e Dion Cássio é examinada a partir dos antagonismos entre Trajano e Domiciano presentes nestas obras.

Érica Cristhyane Morais da Silva é a autora de História, memória e morte do imperador romano Gordiano III (III – V d.C.), a nona contribuição desse conjunto de artigos. Documentos arqueológicos e obras escritas por autores antigos compõem o corpus documental da historiadora. Ela se posiciona ao lado de pesquisadores os quais defendem que o busto imperial encontrado na Vila da Caserna, em Antioquia de Orontes, pertence ao imperador romano Gordiano III. Otávio Luiz Vieira Pinto trouxe os sassânidas para este dossiê no trabalho O Escabelo Púrpura: o cativeiro de Valeriano como paradigma da ascensão do Império Sassânida. O tardoantiquista sugere que a memória da captura e morte do imperador Valeriano pelas forças sassânidas pode ser compreendida como um elemento que ajudou a corroborar o poder sassânida no Oriente.

Nesta proposta, a morte do imperador romano é entendida como um sucesso persa e não como um fracasso romano. É interessante observar como o autor modifica seu olhar analítico do Ocidente para o Oriente.

História, presságios memoráveis e a morte do Imperador Juliano na obra de Amiano Marcelino (390-392 d.C.) é o artigo de Margarida Maria de Carvalho. O texto nos remete aos episódios ocorridos antes e durante a morte do imperador Juliano, foco da análise da pesquisadora que lança mão dos princípios da História das Emoções para refletir acerca do assunto proposto.

Intitulado A cidade, o imperador e os sentidos da memória: o governo de Valente em Antioquia (371-378), o décimo segundo artigo foi redigido por Gilvan Ventura da Silva. Ele analisa documentos escritos por Amiano Marcelino, por cronistas eclesiásticos e dados arqueológicos. Silva relativiza a memória negativa elaborada para o imperador Valente por estes autores, uma vez que este governante demonstrou sua generosidade com a cidade de Antioquia ao construir um fórum naquele local.

Helena Amália Papa também dedicou seu trabalho à memória do imperador Valente no artigo Memórias sobre o Imperador Valente nos testemunhos dos Padres Capadócios: a morte do imperador e denúncias contra o cristianismo ariano (Séc. IV d.C.). A partir de sua leitura das obras dos Padres Capadócios Basílio de Cesareia, Gregório de Nazianzo e Gregório de Nissa, a autora investiga a construção da imagem de Valente como um inimigo religioso dos nicenos. Além disso, critica as explicações puramente religiosas que são oferecidas por muitos autores antigos e modernos a respeito dos acontecimentos deste período da História.

Ainda no entorno do contexto do século IV d.C., duas autoras propõem leituras diferentes e complementares no que tange as laudações fúnebres do bispo milanês Ambrósio. Em Memorie d’imperatori vivi, orazioni funebri e preghiere in suffragio per i principi defunti: Ambrogio di Milano e le sue innovazioni, Rita Lizzi Testa destaca as elaborações ambrosianas sobre a vitória obtida pela intervenção divina atrelada à virtude imperial da pietas para legitimar o imperador Graciano e a dinastia teodosiana. Janira Feliciano Pohlmann, por sua vez, centra suas análises na memória edificada pelo sacerdote milanês para exaltar Graciano como um “santo imperador”, merecedor de um lugar no céu e distante da tradicional apoteose divina, até então promovida pela cultura greco-romana.

Já o foco do artigo de Manuel Rodríguez Gervás é a imagem do imperador Teodósio construída em diferentes momentos da História. Em Teodosio, construcción de una vida y muerte ejemplares, através do estudo das virtudes imperiais, Gervás investiga diversos elementos propagandísticos que ajudaram a fazer de Teodósio um dos grandes imperadores da Antiguidade Tardia e um modelo cristão.

O penúltimo artigo do dossiê é de autoria de Daniel de Figueiredo e intitula-se Memória da atuação do imperador Teodósio II na Controvérsia Nestoriana (Séc. V d.C.). O historiador examina discursos que elaboraram uma memória do imperador Teodósio II marcada pela falta de habilidade política-administrativa e pela indecisão. Em contrapartida, Figueiredo sugere que a alternância das decisões referentes à esfera religiosa, levadas a cabo por este governante, elucida estratégias para equilibrar os poderes daquele cenário.

Tal grupo de textos se encerra com o artigo “O insigne pai do orbe está vivo ou morreu?” A morte do Imperador Justiniano (565), segundo o Panegírico de Justino II de Coripo (566 – 568), de Renan Frighetto. A partir da análise do Panegírico escrito por Coripo e dedicado a Justino II, sucessor de Justiniano, Frighetto observa os significados políticos, sociais e culturais elaborados sobre o funeral de Justiniano. Com seus estudos voltados para os movimentos de renascimento e de renovação, o autor analisa a ideia de continuidade do poder imperial proposta por Coripo.

Os leitores deste dossiê perceberão que os autores abordaram os temas da memória e da morte dos imperadores romanos sob vários pontos de vista. Além de uma incursão por diferentes temporalidades e espacialidades, este dossiê possui uma concentração de diversas metodologias de trabalho para se lidar com a temática proposta e uma ampla gama documental. Os dezoito artigos aqui reunidos evidenciam a pluralidade do fazer História e ressaltam que é possível problematizar a construção de memórias sobre a morte. Ademais, destacam a organização do passado de maneira conveniente às situações do presente de quem elabora tal memória.

Referências

ARCE, Javier. Funus Imperatorum: los funerales de los emperadores romanos. Madrid: Alianza Editorial, 1998.

RICOUER, Paul. A memória, a História, o Esquecimento. Trad. Alain François et al. Campinas: Editora da Unicamp, 2007.

ROSSI, Paolo. O passado, a memória, o esquecimento: seis ensaios da história das ideias. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Editora da UNESP, 2010.


Organizadores

Margarida Maria de Carvalho – Professora Doutora em História Econômica/História Antiga Assistente MS-3 do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, campus de Franca, São Paulo, Brasil. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq – Nível 2. Pesquisadora da FAPESP (Processo: 2018/03323-9). E-mail: [email protected]

Rita Lizzi Testa – professora de História Romana na Università degli Studi di Perugia, no Departamento de Letras, Línguas, Literatura e Civilizações Antigas e Modernas. Perugia, Itália. E-mail: [email protected]

Janira Feliciano Pohlmann – Professora Doutora. Pós-doutoranda do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História na Universidade Estadual Paulista, Campus de Franca, São Paulo, Brasil. Pesquisadora do “Grupo do Laboratório de Estudos sobre o Império Romano da UNESP-Franca” e especialista nos estudos sobre cultura e poder na Antiguidade Tardia. E-mail: [email protected]


Referências desta apresentação

CARVALHO, Margarida Maria de; LIZZI TESTA, Rita; POHLMANN, Janira Feliciano. Apresentação. História (São Paulo). Franca, v.39, 2020. Acessar publicação original [DR]

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