Memórias, Patrimônios e Narrativas / Ofícios de Clio / 2020

Existem três tempos, disse Santo Agostinho no livro XI de suas Confissões, “o presente do passado, o presente do presente e o presente do futuro. (…) O presente do passado é a memória; o presente do presente é a intuição direta; o presente do futuro é a esperança.” Assim também podem ser pensadas as relações entre memória, patrimônio e narrativa, uma vez que são fenômenos que adquirem sentido no presente, e mobilizam a percepção que se tem de passado e de futuro, seja como reconhecimento ou como promessa (RICOEUR, 2007). No mesmo sentido, a dimensão narrativa que envolve as noções de memória e de patrimônio lança luz sobre diferentes zonas de conflito e de reivindicações identitárias, manifestadas em lugares, discursos e celebrações.

Da mesma forma, cabe lembrar que a memória também é construída por meio de narrativas, que constituem discursos e organizam experiências, de modo a dar sentido à relação que uma coletividade estabelece com o seu passado. Essa relação está presente não apenas naquilo que se diz do passado, mas nos lugares, bens, saberes e fazeres reconhecidos como patrimônios.

Ainda que a noção de patrimônio, como herança, remonte a Antiguidade Clássica, é a sua dimensão política e suas interfaces sociais e culturais que interessam a esta discussão. De acordo com Josep Ballart Hernandez, o patrimônio é resultado de um ou mais processos de atribuição de valores socialmente construídos, em suas palavras:

El valor es una cualidad añadida que los individuos atribuyen a ciertos objetos que los hacen merecedores de aprecio. Estamos, pues, ante un concepto relativo que aparece y desaparece en función de un mareo de referencias intelectuales, culturales, históricas y psicológicas, que varia según las personas, los grupos y la épocas. (HERNÁNDEZ et al.1996, p. 215)

Esses valores resultam, por sua vez, do conjunto de memórias compartilhadas por uma coletividade, bem como dos hábitos e costumes consolidados em suas narrativas, rituais e lugares de memória (NORA, 1993). Assim, quando se propõe a discussão em torno das relações estabelecidas entre memória, patrimônio e narrativa, o que se está realmente propondo é um olhar sobre a construção, a difusão e a consolidação desses valores, que, em última análise, refletem a sociedade que os reproduz.

Nessa perspectiva, a memória é percebida não apenas como a capacidade de reconhecer e acumular uma lembrança, mas também como um processo de compartilhamento de representações sociais, as quais se manifestam de diferentes formas, desde o estabelecimento de cultos e práticas religiosas, até a superação de traumas e a reivindicação identitária. Dessa forma, como afirma Joel Candau (2012, p. 19), “Não há busca identitária sem memória e, inversamente, a busca memorial é sempre acompanhada de um sentimento de identidade”.

A importância da narrativa como um elemento de coesão tanto nos processos de patrimonialização, quanto nas buscas memoriais se faz evidente nos artigos que compõem este dossiê, demonstrando que a narrativa não se restringe ao gesto do testemunho, mas está imbricada nas práticas sociais e nos costumes consolidados por elas. Afinal, como afirma Bruner (1997, p. 152) “nuestra experiencia de los asuntos humanos viene a tomar la forma de las narraciones que usamos para contar cosas sobre ellos”.

Os artigos que compõem este dossiê discutem, cada um à sua maneira, as relações entre patrimônio, memória e narrativa. Podendo ser divididos em dois grupos: o primeiro, composto por artigos que discutem essas relações pelo viés da narrativa e dos seus desdobramentos como rituais e tradições; o segundo, composto por artigos que discutem a cultura material, expondo o modo como as coletividades se relacionam com as materialidades do seu passado. A seguir, conheça um pouco sobre cada um deles.

No artigo “Escrita, biografia e sensibilidade: o discurso da memória soviética de Svetlana Aleksiévitch como um problema historiográfico”, João Camilo Grazziotin Portal, mestrando da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) chama a atenção para a necessidade de se pensar o indivíduo como um elemento fundamental na construção da narrativa histórica, e o faz por meio de uma leitura crítica da obra de Svetlana Aleksiévitch. Nessa perspectiva, o autor discute os usos da memória enquanto fonte para o gênero literário testemunhal, abordando as noções de verdade e de testemunho no intricado limite entre a História, a Memória e a Literatura.

