Necropolítica: Biopoder, Soberania, Estado de Exceção, Política da Morte | Achille Mbembe

Achille Mbembe é um intelectual multifacetado no melhor sentido que se pode atribuir a este termo; possui uma formação ampla na área das humanidades, atuação em diversas instituições qualificadas e produções largamente difundidas, inclusive no Brasil. Camaronês, nascido em 1957, testemunhou o processo de descolonização de seu país – uma guerra sangrenta equivalente ao processo argelino e com estimativas de 60 mil vidas perdidas – e, com formações entre graduações e pós graduações em História, Ciências Políticas e Filosofia, tem manifestado interesse nos temas de Filosofia Política abordando questões da África contemporânea descolonizada. Mbembe tem atuações profissionais nas universidades norte-americanas de Duke, Harvard, Columbia, Yale e na Universidade Witwatersrand em Joanesburgo na África do Sul.

O livro alvo desta resenha chama-se Necropolítica: Biopoder, Soberania, Estado de exceção, política da morte publicado pela primeira vez na França em 2003, mas que possuiu edição brasileira só em 2018. Trata-se de um pequeno ensaio de cerca de 70 páginas na edição brasileira nas quais o autor irá desenvolver o seu conceito de necropolítica. Embora seja um texto curto, o leitor deve preparar-se para refletir sobre questões densas acerca de perspectivas de autores chaves para Mbembe e de abordagens de difícil digestão, porem necessárias, em relação aos pesados temas apresentados no texto. Leia Mais

Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte – MBEMBE (FH)

MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. São Paulo: N-1 edições, 2018, 80p. GARRIDO, Mírian Cristina de Moura. A emergência das discussões de Achille Mbembe no Brasil. Faces da História, Assis, v.7, n.1, p.499-500, jan./jul., 2020.

Desde a aprovação da Lei 10.639, em 2003, o debate sobre o tema História da África tem crescido dentro do campo acadêmico, estimulando pesquisas e produções editoriais. Incontestavelmente, a discussão e aprovação de tal lei foi uma conquista do movimento negro contemporâneo (PEREIRA, 2016). Ademais, se as primeiras pesquisas indicavam a ausência de literatura especializada para formação de professores e suporte didático (PANTOJA; ROCHA, 2004), a realidade em 2020 é outra.

A princípio o cenário começou a se modificar pela iniciativa do próprio Estado brasileiro em traduzir, publicar e disponibilizar gratuitamente a ímpar coleção História Geral da África. Dividida em oito volumes e criada por iniciativa da UNESCO, a coleção reúne pesquisadores do continente (majoritariamente) e africanistas para o debate do método e da História da África em seus diferentes períodos históricos.

A esse esforço somaram-se pesquisadores brasileiros que já vinham se dedicando ao tema, a introdução de disciplinas nas Licenciaturas e de linhas de pesquisas na pós-graduação dedicadas à essa área, ou a ele correlatos, e a produção e divulgação dessas pesquisas.

Parte das editoras, que até então afirmavam a ausência de um público consumidor sobre a História da África – historiográfica ou literária – no país, passaram a produzir e publicar livros a respeito da temática. Exemplar desse argumento são os livros do moçambicano Mia Couto, que entre 2008 e 2018 teve vinte e dois livros publicados no Brasil pela Companhia das Letras e tem frequentado as feiras literárias no país desde então.

Outro autor que tem estado em voga é o camaronês Achille Mbembe (1957-). Doutor em História pela Sorbonne e atualmente professor de História e de Ciências Políticas do Instituto Witwatersrand, em Joanesburgo, na África do Sul. No Brasil, suas ideias têm sido divulgadas por meio de três livros: Sair da Grande Noite: ensaios sobre a África descolonizada (2019); Crítica da Razão Negra (2018); Necropolítica (2018). É sobre esse último que essa resenha se debruça.

O livro apresenta-se como um ensaio, resultado do diálogo do autor com outros intelectuais – aos quais identifica e agradece no fim da obra. A Necropolítica parte da definição de soberania e biopoder (a partir da leitura de Foucault1), para determinar que a soberania é exercer o controle sobre a mortalidade, definir quem deve viver e quem não deve viver, ou nas palavras do autor, a soberania permite definir “quem é ‘descartável’ e quem não é” (MBEMBE, 2018, p. 41).

