Memórias, Patrimônios e Narrativas / Ofícios de Clio / 2020

Existem três tempos, disse Santo Agostinho no livro XI de suas Confissões, “o presente do passado, o presente do presente e o presente do futuro. (…) O presente do passado é a memória; o presente do presente é a intuição direta; o presente do futuro é a esperança.” Assim também podem ser pensadas as relações entre memória, patrimônio e narrativa, uma vez que são fenômenos que adquirem sentido no presente, e mobilizam a percepção que se tem de passado e de futuro, seja como reconhecimento ou como promessa (RICOEUR, 2007). No mesmo sentido, a dimensão narrativa que envolve as noções de memória e de patrimônio lança luz sobre diferentes zonas de conflito e de reivindicações identitárias, manifestadas em lugares, discursos e celebrações.

Da mesma forma, cabe lembrar que a memória também é construída por meio de narrativas, que constituem discursos e organizam experiências, de modo a dar sentido à relação que uma coletividade estabelece com o seu passado. Essa relação está presente não apenas naquilo que se diz do passado, mas nos lugares, bens, saberes e fazeres reconhecidos como patrimônios.

Ainda que a noção de patrimônio, como herança, remonte a Antiguidade Clássica, é a sua dimensão política e suas interfaces sociais e culturais que interessam a esta discussão. De acordo com Josep Ballart Hernandez, o patrimônio é resultado de um ou mais processos de atribuição de valores socialmente construídos, em suas palavras:

El valor es una cualidad añadida que los individuos atribuyen a ciertos objetos que los hacen merecedores de aprecio. Estamos, pues, ante un concepto relativo que aparece y desaparece en función de un mareo de referencias intelectuales, culturales, históricas y psicológicas, que varia según las personas, los grupos y la épocas. (HERNÁNDEZ et al.1996, p. 215)

Esses valores resultam, por sua vez, do conjunto de memórias compartilhadas por uma coletividade, bem como dos hábitos e costumes consolidados em suas narrativas, rituais e lugares de memória (NORA, 1993). Assim, quando se propõe a discussão em torno das relações estabelecidas entre memória, patrimônio e narrativa, o que se está realmente propondo é um olhar sobre a construção, a difusão e a consolidação desses valores, que, em última análise, refletem a sociedade que os reproduz.

Nessa perspectiva, a memória é percebida não apenas como a capacidade de reconhecer e acumular uma lembrança, mas também como um processo de compartilhamento de representações sociais, as quais se manifestam de diferentes formas, desde o estabelecimento de cultos e práticas religiosas, até a superação de traumas e a reivindicação identitária. Dessa forma, como afirma Joel Candau (2012, p. 19), “Não há busca identitária sem memória e, inversamente, a busca memorial é sempre acompanhada de um sentimento de identidade”.

A importância da narrativa como um elemento de coesão tanto nos processos de patrimonialização, quanto nas buscas memoriais se faz evidente nos artigos que compõem este dossiê, demonstrando que a narrativa não se restringe ao gesto do testemunho, mas está imbricada nas práticas sociais e nos costumes consolidados por elas. Afinal, como afirma Bruner (1997, p. 152) “nuestra experiencia de los asuntos humanos viene a tomar la forma de las narraciones que usamos para contar cosas sobre ellos”.

Os artigos que compõem este dossiê discutem, cada um à sua maneira, as relações entre patrimônio, memória e narrativa. Podendo ser divididos em dois grupos: o primeiro, composto por artigos que discutem essas relações pelo viés da narrativa e dos seus desdobramentos como rituais e tradições; o segundo, composto por artigos que discutem a cultura material, expondo o modo como as coletividades se relacionam com as materialidades do seu passado. A seguir, conheça um pouco sobre cada um deles.

No artigo “Escrita, biografia e sensibilidade: o discurso da memória soviética de Svetlana Aleksiévitch como um problema historiográfico”, João Camilo Grazziotin Portal, mestrando da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) chama a atenção para a necessidade de se pensar o indivíduo como um elemento fundamental na construção da narrativa histórica, e o faz por meio de uma leitura crítica da obra de Svetlana Aleksiévitch. Nessa perspectiva, o autor discute os usos da memória enquanto fonte para o gênero literário testemunhal, abordando as noções de verdade e de testemunho no intricado limite entre a História, a Memória e a Literatura.