Com o mesmo propósito de buscar o indivíduo na construção da narrativa histórica, Vanessa dos Santos Bernardes, mestranda do Programa de Pós-Graduação (PPG) da Universidade Federal de Pelotas, em seu artigo intitulado “De soldado a santo: a história de Maximiano Domingos do Espírito Santo. ‘O homem com a grandeza de um coração bem formado’”, apresenta-nos a trajetória biográfica de um santo popular e seu legado para o imaginário social fronteiriço. Nesse artigo a noção de memória é discutida tanto em relação ao ritual de visitação / adoração ao túmulo de Maximiano, como ao compartilhamento de representações sociais referentes a sua importância para o protagonismo negro na região.

As narrativas religiosas e os rituais que as envolvem, também protagonizam o artigo “Narrativas da religiosidade popular em Bonito -MS: o mito de Sinhozinho, o santo (1940-2018)”, sob a autoria da doutoranda pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Layanna Sthefanny Freitas do Carmo. Com um olhar sensível à religiosidade popular e à dimensão mítica das narrativas sobre Sinhozinho, a autora expõe a persistência da memória pela tradição oral, bem como a importância de se considerar a literatura local como fonte.

Em “A comemoração como lugar de disputa: um estudo das mobilizações do passado pelos povos indígenas nas Comemorações dos ‘500 anos do Brasil’ (2000)”, Pedro Henrique Batistella, mestrando da UFRGS, apresenta uma profícua discussão sobre os usos políticos do passado no contexto de disputa pela memória que caracterizou as comemorações dos “500 anos do Brasil”. Com um olhar voltado às ações do e sobre o movimento indígena, o autor expõe as políticas de comemorações em suas dimensões de classe, raça, gênero e status de cidadania.

As questões metodológicas que envolvem a compreensão contemporânea dos discursos sobre gênero e sexualidade são o mote do artigo “Agripina e o diálogo com o poder: reflexões sobre gênero e sexualidade em / na Roma Antiga”, sob autoria de Caroline Coelho, aluna de graduação em História da UFRJ. Ao discutir a importância de Agripina como mulher politicamente ativa na biografia de Nero, a autora expõe as formas de poder que permeavam as relações de gênero no Império, bem como os silenciamentos e distorções acerca da construção da imagem de Agripina e das narrativas construídas sobre ela.

Os conflitos de memória e os processos de reivindicação memorial relativos a eventos traumáticos da história recente brasileira são as principais temáticas trabalhadas pelo mestrando da UNICENTRO, Bruno César Pereira, em seu artigo intitulado “O Massacre do Carandiru: entre apagamentos e exclusões, uma disputa pela memória”. Com o propósito de compreender as relações de disputa que envolvem as diferentes narrativas sobre o massacre do Carandirú, o autor busca, na produção bibliográfica e audiovisual produzida sobre o evento, expor as contradições existentes entre essas narrativas, bem como demonstrar as relações de poder e os silenciamentos decorrentes da consolidação dessas narrativas.

No artigo “Aproximação entre dois patrimônios: a construção narrativa dos Conventos Franciscanos nas Crônicas da Ordem no Período Colonial”, sob autoria de Rafael Ferreira Costa, também do PPG da UFPEL, a relação entre narrativa e patrimônio se dá no âmbito da escrita, isto é, na relevância do conhecimento preservado nas Crônicas Clássicas da Ordem dos Frades Menores de São Francisco no Brasil, para a compreensão dos processos de patrimonialização de seu espólio construtivo. O autor desenvolve, assim, uma discussão em torno do valor patrimonial das Crônicas e das edificações pertencentes à Ordem, expondo as construções narrativas que as conectam.

A relação entre os imigrantes espanhóis e a cidade de Belém do Pará, construída desde o processo migratório iniciado no século XIX, é o tema tratado por Aline de Kassia Malcher Lima, mestranda da Universidade Federal do Pará (UFPA), no artigo intitulado “Belém dos Imigrantes: espanhóis na capital paraense (1890-1920)”. Dessa forma, a autora propõe uma reflexão sobre a relevância das redes de sociabilidade e solidariedade construídas por esses imigrantes no cenário socioeconômico de Belém.