Mbembe reconhece no racismo o modelo exemplar do que chama de “tecnologia destinada ao exercício do biopoder” (2018, p. 18), isto é, o direito soberano de matar. Refletindo sobre os Estados escravistas e os regimes coloniais contemporâneos (sem, contudo, pormenorizar a construção da raça e das hierarquias raciais do século XIX e XX), o autor afirma que ambos são experiências máximas de: ausência da liberdade, expressões de terror, símbolos da perda do lar, direitos ao corpo e do estatuto político (em especial no escravismo), manifestação do poder de controle de uns sobre o corpo/desejo de outros, em ambos os casos.

A ênfase e contribuição maior do ensaio, porém, não está na questão do escravismo ou do racismo, mas sim nas técnicas e dispositivos da mentalidade dos governos contemporâneos e suas formas de controle e de guerra. Essa última, levada a cabo na contemporaneidade, com o objetivo de se instalar a completa submissão do inimigo, sem mensurar os impactos colaterais para a sociedade civil.

Esse modelo de guerra, descrito como característico da “época da globalização”, é exemplificado no livro com a Guerra de Kosovo, onde houve a destruição da infraestrutura tais como ferrovias, rodovias, redes de comunicação, depósitos de petróleo, centrais elétricas e tratamento da água, estendendo, assim, os danos à população local. Contudo, para o autor, há uma racionalidade na morte inerente à essas formas de composição de Estado e concepção de soberania, que reside na já mencionada submissão total do inimigo.

O exemplar da definição do necropolítica está, para o autor, na ocupação contemporânea da Palestina. “Aqui, o Estado colonial tira sua pretensão fundamental de soberania e legitimidade da autoridade de seu próprio relato da história e da identidade. Essa narrativa é reforçada pela ideia de que o Estado tem o direito divino de existir; e entra em competição com outra narrativa pelo mesmo espaço sagrado” (MBEMBE, 2018, p. 42). Nesse caso, a violência e a soberania reivindicam um elemento divino, na qual a identidade do grupo é buscada na divindade e construída em oposição ao “outro” e sua divindade.

O leitor que iniciou seu conhecimento de Mbembe por meio do Crítica da Razão Negra frustra-se pela pouca atenção concedida às discussões sobre escravismo, colonialismo e racismo. Frustra-se, contudo, por algo que não era prometido pela obra e comete um erro, pois a partir dessas considerações sobre a necropolítica o leitor pode, por si mesmo, construir diálogos com o racismo estrutural e institucional brasileiro, o genocídio deliberado contra os negros, o encarceramento em massa da população afro, a segregação espacial da população no país, e assim por diante… Todos elementos corroboram com a ideia de que o Estado adota políticas de morte, definindo inimigos e estabelecendo aqueles que são ou não são descartáveis.

Referências

KI-ZERBO, Joseph et al. História geral da África. Metodologia e pré-história da África. Brasília: Ministério da Educação, 2011. v. 1.

MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. São Paulo: N-1 Edições, 2018.

MBEMBE, Achille. Sair da Grande Noite: ensaios sobre a África descolonizada. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 2019.

PANTOJA, Selma; ROCHA, Maria José. Rompendo Silêncios: História da África nos Currículos da Educação Básica. Brasília: DP Comunicações Ltda., 2004.

PEREIRA, Amilcar Araújo. O movimento negro brasileiro e a Lei 10.639: da criação aos desafios de implementação. Revista Contemporânea da Educação, Rio de Janeiro, v. 11, n. 22, p. 13-30, jan/abr. 2016.

Mírian Cristina de Moura Garrido – Doutora pela Universidade Estadual Paulista, Assis – SP, pós-doutoranda em História, pela Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos – SP. E-mail: [email protected].

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Democracia e estado de exceção: transição e memória política no Brasil e na África do Sul / Edson Teles

Democracia e Estado de Exceção, livro escrito por Edson Teles, trata da questão do papel da memória, no Brasil e na África do Sul. Seus usos e abusos na assunção das novas democracias no Hemisfério Sul, ante a herança autoritária da ditadura militar brasileira e do apartheid sul-africano. Em específico, a obra discute como esse passado, em tempos democráticos, interfere nas ações políticas do presente e na consolidação dos novos contratos sociais, sob a tensão entre a lembrança e o esquecimento dos tempos de exceção.

