Necropolítica: Biopoder, Soberania, Estado de Exceção, Política da Morte | Achille Mbembe

Achille Mbembe é um intelectual multifacetado no melhor sentido que se pode atribuir a este termo; possui uma formação ampla na área das humanidades, atuação em diversas instituições qualificadas e produções largamente difundidas, inclusive no Brasil. Camaronês, nascido em 1957, testemunhou o processo de descolonização de seu país – uma guerra sangrenta equivalente ao processo argelino e com estimativas de 60 mil vidas perdidas – e, com formações entre graduações e pós graduações em História, Ciências Políticas e Filosofia, tem manifestado interesse nos temas de Filosofia Política abordando questões da África contemporânea descolonizada. Mbembe tem atuações profissionais nas universidades norte-americanas de Duke, Harvard, Columbia, Yale e na Universidade Witwatersrand em Joanesburgo na África do Sul.

O livro alvo desta resenha chama-se Necropolítica: Biopoder, Soberania, Estado de exceção, política da morte publicado pela primeira vez na França em 2003, mas que possuiu edição brasileira só em 2018. Trata-se de um pequeno ensaio de cerca de 70 páginas na edição brasileira nas quais o autor irá desenvolver o seu conceito de necropolítica. Embora seja um texto curto, o leitor deve preparar-se para refletir sobre questões densas acerca de perspectivas de autores chaves para Mbembe e de abordagens de difícil digestão, porem necessárias, em relação aos pesados temas apresentados no texto.

A primeira frase do livro já aponta para uma definição do que faz parte do escopo da necropolítica quando afirma que

Este ensaio pressupõe que a expressão máxima da soberania reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer. Por isso, matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais. Ser soberano é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação do poder. (MBEMBE. 2018, p. 5)

A relação entre a necropolítica e o conceito de bipolítica formulado por Foucault (2008) é evidente e Mbembe faz questão de explicita-la. Se a biopolítica tem no corpo o alvo do poder de modo a gerenciar a vida das pessoas (campanhas de vacinação, controle da natalidade, política de moradia, lazer, etc), a necropolítica expande tal atuação entendendo que a biopolítica não é suficiente para elaborar uma compreensão qualificada principalmente de sociedades que foram colonizadas e/ou que situam-se na periferia do sistema capitalista nas quais a morte configura-se como agente central da política. Portanto, não se trata apenas do controle político sobre o corpo, mas sim de um projeto político delimitador de quais corpos são passíveis de morte e quais são permitidos viver. De acordo com o autor, o maior agente regulador da necropolítica é o racismo, ou seja, precisa-se do racismo para decidir soberanamente quem vive e quem pode morrer. Em relação à soberania, vale afirmar que ela não trata-se somente dos eleitos ou de quem comanda Estados, mas também quem de maneira efetiva pode praticar a política de morte a exemplo de forças militares e paramilitares de quaisquer natureza e o crime organizado.

Diante desta ampla e complexa definição, o autor utiliza procedimentos de divisão do texto em partes com a intenção de elaborar mais detalhadamente suas reflexões e argumentos. A primeira parte intitulada “Política, o Trabalho da Morte e o Devir do Sujeito” está interessada em desenvolver as ideias de biopoder relacionadas à soberania de modo quem ambos estejam vinculados à experiência do estado de exceção. Utilizando a experiência histórica da violência oriunda do regime nazista a partir de Arendt (2012) e Agamben (2015), Mbembe enxerga no Holocausto um exemplo dessas relações no que poderia se supor como uma suspensão temporária de estado de direito torna-se, na realidade, um arranjo permanente que se mantém fora do estado normal de lei. (MBEMBE, 2018, p. 8).

Neste sentido, pensando nesta experiência específica, temos um alinhamento mortal para o estabelecimento da necropolítica através do biopoder, soberania e estado de exceção permanente agindo em prol de um extermínio massivo de pessoas que, ao fim e ao cabo, não eram vistas como tais, mas sim como seres biológicos descartáveis.