A relação entre cultura material e memória é o mote do artigo intitulado “Alinhavando as memórias: a apropriação do vestuário como objeto de recordação”, sob autoria de Laiana Pereira da Silveira, mais uma componente do PPG da UFPEL. Nele a autora discute a importância do vestuário como um objeto de recordação, sobre qual são estabelecidos vínculos identitários e de pertencimento. No mesmo sentido, a autora evidencia o papel evocador de memórias exercido pelo vestuário, enquanto objeto cotidiano que acompanha os indivíduos por toda a vida.

O necessário diálogo entre a Arqueologia e a História, para uma melhor compreensão dos processos de ocupação do território e de construção das estruturas sociais sobre as quais a sociedade brasileira está baseada, configura o mote do artigo intitulado “Cumaú ou Santo Antônio? Uma Abordagem Histórica Sobre o Forte no Igarapé da Fortaleza – AP”, sob autoria de Diovani Furtado da Silva, mestre pela Universidade Federal do Amapá (UNIFAP). Nele, o autor expõe a complexidade das narrativas construídas sobre o objeto analisado, isto é, o Forte Português construído sobre os vestígios do Forte Inglês, que por sua vez, foi construído junto a um assentamento indígena.

No artigo intitulado “Museu Imperial: narrar entre as reticências da memória e as exclamações da História”, Priscila Lopes d’Avila Borges, doutoranda da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), discute a relação entre memória, narrativa e patrimônio sob a perspectiva da educação em museus, questionando o uso pedagógico do museu e expondo os silenciamentos que podem decorrer de práticas equivocadas no relacionamento público-museu. O museu, enquanto lugar de memória, é apresentado pela autora como um universo potencial de aprendizagem, quando reconhecido como um campo de disputa e tensão entre memória e esquecimento.

Uma abordagem semelhante, relativa a comunicação entre público e instituições de salvaguarda, ou gestores patrimoniais, pode ser observada no artigo intitulado “A Importância do Inventário Participativo na Preservação do Patrimônio Cultural”, sob autoria da mestranda pela Universidade Federal do Pernambuco, Emanuelly Mylena Velozo Silva. Nele, a autora chama a atenção para a importância do inventário participativo como um instrumento cultural que aproxima sociedade civil e Estado ao longo dos processos de reconhecimento e salvaguardada do Patrimônio Cultural. Da mesma forma, aponta para a contribuição dessa forma de inventário para a valorização de tradições territórios e saberes negligenciados por formas mais convencionais de registro.

Ainda dentro de uma perspectiva crítica em relação à comunicação entre instituições de memória e seus públicos, o artigo “A pedagogia da memória através dos comentários do TripAdvisor: análise do Archivo Provincial de la Memoria, Argentina”, sob autoria de Carolina Gomes Nogueira, mestranda do PPG da UFPEL, propõe uma reflexão acerca da pedagogia da memória enquanto uma estratégia educativa adotada pelo Archivo Provincial de la Memoria, e seus desdobramentos nos discursos difundidos no ciberespaço. Assim, a autora traz para o campo do debate as conexões entre políticas de memória e justiça de transição, bem como sua relevância para a relação estabelecida entre os visitantes e a instituição de salvaguarda.

Por fim, cabe ressaltar que, como afirma Carlo Ginzburg (2007, p.8), “entre os testemunhos, seja os narrativos, seja os não narrativos, e a realidade testemunhada existe uma relação que deve ser repetidamente analisada”, e esta relação se faz ver, direta ou indiretamente, nas muitas formas como os indivíduos e as coletividades se relacionam com o seu passado. Os artigos que compõem este dossiê apresentam uma gama diversa dessas relações e, assim, contribuem para uma melhor compreensão do mundo enquanto espaço comum, neste tempo entre a memória e a esperança.

Referências

AGOSTINHO, Santo, Bispo de Hipona. Confissões. Tradução de Frederico Ozanam Pessoa de Barros. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.

BRUNER, Jerome. La Educación Puerta de la Cultura. Madri: Visor, 1997.

CANDAU, Joel. Memória e Identidade. São Paulo: Contexto, 2012.