A publicação é fruto da tese de doutoramento intitulada: Brasil e África do Sul: paradoxos da democracia, defendida no ano de 2007 pela Universidade de São Paulo. Além disso, é resultado de anos de militância política e engajamento por parte do autor nas questões que envolvem os direitos humanos. A obra sedimenta suas reflexões no campo da filosofia política. Assim, constitui-se como um dos pontos chaves para o entendimento da abordagem do autor, a relação paradoxal entre a certeza do discurso e a insegurança da ação.

Nesse sentido, Democracia e Estado de Exceção, em comparação com outras obras do campo da filosofia, foge de uma perspectiva clássica. O livro não somente investe na densidade do debate filosófico que envolve noções e conceitos de memória, democracia, perdão e ressentimento, mas, por outro lado, busca o entendimento de como essas noções e conceitos foram articulados em realidades históricas específicas – Brasil e África do Sul – através da relação dialética entre lembrança e esquecimento.

De maneira geral, ao autor interessa como o debate filosófico interfere e constrói novos sentidos à esfera pública, ou como, em momentos de transição política, criam-se condições e possibilidades para o forjamento de novas formas de sociabilidade. As novas democracias teriam a difícil missão de criar um novo cenário de reconciliação com o passado, (re)construção do presente e projeção de um futuro para brasileiros e sul-africanos.

Os anos de chumbo da ditadura civil-militar no Brasil e o apartheid na África do Sul violaram o sentido democrático na medida em que a violência fez parte de maneira autorizada na esfera pública. Por consequência, a democracia foi encoberta pela exceção através dos crimes cometidos contra a humanidade: tortura, desaparecimento, assassinato e prisão daqueles que lutaram contra o regime. De certa forma, ambos os países experienciaram a produção da violência como uma política de Estado em tempos de exceção. Portanto, configuram-se como sociedades marcadas pelo ressentimento e trauma.

Em contextos como o de transição, os crimes ditos públicos, tais como casos de corrupção e violações à humanidade, passam a ter cada vez mais visibilidade. O filósofo propõe refletir a questão a partir das novas jurisprudências que foram criadas com o objetivo de julgar tais crimes, como: A Comissão Sul-Africana de Verdade e Reconciliação. Por outro lado, os períodos de transição e assunção de novos modelos políticos que confrontam os regimes de exceção enfrentam um grande dilema no reestabelecimento dos novos contratos sociais: punir ou anistiar; punir ou perdoar?

Para melhor compreender as especificidades de cada caso, Teles recorre ao método comparativo. As novas democracias – brasileira e sul-africana – tiveram que lidar, cada qual à sua maneira, com o passado dos regimes de exceção. Para tanto, o autor compreende que a memória desempenha um papel importante no acesso ao passado – seja enquanto esquecimento através do silêncio, seja enquanto lembrança – com a possibilidade de publicização dos traumas do passado em esfera pública.

A obra está disposta em cinco capítulos, dos quais o primeiro versa sobre as problemáticas da memória. Apesar de possuir um capítulo em específico, as reflexões acerca do papel da memória nas novas democracias são norteadoras para o desenvolvimento e considerações do autor ao longo dos outros quatro capítulos. Teles propõe iniciar suas reflexões a respeito do papel da memória questionando o que se lembra, e quem lembra. O investimento no conteúdo e agente da ação expõe as complexidades do acesso à memória.

Em suas considerações iniciais o autor rejeita a tese de que a memória seja um dado natural. O filósofo compreende que conteúdo e agente podem ser um importante indicativo para o entendimento das ações de recordação, tendo em vista que a coisa lembrada (conteúdo) projeta-se sobre o sujeito que realiza a recordação (agente). Teles pondera que, no campo social, o acesso ao passado através das ações de recordação torna-se mais complexo, pois o discurso dirigido por terceiros – Estado, partidos políticos e ONGs – reconfigura não somente a mensagem (conteúdo), mas o acesso à recordação (agentes e receptores). Para Teles, tais reconfigurações pelas quais passa a memória no campo social, ou as ações de recordação que envolvem conteúdo e agentes possibilitam compreender dois campos de abordagem.

O primeiro diz respeito à participação dos sujeitos nas ações de recordação de forma plural e subjetiva; já o segundo tem por finalidade tratar de forma objetiva e duradoura os elementos do passado. Nesse sentido, o autor considera que na esfera pública – no discurso proferido pelo Estado, partidos políticos e outras entidades – seja impossível compreender as ações de recordação, eu e nós, subjetividade e objetividade de forma distinta. Por consequência, a memória política seria esse espaço de análise das incongruências e conjunções entre o esquecimento e lembrança, singular e plural, subjetivo e objetivo.