Existe também neste momento do texto uma inclinação mais visível para perspectivas mais ontológicas em relação ao que se chama de devir do sujeito e soberania. Partindo de Hegel (2014) e Bataille (1985), é possível pensar o sujeito que se encontra em posição de soberania em categorias mais concretas como vida e morte ao invés de outras mais abstrativas como razão e verdade. E a soberania é, em última instância, “a recusa em aceitar os limites a que o medo da morte teria submetido o sujeito” (MBEMBE, 2018, p. 15). Em alguma medida, portanto, o soberano age como se a morte por si não fosse impeditiva de suas condutas, pois encontra-se protegido por paradigmas da modernidade europeia e branca.

Ao assentar o leitor diante das reflexões sobre sujeito, soberania e estado de exceção, o autor direciona um olhar mais profundo sobre as fundamentações históricas da necropolítica em “Biopoder e Relação de Inimizade”. A soberania como produto histórico da modernidade, seja esta a primeira modernidade que encarrega-se dos processos de colonização e escravização, seja a tardia e suas dimensões de globalização, produzem o imaginário do Outro que representa perigo e sua eliminação biofísica reforça o potencial de vida e segurança do sujeito moderno (branco, europeu e colonizador) (MBEMBE, 2008. p. 20-21). Na prática política e no discurso colonial da modernidade, esse Outro vai essencialmente ameaçar as bases “civilizatórias” de um Ser-conquistador que precisa incessantemente afirmar sua soberania. Naturalmente, pensando na amplitude do processo de colonização como pilar da modernidade europeia, há vários Outro, todavia Mbembe, ao longo de sua trajetória intelectual, enfatiza suas análises para o Outro negro desenvolvendo as possibilidades que envolvem a fundação de um outro Ser nas obras posteriores a “Necropolítica” como “Crítica da Razão Negra” (2018) e “Sair da Grande Noite” (2019).

O Outro que precisa ser exterminado como ponto fulcral do imperialismo colonial é, segundo o autor, a premissa do nazismo de acordo com muitos estudiosos do tema. É o caso de Traverso (2002) e sua percepção de que as câmaras de gás foram pontos culminantes de um grande processo de desumanização e industrialização da morte. (MBEMBE, 2018, p. 21). Em outras palavras, o que era antes reservados ao “selvagens” de outro lugar, agora estava acontecendo com europeus na própria Europa.

A colônia – lugar histórico de nascimento da necropolítica – habitada por “selvagens” impõe ao escravizado uma tripla perda; do lar, de direitos sobre seu corpo e estatutos políticos (MBEMBE, 2018, p.27). O sujeito desprovido de toda sua humanidade e transformado em mercadoria e moeda sem identidade e língua é, na verdade, um não-sujeito sofrendo as consequências da diáspora num lugar chamado colônia onde o próprio autor define como zonas de guerra e desordem onde, por excelência, o estado de exceção é uma permanência perene e violenta. É exatamente nesta lógica que é perceptível en1xergar as raízes históricas da necropolítica e como ela avança os significados do biopoder em se tratando de modernidade e colonialidade.

Posteriormente, em “Necropoder e Ocupação Colonial”, o autor avança cronologicamente na dimensões históricas da necropolítica afirmando que, pelo menos em 2003 quando o livro fora publicado pela primeira vez, a Palestina é a forma mais bem sucedida de aplicação do necropoder de modo que o Estado colonizador fundamenta sua soberania e legitimidade a partir da autoridade de seu próprio relato histórico e da identidade. (MBEMBE, 2018, p. 41-42) Portanto, nesse caso não se trata de “selvagens” em uma terra desconhecida potencialmente lucrativa a um estado colonial, mas sim de “selvagens” numa terra sagrada “reforçada pela ideia de que o Estado tem o direito divino de existir; e entra em competição com outra narrativa pelo mesmo espaço sagrado”. (MBEMBE, 2018, p. 42).

O autor também caracteriza a ocupação colonial de Gaza em três características de necropoder como uma formação específica do terror e violência divididos em fragmentação territorial, proibição de acesso a certas zonas da localidade e expansão de assentamentos. (MBEMBE, 2018, p. 43). Há também algumas descrições espaciais que corroboram com estas perspectivas e demonstram na prática o modelo de guerra assimétrica exercido na região;