GINZBURG, Carlo. O Fio e os Rastros: Verdadeiro, Falso, Fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

HERNÁNDEZ, Josep Ballart et al. El valor del patrimônio histórico. Complutum Extra, 6(11), 1996. P. 215-224. https: / / revistas.ucm.es / index.php / CMPL / article / view / CMPL9696330215A / 29835 Último acesso em 05 / 05 / 2020

MENDOZA GARCÍA, Jorge. «Las formas del recuerdo. La memoria narrativa». Athenea digital, [en línea], 2004, n.º 6, https: / / www.raco.cat / index.php / Athenea / article / view / 34157 [Consulta: 20-09- 2020].

RICOEUR, Paul. A Memória, a História, o Esquecimento. Campinas: Editora Unicamp, 2007.

Cristiéle Santos de Souza – Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural / UFPel.

Isabel Cristina Bernal Vinasco – Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural / UFPel.


SOUZA, Cristiéle Santos de; VINASCO, Isabel Cristina Bernal. Apresentação. Revista Discente Ofícios de Clio, Pelotas -RS, v.5, n. 8, jan./jun., 2020. Acessar publicação original [DR]

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Coleções, museus e patrimônios das culturas negras / Revista Mosaico / 2016

O título desta apresentação poderia ser As Cores do Silêncio e os Gostos do Silenciamento, empreendendo duas sinestesias para insinuar temáticas como a questão racial, os silêncios da história, a poética e a política da memória. Debate que força passagem quando pensamos nas heranças africanas diluídas no Atlântico e manifestas em coleções, museus e patrimônios ou, em outros termos, como essa gama de expressões integrou um processo de produção de sentidos silenciados (ORLANDI, 2007).

São esses sentidos que atravessam o presente dossiê da Revista Mosaico. Os bens culturais de matriz africana foram e são constantemente silenciados em algumas práticas que legitimam ações sobre qual leitura do passado e o monopólio do direito de falar sobre o passado. São colocados em silêncio constitutivo (quando uma prática ou palavra silencia outra) e como silêncio da censura (o que é proibido de ser dito ou expresso) (ORLANDI, 2007). Situação que ganha potência quando analisada nas tramas em torno do campo do patrimônio – compreendido como um campo de poder, que prioriza determinados repertórios culturais e cujo conflito é o motor – e o modo como essas tensões reverberam na escrita da História.

A questão é que são esses mesmos mecanismos seletivos que iluminam percursos, nomes e legados, os utilizados para a invenção do anonimato, a fabricação da desimportância, a instituição de vazios e silêncios. Por isso, investigar presenças consiste em um estudo das ausências, fruto de uma engenhosa operação. Dessa forma, os silêncios podem sinalizar “não sua inexistência de fato, mas sua presença como parte do ‘inenarrável’, estando situadas, por constrições várias, ‘fora do acontecimento’” (FANINI, 2009, p. 16). Interditos que são reconhecidos como rastros, indícios que possibilitarão ler os testemunhos a contrapelo, problematizando as intenções de quem os construiu.

Portanto, o intuito do dossiê foi reunir artigos que problematizassem questões ligadas às coleções, aos museus e aos patrimônios das culturas africanas e de sua diáspora visando refletir sobre os usos plurais das coleções, as políticas da memória e as diferentes escritas da História, das Ciências Sociais e da Museologia, priorizando trabalhos teóricos e estudos de caso que abordassem as culturas negras em suas diferentes dimensões. Pretendeu, assim, acolher reflexões sobre colecionismo, cultura material, trajetórias de vida, saberes, discursos e relações de poder com enfoque para as expressões culturais afro-brasileiras, bem como para as políticas de patrimonialização daí resultantes evitando naturalizar ausências, subrepresentações e exotismos (SANTOS, 2005).

Do mesmo modo, o intuito foi colocar em circulação experiências diluídas ou tidas como insignificantes no processo de elaboração da memória coletiva, a partir de uma política de memória em que se formariam vozes em dissonância ou vozes em falsete na escrita da Nação. Esse rememorar cria espaços excêntricos que permite imaginar alternativas de ser e de saber: “da mesma forma, aponta para a abertura de um lugar crítico que lhes permite interrogar, redefinir e afirmar uma memória que se instaura a partir da tensão entre a pluralidade tonal e a singularidade das vivências” (BEZERRA, 2007, p. 37).