Em diálogo com o historiador Peter Burke1, o autor expõe os conflitos e complementaridades da memória objetivada nas placas, monumentos e nos novos nomes das ruas com a subjetividade da memória dos moradores da cidade de Sófia. Teles considera que nos entulhos da objetividade da memória das datas, nomes e livros existem pontos mnemônicos subjetivos pouco acessíveis que fogem da homogeneidade imagética que as sociedades fazem de si mesmas. As memórias dos regimes autoritários seriam momentos de rupturas e de conflitos entre as ações objetivas e a pouca visibilidade às ações de recordações subjetivas.

Apesar do livro não investir em uma divisão em partes ou seções, consigo observar dois eixos centrais a partir do segundo capítulo. Estes configuram-se, também, como eixos espaciais, um estudo de caso do fim dos regimes autoritários e os processos de transição e consolidação das democracias no Brasil e na África do Sul. Esses dois eixos, por assim dizer, articulam as reflexões propostas por Teles. As experiências brasileira e sul-africana vivenciaram o signo da violência, mas lidaram com a memória de maneira distinta. Apesar de certas aproximações, Brasil e África do Sul, parecem divergir nos caminhos percorridos e pelo modo como reconstruíram suas democracias entre o final dos anos 80 e o início dos anos 90.

Nos capítulos dois e três, o autor se preocupa com o caso brasileiro, mais precisamente, com o processo de transição política negociada entre os representantes da classe política que acabou por negligenciar o povo da esfera pública. Nesse sentido, creio que a experiência brasileira consagra as políticas de silêncio. O consenso, ou memória consensual – no período de transição – produziu silêncios a respeito dos crimes cometidos durante a ditadura militar. Para o autor, a memória objetiva do período limitou-se a datas, comemorações e placas alusivas ao fim do regime. Por outro lado, a impossibilidade do aparecimento de outras narrativas, que pudessem traduzir a subjetividade das experiências traumáticas na dimensão pública, silenciou vários indivíduos produzindo um vácuo entre passado e presente. Em alguns casos, sem a possibilidade de falar, esses mesmos indivíduos optam pelo silêncio reduzindo sua publicidade ao campo privado.

A transição brasileira negligenciou a memória política, ou seja, a nova dimensão pública limitou a presença plural do passado no presente. No capítulo Lembrar e Esquecer, Teles classifica três tipos de memória do período de transição. São elas: a memória dos militares, a memória das vítimas e, por fim, a memória do consenso. Em síntese, a memória dos militares seria a da vitória contra os subversivos, a famigerada ameaça comunista. Em contraste com a versão anterior, a memória das vítimas defende a investigação e punição a todos os culpados pelos crimes cometidos no período da ditadura militar. O esquecimento e passividade estatal perante as denúncias criaram uma zona de inconformismo por parte desses movimentos. E, por fim, a memória do consenso busca uma posição central entre as duas memórias. Sendo assim, esta memória irá expor de forma limitada sua visão sobre os crimes do passado e, em contrapartida, será simpática ao novo governo civil com o fim da ditadura.

Analisando o consenso, enquanto marca da transição brasileira, acredito que seu entendimento cruze as considerações do autor a respeito do conceito de democracia. Para Teles, o processo de transição de forma lenta e gradual ao qual se propôs o acordo entre os militares, lideranças políticas, latifundiários e empresários constituiu-se como uma democracia relativa ou incompleta. O filósofo questiona a eficácia da nova roupagem institucional – assembleias, eleições e direitos individuais – se estes mesmos espaços de ação na esfera pública limitam a área de atuação das subjetividades políticas. Como podemos falar de democracia se os crimes do passado não foram ainda julgados?

No capítulo três, intitulado Políticas do Silêncio, o autor faz algumas considerações sobre os efeitos do silêncio com a consolidação do período democrático no Brasil. Analisando algumas reflexões feitas pelo autor, acredito que a democracia brasileira não tenha se preocupado com o conteúdo do discurso e seu espaço de atuação. Nesse sentido, a memória objetiva peca no revestimento de novos sentidos mnemônicos para os espaços públicos. Ainda é comum no Brasil encontrarmos monumentos, nomes de ruas e escolas que prestam homenagens a presidentes e políticos envolvidos de forma direta com o regime militar. Soma-se, do ponto de vista subjetivo, a ocultação de falas e arquivos públicos. A democracia passa a enrustir e transformar o passado em segredo.