Sob condições de soberania vertical e ocupação colonial fragmentada, comunidades são separadas segundo um eixo de ordenadas. Isso conduz a uma proliferação dos espaços de violência. Os campos de batalha não estão localizados exclusivamente na superfície da terra. Assim como o espaço aéreo, o subsolo também é transformado em zona de conflito. Não há continuidade entre terra e céu. Até mesmo os limites no espaço aéreo dividem-se entre camadas inferiores e superiores. Em todo lugar, o simbolismo do topo (quem se encontra no topo) é reiterado. A ocupação dos céus adquire, portanto, uma importância crucial, já que a maior parte do policiamento é feito a partir do ar. Várias tecnologias são mobilizadas para esse efeito: sensores de bordo de veículos aéreos não tripulados (unmanned air vehicles), jatos de reconhecimento aéreo, prevenção usando aviões com sistema de alerta avançado (Hawkeye planes), helicópteros de assalto, um satélite de observação da Terra, técnicas de holografia. Matar se torna um assunto de alta precisão. (MBEMBE, 2008, p. 46-47)

Embora o autor não cite, é inevitável, quando se trata da questão da Palestina, não lembrar do ensaio político de Said (2002) onde o mesmo dedica muita tinta para construir análises sobre a Palestina e o ocidente liberal ao abordar a Declaração de Balfour assinada em 1917 pelo Lord Rothchild na qual o governo inglês se comprometia em avaliar favoravelmente o estabelecimento na região da Palestina uma pátria para o povo judeu. (SAID, 2012, p. 18). Fica evidente a forma que o ocidente delibera sobre o território palestino. Uma potência colonial europeia decidindo quem pode e quem não pode ocupar ou pertencer – portanto, definindo questões identitárias – a um certo lugar e isto, evidentemente, significa violência e diáspora de populações nativas situa-se consideravelmente – embora Said não utilize estes conceitos – com o que Mbembe define a ocupação colonial da Palestina; um encandeamento de poderes disciplinares, biopolíticos e necropolíticos numa combinação que exerce a dominação absoluta e gera uma militarização da vida cotidiana. (MBEMBE, 2018, p. 48).

Em “Máquinas de Guerra e Heteronomia” o autor continua analisando regimes necropolíticos através das operacionalidades das guerras numa sociedade globalizada articuladas na constituição de necropoderes. Fundamentado pelas análises da obra do sociólogo Zygmunt Bauman, há o entendimento de que as guerras da era da globalização estão menos dotadas de seus tradicionais objetivos de conquistas do que de ataques-relâmpago e cita os procedimentos altamente tecnológicos e ao mesmo tempo furtivos utilizados na Guerra do Golfo e de ataques durante a guerra em Kosovo que atingiram partes essenciais de sua infraestrutura como os setores de energia e tratamento de água submetendo a população civil a danos incalculáveis. (MBEMBE, 2018, p. 49-51).

Esse tipo de conflito – assimétrico, relâmpago e destruidor – e os regimes necropolíticos se retroalimentam e fazem com que o autor alcance de maneira mais explícita o continente africano e demonstre suas inquietações com a África descolonizada (que serão mais aprofundadas em seu livro “Sair da Grande Noite”). A ressonância da combinação horripilante entre necropolítica e guerras contemporâneas na África é algo estarrecedor. O processo de descolonização, de sair da era noturna, implica em uma série de questões problemáticas ao continente ou, como o próprio Mbembe (2019) aponta, deixa a África esburacada e perfurada. Parte desse processo situa-se na instabilidade política cujo Estados não possuem mais o monopólio da violência, que agora é mais um produto no mercado. Dessa forma, mão de obra militar é comprada e vendida de modo que pouco significa a identidade de fornecedores e compradores. Milícias urbanas são criadas, exércitos privados de senhores da guerra (lord warriors), exércitos de Estados, exércitos regionais e todos eles proclamam o direito de matar (MBEMBE, 2018, p. 53). Dito de outra forma, as máquinas de guerra estão criadas e atuantes construindo regimes predatórios em todos os aspectos da sociedade na África pós colonização. Aqui já é possível perceber com nitidez as premissas analíticas que Mbembe dará à África em suas obras futuras.

Por fim, em “Do Gesto e do Metal”, existe um retorno à situação da Palestina para compreensão de meandros específicos da necropolítica da região a partir do que chama de lógica do martírio e sua relação com o sujeito mulçumano sobre o qual foi imposto um regime de violência colonial. Na lógica do mártir, pensando o exemplo do “homem-bomba”, homicídio e suicídio são realizados no mesmo ato de modo que matar é, para esse sujeito, “reduzir o outro e a si mesmo ao estatuto de pedaços de carnes inertes, dispersos e reunidos com dificuldade antes do enterro. (MBEMBE, 2018, p. 64).