No caso das expressões culturais da diáspora negra no Brasil isso ganha ressonância quando percebemos “a repetição de lugares comuns, conceitos e preconceitos, reduzindo e desqualificando a força e a presença de matrizes africanas na construção de nossas formas de vida, trabalho sensibilidades etc.”, cujas bases “sofrem deslocamentos e desviam pontos de confluência transculturais”, perdendo de vista “negociações, transformações, incorporações e inovações nas sociabilidades de tempos e espaços brasileiros” (CUNHA, 2006, p. 1-2).

Se reconhecermos os silêncios em torno da Coleção de Magia Negra, as tensões que envolveram o tombamento do Terreiro da Casa Branca, em Salvador (BA) (VELHO, 2006), e que é recente entre nós, especialmente a partir do registro do patrimônio intangível, a salvaguarda das expressões culturais de matriz africana e de outros povos constitutivos de nossa identidade, é inegável a importância que o silenciamento enquanto categoria analítica assume no campo das políticas patrimoniais brasileiras. Talvez, por isso, constitua uma das questões centrais que atravessam os artigos deste dossiê temático.

Essa problemática é inaugurada no artigo “Acepção de ruídos: (re)produção e arquivamento da Coleção Perseverança do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas”, de autoria de Débora Rejane Viana Sobral. Tendo como objeto as tramas acionadas pelo catálogo ilustrado da coleção constituída a partir das perseguições e repressões às casas de Xangô em Alagoas no início do século XX, o texto analisa a construção dos discursos sobre os artefatos de origem afro-brasileira, as lacunas e os limites na fabricação da coleção e o modo como a instituição detentora do acervo manipula e se legitima através do uso dessa informação. Desse modo, o silenciamento não foi imposto apenas por ocasião do “Quebra de 1912” que obrigou os terreiros a exercerem um “candomblé em silêncio” (RAFAEL, 2004), mas assume outras dinâmicas nos processos de musealização e tratamento da informação em torno desses artefatos.

O artigo “Mulheres negras e a discussão de gênero na construção das narrativas nos museus de Salvador”, de Joana Angélica Flores Silva, apresenta significativas provocações. Visando perceber a representação das mulheres negras nos museus históricos da primeira capital do país, problematiza como em determinadas exposições de longa duração é reincidente uma imagem colonizadora da mulher branca sobre a imagem colonizada da mulher negra. Dessa forma, além de refletir sobre outras narrativas que evidenciem de forma não discriminatória a participação de distintos sujeitos nos espaços de memória, também contribui para que possamos percorrer os silenciamentos que transformam as mulheres negras em silêncios dos “silêncios da história”, para dialogarmos com a expressão de Michelle Perrot (2005).

Ainda com relação às práticas de poder instituídas na intersecção entre raça e campo de produção simbólico tendo como eixo os museus e suas reverberações, o texto “A transitoriedade de um objeto: os balangandãs dos séculos XVIII e XIX e suas ressignificações na contemporaneidade”, de Sura Souza Carmo, compara a joalheria afro-brasileira que integra a coleção do Museu Carlos Costa Pinto, em Salvador-BA, e as peças que são atualmente comercializadas na capital baiana. Entre interessantes questionamentos destaca a construção da exoticidade em um museu elitista da cidade de Salvador e o silenciamento sobre protagonismo da mulher negra na Bahia escravocrata e as invenções da liberdade. Nesse aspecto, ao silenciar a violência, a exposição museológica empreenderia outra violência, reforçando determinadas imagens etnocêntricas sobre o lugar da mulher negra dos séculos XIX e XX e, assim, contribuindo para determinados protocolos de leitura estigmatizadores no século XXI.

Situações que também podem ser evidenciadas na arte pública de matriz africana. Em “O silêncio dos atabaques? Arte pública de matriz africana e memória topográfica em perspectiva”, artigo de minha autoria, utilizo as categorias memória topográfica e arte pública para analisar as estratégias de silenciamento como uma forma de poder e de produção de significados no campo de produção simbólico. Citando diferentes exemplos, demonstro como a destruição da arte pública relacionada a essas expressões culturais de matriz africana, especialmente às religiões afro, se torna metáfora e metonímia do racismo e da intolerância religiosa na “batalha das memórias” que fabrica e imortaliza saberes, expressões, celebrações e lugares significativos para a memória nacional e local.