O segundo eixo é composto dos dois últimos capítulos. Neles o autor investiga a experiência sul-africana através da Comissão de Verdade e Reconciliação. A partir deste órgão e de outras ações, a África do Sul promoveu sua política de anistia em troca da confissão dos crimes. A dissonância entre o caso sul-africano e o brasileiro ocorre na opção do primeiro por criar espaços públicos de confissão e perdão, analisando caso a caso. Já o Brasil, através da anistia coletiva, transfigurou a memória ao campo do esquecimento através do silêncio. Por seu turno, a África do Sul optou pela publicização dos traumas e ressentimentos, através de políticas de narrativas. Tais espaços tinham por objetivo consumar luto e recriar novos laços sociais entre os indivíduos.

O período de segregação racial – apartheid – chegou ao fim com a eleição de Nelson Mandela para a presidência do país em 1994. A partir de então, a África do Sul elaborou uma nova constituição e lançou um plano de reconciliação com o objetivo de reconstruir a nação sem as marcas da violência e do preconceito de outrora. Para tanto, seria necessário lidar com o ressentimento e trauma do passado. Segundo o autor, esferas públicas foram criadas, reunindo vítimas e criminosos com o objetivo de apurar e reparar os crimes contra a humanidade. Tais momentos funcionavam mais como espaços de reconciliação do que tribunais cujo único objetivo seria o de punir todos aqueles que estivessem envolvidos em crimes no regime segregacionista.

Edson Teles pondera que a reconciliação sul-africana não ocorreu em um momento único. Na verdade, foi um processo que demandou tempo. Compreendo este momento não somente pelo seu viés institucional e burocrático, mas por sua dimensão simbólica, algo que se assemelha a momentos de ritualização coletiva, com o objetivo de recriar novos espaços de comunhão. Nesse sentido, o conceito ubunto, fortemente enraizado na tradição africana, auxiliou no processo de reconciliação, à medida que a reintegração dos réus à sociedade só era aceita por meio de um pedido de desculpas públicas após a confissão do crime.

Edson Teles, em comparação com o processo brasileiro, vê as narrativas construídas pelos sul-africanos como inovadoras por dois aspectos: primeiro, pela comissão ter ouvido não somente vítimas, mas também aqueles que cometeram os crimes no período; segundo, pela ampla publicidade dada às narrativas criando espaços de pluralidade e construção de subjetividades sobre o passado. Algo que a transição brasileira sempre negligenciou. Contudo, se o caso brasileiro peca pela ausência de memória, Teles critica o excesso de memória da experiência sul-africana como um dos pontos que também dificultam a concretude e o perdão.

Democracia e Estado de Exceção é um importante estudo de caso que recorre ao método comparativo para compreender os sentidos do passado. Para além do campo da filosofia política, em vários momentos, a obra parece estar inserida dentro do campo da História Social das Ideias, devido à análise contextual e atuação dos agentes nos processos de consolidação das novas democracias no hemisfério sul.

Wendell Emmanuel Brito de Souza – Mestre em História Social/UFMA. São Luís/Maranhão/Brasil. E-mail: [email protected].


TELES, Edson. Democracia e estado de exceção: transição e memória política no Brasil e na África do Sul. São Paulo: Editora Fap-Unifesp, 2015. 220 p. Resenha de: SOUZA, Wendell Emmanuel Brito de. Memória política entre silêncios e narrativas: transição democrática no Brasil e na África do Sul. Outros Tempos, São Luís, v.15, n.26, p.250-255, 2018. Acessar publicação original. [IF].

Informação, repressão e memória / Marcília Gama Silva

Entre os anos de 2012 e 2014, com a criação de diversas comissões da verdade no Brasil e próximo à passagem dos cinquenta anos do golpe civil-militar de abril de 1964, as discussões a respeito da derrubada do presidente João Goulart e do regime autoritário que se seguiu cresceram de maneira considerável, fomentando a realização de audiências públicas, reportagens especiais, seminários, documentários, filmes e, principalmente, novas e ricas produções bibliográficas. Uma destas produções, por exemplo, foi o livro da historiadora Marcília Gama da Silva, Informação, repressão e memória: a construção do estado de exceção no Brasil na perspectiva do DOPS-PE (1964-1985), de 2014.