Com o mesmo propósito de buscar o indivíduo na construção da narrativa histórica, Vanessa dos Santos Bernardes, mestranda do Programa de Pós-Graduação (PPG) da Universidade Federal de Pelotas, em seu artigo intitulado “De soldado a santo: a história de Maximiano Domingos do Espírito Santo. ‘O homem com a grandeza de um coração bem formado’”, apresenta-nos a trajetória biográfica de um santo popular e seu legado para o imaginário social fronteiriço. Nesse artigo a noção de memória é discutida tanto em relação ao ritual de visitação / adoração ao túmulo de Maximiano, como ao compartilhamento de representações sociais referentes a sua importância para o protagonismo negro na região.

As narrativas religiosas e os rituais que as envolvem, também protagonizam o artigo “Narrativas da religiosidade popular em Bonito -MS: o mito de Sinhozinho, o santo (1940-2018)”, sob a autoria da doutoranda pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Layanna Sthefanny Freitas do Carmo. Com um olhar sensível à religiosidade popular e à dimensão mítica das narrativas sobre Sinhozinho, a autora expõe a persistência da memória pela tradição oral, bem como a importância de se considerar a literatura local como fonte.

Em “A comemoração como lugar de disputa: um estudo das mobilizações do passado pelos povos indígenas nas Comemorações dos ‘500 anos do Brasil’ (2000)”, Pedro Henrique Batistella, mestrando da UFRGS, apresenta uma profícua discussão sobre os usos políticos do passado no contexto de disputa pela memória que caracterizou as comemorações dos “500 anos do Brasil”. Com um olhar voltado às ações do e sobre o movimento indígena, o autor expõe as políticas de comemorações em suas dimensões de classe, raça, gênero e status de cidadania.

As questões metodológicas que envolvem a compreensão contemporânea dos discursos sobre gênero e sexualidade são o mote do artigo “Agripina e o diálogo com o poder: reflexões sobre gênero e sexualidade em / na Roma Antiga”, sob autoria de Caroline Coelho, aluna de graduação em História da UFRJ. Ao discutir a importância de Agripina como mulher politicamente ativa na biografia de Nero, a autora expõe as formas de poder que permeavam as relações de gênero no Império, bem como os silenciamentos e distorções acerca da construção da imagem de Agripina e das narrativas construídas sobre ela.

Os conflitos de memória e os processos de reivindicação memorial relativos a eventos traumáticos da história recente brasileira são as principais temáticas trabalhadas pelo mestrando da UNICENTRO, Bruno César Pereira, em seu artigo intitulado “O Massacre do Carandiru: entre apagamentos e exclusões, uma disputa pela memória”. Com o propósito de compreender as relações de disputa que envolvem as diferentes narrativas sobre o massacre do Carandirú, o autor busca, na produção bibliográfica e audiovisual produzida sobre o evento, expor as contradições existentes entre essas narrativas, bem como demonstrar as relações de poder e os silenciamentos decorrentes da consolidação dessas narrativas.

No artigo “Aproximação entre dois patrimônios: a construção narrativa dos Conventos Franciscanos nas Crônicas da Ordem no Período Colonial”, sob autoria de Rafael Ferreira Costa, também do PPG da UFPEL, a relação entre narrativa e patrimônio se dá no âmbito da escrita, isto é, na relevância do conhecimento preservado nas Crônicas Clássicas da Ordem dos Frades Menores de São Francisco no Brasil, para a compreensão dos processos de patrimonialização de seu espólio construtivo. O autor desenvolve, assim, uma discussão em torno do valor patrimonial das Crônicas e das edificações pertencentes à Ordem, expondo as construções narrativas que as conectam.

A relação entre os imigrantes espanhóis e a cidade de Belém do Pará, construída desde o processo migratório iniciado no século XIX, é o tema tratado por Aline de Kassia Malcher Lima, mestranda da Universidade Federal do Pará (UFPA), no artigo intitulado “Belém dos Imigrantes: espanhóis na capital paraense (1890-1920)”. Dessa forma, a autora propõe uma reflexão sobre a relevância das redes de sociabilidade e solidariedade construídas por esses imigrantes no cenário socioeconômico de Belém.

A relação entre cultura material e memória é o mote do artigo intitulado “Alinhavando as memórias: a apropriação do vestuário como objeto de recordação”, sob autoria de Laiana Pereira da Silveira, mais uma componente do PPG da UFPEL. Nele a autora discute a importância do vestuário como um objeto de recordação, sobre qual são estabelecidos vínculos identitários e de pertencimento. No mesmo sentido, a autora evidencia o papel evocador de memórias exercido pelo vestuário, enquanto objeto cotidiano que acompanha os indivíduos por toda a vida.

