Corpos inscritos: vacina e biopoder: Londres e Rio de Janeiro/ 1840-1904 | Myriam Bahia Lopes

O livro Corpos inscritos: vacina e biopoder: Londres e Rio de Janeiro, 1840-1904, da historiadora Myriam Bahia Lopes (2021), resulta de uma pesquisa pioneira sobre a vacinação antivariólica, esse “monumento da medicina científica”. Sua leitura é essencial para compreender as raízes históricas dos debates entre aqueles que são favoráveis e os que são contrários às vacinas. Mais do que isso: além de explicar posições científicas e ideológicas, recuperando a história das lutas em prol da vacinação, Myriam interroga com habilidade os interesses em jogo na construção de diversas experiências fundadoras da modernidade, tais como a formação da opinião pública, as tentativas de estabelecer um biopoder em meio às propostas de higienização e de saneamento urbanos, assim como o campo das disputas científicas fomentado pela imprensa dos dois últimos séculos. E ainda: o livro ensina o quanto as desconfianças em torno da vacinação possuem uma longa e movimentada história, tecida em meio à persistência de antigos receios diante da ameaça do contágio, mas também atravessada pela progressiva invenção de novas técnicas de imunização. Em vez de seguir uma suposta linearidade dos fatos, a autora apresenta um rico mosaico de narrativas médicas, políticas e jornalísticas, propondo hipóteses e questionamentos tão instigantes quanto essenciais para o entendimento da história do corpo e da vida urbana. Leia Mais

Necropolítica: Biopoder, Soberania, Estado de Exceção, Política da Morte | Achille Mbembe

Achille Mbembe é um intelectual multifacetado no melhor sentido que se pode atribuir a este termo; possui uma formação ampla na área das humanidades, atuação em diversas instituições qualificadas e produções largamente difundidas, inclusive no Brasil. Camaronês, nascido em 1957, testemunhou o processo de descolonização de seu país – uma guerra sangrenta equivalente ao processo argelino e com estimativas de 60 mil vidas perdidas – e, com formações entre graduações e pós graduações em História, Ciências Políticas e Filosofia, tem manifestado interesse nos temas de Filosofia Política abordando questões da África contemporânea descolonizada. Mbembe tem atuações profissionais nas universidades norte-americanas de Duke, Harvard, Columbia, Yale e na Universidade Witwatersrand em Joanesburgo na África do Sul.

O livro alvo desta resenha chama-se Necropolítica: Biopoder, Soberania, Estado de exceção, política da morte publicado pela primeira vez na França em 2003, mas que possuiu edição brasileira só em 2018. Trata-se de um pequeno ensaio de cerca de 70 páginas na edição brasileira nas quais o autor irá desenvolver o seu conceito de necropolítica. Embora seja um texto curto, o leitor deve preparar-se para refletir sobre questões densas acerca de perspectivas de autores chaves para Mbembe e de abordagens de difícil digestão, porem necessárias, em relação aos pesados temas apresentados no texto. Leia Mais

Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte – MBEMBE (FH)

MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. São Paulo: N-1 edições, 2018, 80p. GARRIDO, Mírian Cristina de Moura. A emergência das discussões de Achille Mbembe no Brasil. Faces da História, Assis, v.7, n.1, p.499-500, jan./jul., 2020.

Desde a aprovação da Lei 10.639, em 2003, o debate sobre o tema História da África tem crescido dentro do campo acadêmico, estimulando pesquisas e produções editoriais. Incontestavelmente, a discussão e aprovação de tal lei foi uma conquista do movimento negro contemporâneo (PEREIRA, 2016). Ademais, se as primeiras pesquisas indicavam a ausência de literatura especializada para formação de professores e suporte didático (PANTOJA; ROCHA, 2004), a realidade em 2020 é outra.

A princípio o cenário começou a se modificar pela iniciativa do próprio Estado brasileiro em traduzir, publicar e disponibilizar gratuitamente a ímpar coleção História Geral da África. Dividida em oito volumes e criada por iniciativa da UNESCO, a coleção reúne pesquisadores do continente (majoritariamente) e africanistas para o debate do método e da História da África em seus diferentes períodos históricos.

A esse esforço somaram-se pesquisadores brasileiros que já vinham se dedicando ao tema, a introdução de disciplinas nas Licenciaturas e de linhas de pesquisas na pós-graduação dedicadas à essa área, ou a ele correlatos, e a produção e divulgação dessas pesquisas.

Parte das editoras, que até então afirmavam a ausência de um público consumidor sobre a História da África – historiográfica ou literária – no país, passaram a produzir e publicar livros a respeito da temática. Exemplar desse argumento são os livros do moçambicano Mia Couto, que entre 2008 e 2018 teve vinte e dois livros publicados no Brasil pela Companhia das Letras e tem frequentado as feiras literárias no país desde então.