O autor, então, faz o questionamento sobre qual a diferença entre a morte causada por um ataque bélico como um míssil e a causada por ataque suicida. Sua conclusão é de que, na lógica do mártir, é que enquanto o mesmo leva o inimigo consigo eliminando a possibilidade de vida para todos, a opção lógica contrária impõe a morte aos demais ao mesmo tempo que preserva sua própria vida (MBEMBE, 2018, p. 64). Em linhas gerais, o autor compreende que isto é reflexo dos regimes coloniais atuais que estabelecem a necropolítica como estado de exceção permanente, uma forma de insubmissão de quem deveria estar completamente submisso. Algo que “como observa Gilroy, essa preferência pela morte diante da servidão contínua é um comentário sobre a natureza da liberdade em si (ou sua falta)”. (MBEMBE, 2018, p. 70)

O leitor que tenha nas mãos um exemplar de Necropolítica: Biopoder, Soberania, Estado de Exceção, Política de Morte pode ter certeza que está diante de um trabalho intenso e que tocará em sua realidade social, bem como em suas subjetividades e sensibilidades diante dos temas abordados pelo autor. Autor este que mostra-se cada vez mais necessário para uma compreensão comptetente de outras possibilidades de pensamento e de emancipação de realidades altamente violentas. Todavia, o referido livro – e talvez esta fosse mesmo a intenção de Mbembe – faça um trabalho de dar as cartas em seu pensamento de modo que muito do que está presente será desenvolvido e aprofundado em outras obras, a exemplo de “Crítica da Razão Negra” e “Sair da Grande Noite”. De todo modo, é uma leitura imprescindível a quem interessa a imersão no profícuo pensamento de Achille Mbembe.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Meios sem Fim: Notas sobre Política. Belo Horizonte. Autêntica. 2015.

ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo: Antissemitismo, Imperialismo, Totalitarismo. São Paulo. Companhia das Letras. 2013

BATAILLE, George. Visions of Excess: Selected Writings, 1927-1939. Minneapolis. University of Minnesota Press. 1985.

FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. São Paulo. Martins Fontes. 2008.

HEGEL, Georg Wilhelm Friederich. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis. Vozes. 9ª Edição. 2014

MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre la decoloniedade del ser: contribuciones al dessarrollo de um concepto. In: CASTRO-GÓMES, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. El giro decolonial: Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá. Siglo del Hombre Editores; Universidad Central; Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana; Instituto Pensar; 2007.

MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. São Paulo. n-1 Edições. 2018.

________________. Necropolítica: Biopoder, Soberania, Estado de Exceção, Política da Morte. São Paulo. n-1 Edições. 2018.

________________. Sair da Grande Noite: Ensaios sobre a África Descolonizada. Petrópolis. Vozes. 2019.

SAID, Edward. A Questão da Palestina. São Paulo. Editora UNESP. 2012.

TRAVERSO, Enzo. La Violence Nazie: Une généalogie européenne. Paris. La Fabrique Editions. 2002.


Resenhista

Ítalo Nelli Borges – Doutor em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), membro do Núcleo de Estudos de História Social da Arte e da Cultura e integrante da linha de pesquisa Linguagens, Estética e Hermenêutica. Atualmente é professor substituto do Departamento de Ciências Humanas da Universidade do Estado da Bahia (Campus V) e professor encarregado de projetos interdisciplinares na área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas executados sob metodologias ativas de aprendizagem de Instituto Professora Eulina Piaggio e Maria Cristina. (IPEMAC), caracterizada como projeto social, possuindo objetivos de formação humana e cidadã de estudantes do ensino médio matriculados no Colégio Estadual Aureo Filho, situado no Município de Ipecaetá – BA.  https://orcid.org/0000-0003-4546-7889 E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

MBEMBE, Achille. Necropolítica: Biopoder, Soberania, Estado de Exceção, Política da Morte. São Paulo. n-1 Edições, 2018. Resenha de: BORGES, Ítalo Nelli. A violência em máxima potência: construção e aplicabilidade do conceito de necropolítica. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais. Uberlândia, v.18, n.2, p.804-810, jul./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]

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