O necessário diálogo entre a Arqueologia e a História, para uma melhor compreensão dos processos de ocupação do território e de construção das estruturas sociais sobre as quais a sociedade brasileira está baseada, configura o mote do artigo intitulado “Cumaú ou Santo Antônio? Uma Abordagem Histórica Sobre o Forte no Igarapé da Fortaleza – AP”, sob autoria de Diovani Furtado da Silva, mestre pela Universidade Federal do Amapá (UNIFAP). Nele, o autor expõe a complexidade das narrativas construídas sobre o objeto analisado, isto é, o Forte Português construído sobre os vestígios do Forte Inglês, que por sua vez, foi construído junto a um assentamento indígena.

No artigo intitulado “Museu Imperial: narrar entre as reticências da memória e as exclamações da História”, Priscila Lopes d’Avila Borges, doutoranda da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), discute a relação entre memória, narrativa e patrimônio sob a perspectiva da educação em museus, questionando o uso pedagógico do museu e expondo os silenciamentos que podem decorrer de práticas equivocadas no relacionamento público-museu. O museu, enquanto lugar de memória, é apresentado pela autora como um universo potencial de aprendizagem, quando reconhecido como um campo de disputa e tensão entre memória e esquecimento.

Uma abordagem semelhante, relativa a comunicação entre público e instituições de salvaguarda, ou gestores patrimoniais, pode ser observada no artigo intitulado “A Importância do Inventário Participativo na Preservação do Patrimônio Cultural”, sob autoria da mestranda pela Universidade Federal do Pernambuco, Emanuelly Mylena Velozo Silva. Nele, a autora chama a atenção para a importância do inventário participativo como um instrumento cultural que aproxima sociedade civil e Estado ao longo dos processos de reconhecimento e salvaguardada do Patrimônio Cultural. Da mesma forma, aponta para a contribuição dessa forma de inventário para a valorização de tradições territórios e saberes negligenciados por formas mais convencionais de registro.

Ainda dentro de uma perspectiva crítica em relação à comunicação entre instituições de memória e seus públicos, o artigo “A pedagogia da memória através dos comentários do TripAdvisor: análise do Archivo Provincial de la Memoria, Argentina”, sob autoria de Carolina Gomes Nogueira, mestranda do PPG da UFPEL, propõe uma reflexão acerca da pedagogia da memória enquanto uma estratégia educativa adotada pelo Archivo Provincial de la Memoria, e seus desdobramentos nos discursos difundidos no ciberespaço. Assim, a autora traz para o campo do debate as conexões entre políticas de memória e justiça de transição, bem como sua relevância para a relação estabelecida entre os visitantes e a instituição de salvaguarda.

Por fim, cabe ressaltar que, como afirma Carlo Ginzburg (2007, p.8), “entre os testemunhos, seja os narrativos, seja os não narrativos, e a realidade testemunhada existe uma relação que deve ser repetidamente analisada”, e esta relação se faz ver, direta ou indiretamente, nas muitas formas como os indivíduos e as coletividades se relacionam com o seu passado. Os artigos que compõem este dossiê apresentam uma gama diversa dessas relações e, assim, contribuem para uma melhor compreensão do mundo enquanto espaço comum, neste tempo entre a memória e a esperança.

Referências

AGOSTINHO, Santo, Bispo de Hipona. Confissões. Tradução de Frederico Ozanam Pessoa de Barros. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.

BRUNER, Jerome. La Educación Puerta de la Cultura. Madri: Visor, 1997.

CANDAU, Joel. Memória e Identidade. São Paulo: Contexto, 2012.

GINZBURG, Carlo. O Fio e os Rastros: Verdadeiro, Falso, Fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

HERNÁNDEZ, Josep Ballart et al. El valor del patrimônio histórico. Complutum Extra, 6(11), 1996. P. 215-224. https: / / revistas.ucm.es / index.php / CMPL / article / view / CMPL9696330215A / 29835 Último acesso em 05 / 05 / 2020

MENDOZA GARCÍA, Jorge. «Las formas del recuerdo. La memoria narrativa». Athenea digital, [en línea], 2004, n.º 6, https: / / www.raco.cat / index.php / Athenea / article / view / 34157 [Consulta: 20-09- 2020].

RICOEUR, Paul. A Memória, a História, o Esquecimento. Campinas: Editora Unicamp, 2007.

Cristiéle Santos de Souza – Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural / UFPel.

Isabel Cristina Bernal Vinasco – Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural / UFPel.


SOUZA, Cristiéle Santos de; VINASCO, Isabel Cristina Bernal. Apresentação. Revista Discente Ofícios de Clio, Pelotas -RS, v.5, n. 8, jan./jun., 2020. Acessar publicação original [DR]

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