O artigo “A presença das culturas negras na arte moderna em Salvador e o discurso de baianidade”, de Neila Dourado Gonçalves Maciel também articula arte e expressões de matriz africana. Tendo como recorte o modernismo baiano empreendido por Carybé entre 1950 e 1970 problematiza a invenção da “baianidade”, juntamente com a literatura, música e outras linguagens discursivas. Nesse aspecto, demonstra as contradições na arte que torna visível determinadas memórias urbanas, especialmente relacionadas ao cotidiano de uma parcela da população negra, e, ao mesmo tempo, contribui para a invisibilidade dos sujeitos tornados objetos de discurso. Surge aquilo que a autora compreende ser uma estratégia visando forjar uma “frequência harmônica para narrativas dissonantes”.

Essas tensões também são explicitadas em outras expressões artísticas, a exemplo da literatura. O artigo “Literatura machadiana: um dos patrimônios culturais do Brasil e elemento de memória da população negra oitocentista”, de Murilo Chaves Vilarinho, explicita na obra de Machado de Assis alguns aspectos do quotidiano da população negra do oitocentos no Rio de Janeiro, destacando os impactos da escravidão e da Abolição da Escravatura por meio do olhar do escritor. Compreende, assim, que a literatura possibilita recompor os rastros apagados e relegados ao esquecimento, demonstrando a expressão estética como representação do real e como significativo documento que contribui para repensarmos a escrita da História.

Estratégia que também é analisada no texto “Cantilenas de Goiás: memória, gênero e patrimônios das culturas negras na obra de Regina Lacerda”, de Paulo Brito do Prado. Ao articular as adoções temáticas da autora goiana e as estratégias de mediação no espaço literário, analisa as táticas em prol de registrar, em seu projeto criador, determinadas memórias de mulheres negras e fragmentos das culturas afro-brasileiras. O artigo destaca na obra de Regina Lacerda, a despeito de seu lugar de fala e de certa visão etnocêntrica, fortes permanências das culturas indígena e afro-brasileira na fabricação da Cidade de Goiás como “berço da cultura goiana”. Além disso, sublinha como sua literatura e seus estudos no campo do folclore reverberam (como uma cantilena) o lugar das mulheres e dos legados africanos, personagens e práticas que preenchem o cotidiano de Goiás e que, na maioria das vezes, foram e são silenciados no concerto de vozes dissonantes que compõem a sinfonia da História.

O texto escolhido para encerrar o dossiê, “Capoeira e identidade negra na pós-modernidade: algumas considerações”, de Márcio Nunes de Abreu, parte de uma recente provocação feita pelo sociólogo Muniz Sodré ao admitir o capoeirista Mestre Camisa, mais “negro” do que muitos dos negros que conhecia. O trabalho discute os limites da subjetivação e da identificação cultural entre identidades dominantes e subalternas, indagando, a partir dos referenciais de Stuart Hall, os paradoxos da identidade cultural na pós-modernidade. Questões que atravessam os artigos anteriores e que reverberam o fortalecimento de identidades locais e a criação de novas identidades, com uma ampla gama de variações e identificações, mais políticas, plurais e diversas, ampliando o espectro de cores, sons e de gostos e resistindo às tentativas de silenciamento.

Este número da Revista Mosaico publica ainda três artigos livres cujas temáticas de algum modo reverberam os debates do dossiê, ao privilegiarem análises sobre discurso, diferença e poder. Isso pode ser observado nos textos “Trilhas da imaginação: compreendendo a construção histórica e social do ‘exotismo amazônico’ por uma leitura ecossistêmica comunicacional”, de Rafael de Figueiredo Lopes e Wilson de Souza Nogueira; “A interferência Norte-Americana na política interna brasileira: o caso do jornal A Noite”, de Pedro Henrique R. Magri; e “Histoire de La Folie: uma proto-análise teórico-metodológica do ponto de vista histórico”, de Ronivaldo de Oliveira Rego Santos.

Referências

BEZERRA, Kátia da Costa. Vozes em dissonância: mulheres, memória e nação. Florianópolis: Editora Mulheres, 2007.

CUNHA, Marcelo Nascimento Bernardo da. Teatro de memórias, palco de esquecimentos: culturas africanas e das diásporas negras em exposições. Tese (Doutorado em História), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006.

FANINI, Michele Asmar. Fardos e fardões: mulheres na Academia Brasileira de Letras (1897-2003). Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2009.