Fruto de sua tese de doutorado, defendida, em 2007, no Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Federal de Pernambuco, o livro, que tem uma agradabilíssima escrita, teve como foco estudar a “rede de informações” instalada, em Pernambuco, durante o regime militar (1964-1985), tomando como base o intercâmbio informacional criado entre o Departamento de Ordem Política e Social de Pernambuco (DOPS-PE) e os demais órgãos de informação em nível regional e nacional.

Ao se dedicar à questão da “espionagem/monitoramento/vigilância”, Marcília Gama se associou a um tema que, dentro da historiografia brasileira, tem crescido, qualitativa e quantitativamente, durante os últimos anos. O interesse por essa temática remonta à metade da década de 1980, quando importantes jornalistas lançaram sólidas obras, desnudando a face vil da comunidade de informações. Na década de 1990, uma nova contribuição ao tema foi dada com o lançamento de uma trilogia pela CPDOC da Fundação Getúlio Vargas (FGV), na qual os próprios militares expunham diretamente opiniões, pontos de vista, críticas ou elogios acerca de sua atuação no exercício do poder. Nos anos 2000, o tema teve uma nova alavancada com a publicação de centenas de artigos em revistas especializadas e a produção de riquíssimos trabalhos acadêmicos.

O estudo de Marcília Gama, portanto, ao tratar da questão do monitoramento feito pela ditadura, não apenas complementa as obras clássicas sobre o tema, mas, principalmente, por seu recorte espacial local e pela vasta documentação apresentada, avança no cerne da questão, trazendo à tona as nefastas atividades de informações produzidas pela ditadura em Pernambuco. Atividades que, além de levianas e fincadas no preconceito e na ignorância, eram conduzidas pela suspeição universalizada, ou seja, sob o lema da “inculpação”, já que partia da pressuposição de que todos poderiam ser subversivos, até que provassem o contrário.

O livro de Marcília é composto por três capítulos, ao longo dos quais se buscou refutar a tese de que as atividades de informação no Brasil eram precárias ou amadoras. Marcília procurou mostrar que longe de um amaradorismo, as atividades de informações faziam parte de uma complexa rede de especialistas que tudo buscava anotar, captar, ouvir, enxergar e arquivar. O grande desejo da comunidade de informações sempre foi, na verdade, o de ser onipresente. Para conseguir a tão sonhada vigilância total da população, a ditadura, por exemplo, contratou e/ou deslocou de outros órgãos centenas de agentes e peritos, utilizou centenas de agentes infiltrados nas organizações clandestinas e nos movimentos sociais, além de instigar, cotidianamente, considerável parcela da população a colaborar com as atrocidades cometidas pelo regime.

Uma das primeiras preocupações de Marcília foi mostrar como a questão das informações passou a ocupar um lugar estratégico dentro da ditadura, ou seja, como a extensa e dinâmica rede de informações serviu de base para a manutenção do próprio regime e de seu aparato repressivo. No primeiro capítulo da obra, ao analisar a conjuntura do pré-golpe de 1964, Marcília demonstrou que não é afeita a modismos historiográficos e ao recente “revisionismo historiográfico” que vem sendo denunciado nos últimos tempos, entre outros, pelos professores Caio Navarro de Toledo e Renato Lemos. E isto é um ponto digno de ser ressaltado, especialmente no atual momento historiográfico que apresenta uma notável relativização de certos eventos e agentes históricos.

Retomando análises clássicas de autores como René Dreifuss, Maria Helena Moreira Alves, José Comblin e Caio Navarro de Toledo (hoje, esquecidas ou descartadas por vários acadêmicos), Marcília apontou a atuação do “complexo IPES-IBAD” na desestabilização do governo João Goulart e, principalmente, o importante papel que a ESG desempenhou, durante os anos 60, como núcleo formador de opiniões, de visão de sociedade e de comportamento, através dos discursos proferidos, das palestras e cursos ministrados por civis e militares sobre a Doutrina de Segurança Nacional.