Outro autor que tem estado em voga é o camaronês Achille Mbembe (1957-). Doutor em História pela Sorbonne e atualmente professor de História e de Ciências Políticas do Instituto Witwatersrand, em Joanesburgo, na África do Sul. No Brasil, suas ideias têm sido divulgadas por meio de três livros: Sair da Grande Noite: ensaios sobre a África descolonizada (2019); Crítica da Razão Negra (2018); Necropolítica (2018). É sobre esse último que essa resenha se debruça.

O livro apresenta-se como um ensaio, resultado do diálogo do autor com outros intelectuais – aos quais identifica e agradece no fim da obra. A Necropolítica parte da definição de soberania e biopoder (a partir da leitura de Foucault1), para determinar que a soberania é exercer o controle sobre a mortalidade, definir quem deve viver e quem não deve viver, ou nas palavras do autor, a soberania permite definir “quem é ‘descartável’ e quem não é” (MBEMBE, 2018, p. 41).

Mbembe reconhece no racismo o modelo exemplar do que chama de “tecnologia destinada ao exercício do biopoder” (2018, p. 18), isto é, o direito soberano de matar. Refletindo sobre os Estados escravistas e os regimes coloniais contemporâneos (sem, contudo, pormenorizar a construção da raça e das hierarquias raciais do século XIX e XX), o autor afirma que ambos são experiências máximas de: ausência da liberdade, expressões de terror, símbolos da perda do lar, direitos ao corpo e do estatuto político (em especial no escravismo), manifestação do poder de controle de uns sobre o corpo/desejo de outros, em ambos os casos.

A ênfase e contribuição maior do ensaio, porém, não está na questão do escravismo ou do racismo, mas sim nas técnicas e dispositivos da mentalidade dos governos contemporâneos e suas formas de controle e de guerra. Essa última, levada a cabo na contemporaneidade, com o objetivo de se instalar a completa submissão do inimigo, sem mensurar os impactos colaterais para a sociedade civil.

Esse modelo de guerra, descrito como característico da “época da globalização”, é exemplificado no livro com a Guerra de Kosovo, onde houve a destruição da infraestrutura tais como ferrovias, rodovias, redes de comunicação, depósitos de petróleo, centrais elétricas e tratamento da água, estendendo, assim, os danos à população local. Contudo, para o autor, há uma racionalidade na morte inerente à essas formas de composição de Estado e concepção de soberania, que reside na já mencionada submissão total do inimigo.

O exemplar da definição do necropolítica está, para o autor, na ocupação contemporânea da Palestina. “Aqui, o Estado colonial tira sua pretensão fundamental de soberania e legitimidade da autoridade de seu próprio relato da história e da identidade. Essa narrativa é reforçada pela ideia de que o Estado tem o direito divino de existir; e entra em competição com outra narrativa pelo mesmo espaço sagrado” (MBEMBE, 2018, p. 42). Nesse caso, a violência e a soberania reivindicam um elemento divino, na qual a identidade do grupo é buscada na divindade e construída em oposição ao “outro” e sua divindade.

O leitor que iniciou seu conhecimento de Mbembe por meio do Crítica da Razão Negra frustra-se pela pouca atenção concedida às discussões sobre escravismo, colonialismo e racismo. Frustra-se, contudo, por algo que não era prometido pela obra e comete um erro, pois a partir dessas considerações sobre a necropolítica o leitor pode, por si mesmo, construir diálogos com o racismo estrutural e institucional brasileiro, o genocídio deliberado contra os negros, o encarceramento em massa da população afro, a segregação espacial da população no país, e assim por diante… Todos elementos corroboram com a ideia de que o Estado adota políticas de morte, definindo inimigos e estabelecendo aqueles que são ou não são descartáveis.

Referências

KI-ZERBO, Joseph et al. História geral da África. Metodologia e pré-história da África. Brasília: Ministério da Educação, 2011. v. 1.

MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. São Paulo: N-1 Edições, 2018.

MBEMBE, Achille. Sair da Grande Noite: ensaios sobre a África descolonizada. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 2019.

PANTOJA, Selma; ROCHA, Maria José. Rompendo Silêncios: História da África nos Currículos da Educação Básica. Brasília: DP Comunicações Ltda., 2004.

PEREIRA, Amilcar Araújo. O movimento negro brasileiro e a Lei 10.639: da criação aos desafios de implementação. Revista Contemporânea da Educação, Rio de Janeiro, v. 11, n. 22, p. 13-30, jan/abr. 2016.

Mírian Cristina de Moura Garrido – Doutora pela Universidade Estadual Paulista, Assis – SP, pós-doutoranda em História, pela Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos – SP. E-mail: [email protected].

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