ORLANDI, Eni. As formas do silêncio no movimento dos sentidos. 6 ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.

PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru, SP: EDUSC, 2005.

RAFAEL, Ulisses Neves. Xangô Rezado Baixo: um estudo da perseguição aos Terreiros de Alagoas em 1912. Tese (Doutorado em Antropologia), Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2004.

SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Canibalismo da memória: o negro em museus brasileiros. Revista do Patrimônio, n. 31, 2005.

VELHO, Gilberto. Patrimônio, negociação e conflito. Mana, n. 12, 2006.

Clovis Carvalho Britto

Organizador


BRITTO, Clovis Carvalho. Apresentação. Revista Mosaico. Goiânia, v.9, n.2, jul. / dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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Patrimônios / Estudos Históricos / 2016

É surpreendente que Estudos Históricos não tivesse até hoje um número dedicado ao tema do patrimônio. Ainda que nos números dedicados aos Bens Culturais (38) e à Cultura Material (48) os debates sobre o patrimônio pudessem encontrar abrigo, faltava um número consagrado especificamente a esse campo de estudos marcadamente interdisciplinar, cada vez mais vasto e polifônico.

O texto de José Reginaldo Santos Gonçalves, O mal estar no patrimônio: identidade, tempo e destruição, publicado como colaboração especial no número 55, problematiza a “obsessão preservacionista” do nosso tempo e aponta para os “diferentes perfis semânticos” que a categoria patrimônio tem assumido em suas apropriações contemporâneas por movimentos sociais e grupos populares; pela indústria cultural e do turismo. Sem que essa articulação tenha sido planejada, a Aula Inaugural proferida por Gonçalves no Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais do CPDOC / FGV em 2015, que deu origem ao artigo, pode ser lida como a abertura de um debate que, sem nunca se fechar, encontra ressonância nos artigos que compõem o número 57.

Nosso objetivo ao propor os Patrimônios como tema foi, portanto, captar artigos que contemplassem discussões sobre políticas patrimoniais tanto no campo dos bens associados ao patrimônio histórico e artístico como no do chamado – não sem controvérsias – patrimônio imaterial ou intangível, bem como artigos que explorassem situações contemporâneas que articulam e agenciam discursos e práticas do campo patrimonial. Consideramos que os 13 artigos que integram o número correspondem plenamente a essa diretriz, compondo um mosaico de estudos extremamente vigoroso e sugestivo.

O artigo de Paulo Cesar Marins abre a revista com uma discussão acerca das políticas patrimoniais das últimas décadas, na qual são investigadas as tensões que cruzam o campo do patrimônio imaterial, os impasses colocados pelo instrumento de salvaguarda e os usos políticos da gramática instituída por essas novas políticas. A natureza inovadora dessas políticas contemporâneas é colocada em xeque no texto provocador de Marins.

O segundo artigo, de autoria de Márcia Chuva, explora de maneira original gestos que produziram, por meio de seleções e classificações, conjuntos de bens instituídos como patrimônio cultural. Enfrentando o desafio de aproximar contextos de espaço-tempo distintos, sem nunca borrar as diferenças, Chuva sugere que o olhar se desloque dos processos clássicos de consagração para o momento inaugural da viagem, entendida aqui como prática estruturante dos atributos que arquitetos e antropólogos pretenderam descobrir ou revelar.

O Rio de Janeiro, cidade que historicamente foi palco de disputas e embates que têm no discurso do patrimônio seu eixo articulador, é o cenário no qual se desenrolam as tramas de quatro artigos. O texto de Nina Bitar explora os mercados de abastecimento como objetos privilegiados sobre os quais se projetam concepções e discursos urbanísticos que, embasados por distintas visões do patrimônio, tanto os condenam como os consagram. As disputas de memória pelos significados atribuídos ao Cais do Valongo, opondo ou justapondo o poder público municipal e o movimento negro, são tema do artigo de Márcia Leitão Pinheiro e Sandra Sá Carneiro. As conexões entre o campo de disputas que se articula no espaço urbano e o mercado do turismo não escapam às autoras, e também estão presentes no artigo de Roberta Guimarães dedicado às Áreas de Proteção do Ambiente Cultural do Rio de Janeiro. Ambos os textos analisam, cada qual à sua maneira, o apelo à identidade cultural como categoria articuladora tanto para gestores urbanos como para movimentos sociais. Por fim, o artigo de Fernando Atique, que analisa a trajetória do Solar Monjope, construído nos anos 1920 no Jardim Botânico, desloca o olhar para os embates que nos anos 1970 cercaram sua demolição. A sociedade civil, aqui também, se contrapôs aos órgãos de preservação do patrimônio, deixando entrever – como no artigo de Nina Bitar – como preservação e destruição são linhas de força constantemente imbricadas e em permanente tensão.