É de suma importância ressaltar que embora o livro de Marcília possa ajudar a entender a lógica e o modus operandi dos órgãos de segurança em Pernambuco, o foco da autora não foi o estudo da estrutura da repressão tout court, mas sim o desenvolvimento da complexa “rede de informações” montada pela ditadura nesse estado. A sua ideia foi enfatizar as rotinas policiais de investigação, mostrar as estratégias de vigilância e identificar os discursos policiais produzidos a respeito de alguns grupos, tais como os camponeses, estudantes e grupos de luta armada, que eram taxados de “comunistas”, “subversivos” e “perigosos” à ordem política e social do país. E tal escolha se deu justamente porque a autora entendeu que os conceitos “informação” e “repressão”, embora conexos, tinham objetivos e atuações diferentes dentro do regime.

Em outras palavras, apesar de absolutamente relacionadas, as atividades de informações (espionagem) e as de segurança (repressão) eram normatizadas, coordenadas e executadas em esferas próprias. Os órgãos de informação trabalhavam na busca, coleta, análise e “pescagem” da informação para alimentar os Inquéritos Policiais Militares, enquanto os órgãos de segurança atuavam diretamente no “estouro” de aparelhos, na prisão, nos interrogatórios, no combate direto ao inimigo.

A discussão sobre o “auxílio” do governo norte-americano para a montagem, robustecimento, atualização e modernização da polícia política e técnico-científica, em Pernambuco, no início da década de 1960, foi outro grande trunfo trazido por Marcília Gama para o conhecimento da nossa recente história política. Ela mostrou que Pernambuco – visto como um dos principais focos de comunismo e subversão do país – recebeu altas somas de dinheiro, recursos (transportes, equipamentos de escuta e telefonia etc.) e inúmeros cursos, no país e no exterior, destinados ao aperfeiçoamento de agentes públicos às atividades de informação e repressão. Para a autora, esse apoio financeiro e técnico foi completamente minado com a posse do governador Miguel Arraes, em janeiro de 1963, que desmontou o poderoso “programa de auxílio americano” chamado Ponto IV, gerando forte descontentamento por parte dos policiais estaduais e dos EUA. Com a deposição de Arraes em abril de 64, os acordos foram retomados, tendo a USAID fornecido, já no início de 1965, despesas de viagens e estadias para que técnicos americanos ministrassem “cursos de aperfeiçoamento” a policiais e gestores estaduais.

Em diversas passagens da obra, Marcília analisou com riqueza de detalhes, sobretudo por intermédio de excelentes diagramas, tabelas e organogramas, a superestrutura da polícia política em Pernambuco. Convém aqui ressaltar que a polícia política pernambucana não foi montada com o advento do golpe de 1964. Embora aperfeiçoada durante o regime militar, tal polícia foi montada ainda na década de 1930, através da Lei nº 71, de 23 de dezembro de 1935, com a clara finalidade de coibir o avanço do comunismo, cuja atuação era vista como grande ameaça à ordem, sobretudo após o levante comunista de novembro do mesmo ano, ocorrido em Natal, no Recife e no Rio de Janeiro. Seis segmentos passaram então a ser vigiados de perto pela recém-criada Delegacia de Ordem Política e Social de Pernambuco (DOPS): a imprensa, as entidades de assistência social (incluindo os sindicatos), determinadas lideranças; os partidos políticos e associações; a zona urbana (indústria, comércio e empresas) e a zona rural (os camponeses).

Em 1961, a Delegacia foi transformada em “Departamento de Ordem Política e Social (DOPS)”, aumentando a vigilância e a repressão aos trabalhadores urbanos e rurais durante o governo Cid Sampaio (1959-1962). Essa “modernização” da estrutura policial atendeu à necessidade de aperfeiçoar a máquina estatal para o combate das ações consideradas “subversivas” (manifestações, protestos, greves, passeatas, pichações etc). Os corriqueiros abusos cometidos pela polícia estadual só foram contidos, de fato, com a posse de Miguel Arraes no início de 1963.

Contudo, com o advento do golpe de 64, os abusos foram retomados e intensificados pelo DOPS. Com a deflagração do golpe iniciou-se uma fase de puro ódio, uma verdadeira caça às bruxas. Somente nos primeiros dias de abril de 1964, quase duas mil pessoas foram presas em Pernambuco. Em milhares de casos, as prisões políticas não tinham formalidade legal. Entre as prisões, havia centenas de detenções por desavenças pessoais. Naquele contexto, nas águas da perseguição política, tudo era válido.