Os museus também foram contemplados no número, sob duas perspectivas distintas. Clovis Carvalho Britto se detém na análise do discurso museológico acerca do cangaço e do lugar reservado às mulheres nessa narrativa. Dialogando com os estudos que têm se dedicado a problematizar os sentidos produzidos pelos itinerários museais, conecta esse debate ao campo do patrimônio e da história. No caso do artigo de Lucília Santos Siqueira, o olhar se detém sobre as edificações que abrigam museus, deslocando-se o foco para os processos de tombamento, para as conexões entre os espaços e as coleções que eles abrigam e para a recepção desses bens.

O patrimônio material, a “pedra e cal”, como ficou conhecido todo um campo de políticas no âmbito do patrimônio e de seus técnicos, não poderia estar melhor representado: Ouro Preto, espaço por excelência de expressão dessas políticas, é objeto do artigo de Leila Bianchi Aguiar, que problematiza os impasses colocados pela mudança, vale dizer pelo próprio tempo, na gestão de um bem tão complexo como paradigmático. Em outro contexto nacional, e remetendo a outro tempo histórico, Olanda Vilaça analisa a casa minhota como patrimônio cultural do universo rural português a partir do exame de inventários, testamentos e fotografias.

A dimensão edificada é ainda objeto do artigo de Verônica Pereira dedicado à creche Condessa Marina Crespi. Nesse caso, porém, não está em jogo a singularidade ou a antiguidade do bem. Muito ao contrário, a categoria patrimônio cultural industrial, articulada pelos agentes que se mobilizam em disputas que têm a cidade de São Paulo como cenário, subverte o discurso da excepcionalidade para apostar no das identidades sociais.

A natureza tampouco escapou ao discurso patrimonial e aos dilemas associados à preservação, como nos convida a refletir o artigo de Annelise Fernandez sobre a criação do Parque Estadual da Pedra Branca, no Rio de Janeiro. Sob nova perspectiva, o embate entre natureza e cultura se atualiza nos meandros que envolvem a patrimonialização dos dois termos dessa equação.

Por fim, o artigo de Joana Passos, Tânia Nascimento e João Carlos Nogueira discute, a partir de um estudo de caso, a ressonância dos patrimônios da cultura afro-brasileria em um município do estado de Santa Catarina. O artigo aborda como as representações do poder público e da sociedade acerca do patrimônio estão imbricadas nas dinâmicas de auto-representação, permitindo perscrutar posições relativas de diferentes atores sociais sob a ótica das relações raciais.

O número 57 conta ainda com dois textos que enriquecem sobremaneira a publicação. O artigo do filósofo alemão Hermann Lübbe, pela primeira vez traduzido para o português, incide sobre as dinâmicas da memória a partir da discussão acerca da consciência histórica do nosso tempo, repercutindo amplamente os debates sobre o patrimônio tratados pelos artigos.

A entrevista com Luiz Felipe de Alencastro fecha a revista com chave de ouro: um convite para conhecer novas abordagens da historiografia pelas mãos de um historiador e cientista político que atravessou fronteiras.

Luciana Heymann Quillet – Professora da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV).

Marco Aurélio Vannucchi Leme de Mattos – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV).

Paulo Fontes – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV).

Os editores


HEYMANN, Luciana Quillet; MATTOS, Marco Aurélio Vannucchi Leme de; FONTES, Paulo. Editorial. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.29, n.57, jan. / abr. 2016. Acessar publicação original [DR]

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Perspectivas Teóricas sobre Museus, Patrimônios e Coleções | Anais do Museu Histórico Nacional | 2011

Referências desta apresentação

[Perspectivas Teóricas sobre Museus, Patrimônios e Coleções]. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v.43, 2011. Acessar dossiê [DR]