Nos limites desta resenha, importa valorizar a riqueza do trabalho de Marcília Gama e a sua contribuição para o conhecimento da polícia política pernambucana e das ações (legais e ilegais) da comunidade de informações, suas formas de atuação, a cadeia de comando, sua organização e funcionamento. No entanto, não poderia aqui de deixar de mencionar alguns problemas que permaneceram na obra. O primeiro, a meu ver, é a utilização da expressão “regime civil-militar”. A autora faz uso desse conceito sem problematizá-lo. É importante destacar que há, atualmente, uma rica discussão historiográfica sobre o caráter civil ou não do regime.

O segundo problema é a interpretação do Ato Institucional nº 5 (AI-5) como um “golpe dentro do golpe”. Na verdade, quando usamos essa expressão, muitas vezes, estamos refletindo a própria leitura feita pela “linha dura” a respeito do regime. Entre os anos de 1964 e 1968, o que grande parte dos meios de comunicação e do oficialato então denominava de “linha dura” ou de “força autônoma dentro das Forças Armadas” (autodeclarada a verdadeira guardiã dos princípios da “revolução”) foi se constituindo como um grupo de pressão muito eficaz e conquistando, paulatinamente, consideráveis espaços de poder no interior do governo. A caminhada e a evolução da presença desse grupo são essenciais para entender diversos episódios do regime, pois evidencia que o projeto repressivo baseado numa dura “operação limpeza” estava presente desde os primeiros momentos do golpe de 64. Neste sentido, o AI-5 deve ser entendido como o amadurecimento de um processo que se iniciara muito antes, e não uma decorrência dos episódios de 1968, diferentemente da tese que sustenta a metáfora do “golpe dentro do golpe”, segundo a qual o AI-5 iniciou uma fase completamente distinta da anterior.

O terceiro problema identificado na obra de Marcília é a larga utilização de expressões como “populismo”, “democracia populista”, “colapso do estado populista implantado por Vargas”, sem as devidas ponderações e críticas que esses conceitos certamente requisitam. Não vou aqui entrar no mérito da discussão sobre a utilização ou não do conceito de “populismo”, mas considero que Marcília deveria indicar ao seu leitor o aporte teórico-metodológico que estaria orientando os seus estudos.

Outra crítica que lanço ao trabalho da autora é a falta de discussão sobre a relativa diminuição de poder dos DOPSs após a criação e fortalecimento, no final da década de 1960 e início de 1970, de outros órgãos de informações no país (a exemplo do CIE, CISA e CENIMAR). Apesar da alta complexificação da estrutura do DOPS, o órgão passou a perder espaços de poder, ao longo dos anos 70, nas atividades de investigação e repressão política. A Doutrina de Segurança Nacional estabeleceu como seus órgãos centrais o recém-criado SNI e os órgãos de inteligência militares. Elaborando estratégias, produzindo informações e centralizando os informes estes órgãos eram, indubitavelmente, os agentes mais categorizados da repressão. O processamento e a elaboração das estratégias e “informações” estavam confiados aos órgãos centrais (SNI e agências militares); cabia ao DOPS, na maioria dos casos, municiá-los de “informes”.

Por fim – e talvez seja o mais problema sério da obra –, há o argumento de Marcília de que a ditadura encerrou-se no ano de 1979. Esta concepção, que tem os historiadores Daniel Aarão Reis e Marco Antonio Villa como os seus principais expoentes, é política e historicamente complicada. Já não bastasse a afirmação de que a ditadura brasileira foi uma “ditabranda” – pois teria sido “mais branda” e “menos violenta” do que outras ditaduras latino-americanas –, busca-se difundir nos últimos anos a falácia da “ditacurta”, segundo a qual a ditadura brasileira teria se encerrado em 1979, com a aprovação da anistia e a revogação dos Atos Institucionais draconianos lançados pelos militares.

Rafael Leite FerreiraDoutorando em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

 


SILVA, Marcília Gama da. Informação, repressão e memória: a construção do estado de exceção no Brasil na perspectiva do DOPS-PE (1964-1985). Recife: Editora UFPE, 2014. Resenha de: FERREIRA, Rafael Leite. Manduarisawa – Revista Discente do Curso de História da UFAM, Manaus, v.1, n.1, p.151-156, 2017. Acessar publicação original. [IF]