Necropolítica: Biopoder, Soberania, Estado de Exceção, Política da Morte | Achille Mbembe

Achille Mbembe é um intelectual multifacetado no melhor sentido que se pode atribuir a este termo; possui uma formação ampla na área das humanidades, atuação em diversas instituições qualificadas e produções largamente difundidas, inclusive no Brasil. Camaronês, nascido em 1957, testemunhou o processo de descolonização de seu país – uma guerra sangrenta equivalente ao processo argelino e com estimativas de 60 mil vidas perdidas – e, com formações entre graduações e pós graduações em História, Ciências Políticas e Filosofia, tem manifestado interesse nos temas de Filosofia Política abordando questões da África contemporânea descolonizada. Mbembe tem atuações profissionais nas universidades norte-americanas de Duke, Harvard, Columbia, Yale e na Universidade Witwatersrand em Joanesburgo na África do Sul.

O livro alvo desta resenha chama-se Necropolítica: Biopoder, Soberania, Estado de exceção, política da morte publicado pela primeira vez na França em 2003, mas que possuiu edição brasileira só em 2018. Trata-se de um pequeno ensaio de cerca de 70 páginas na edição brasileira nas quais o autor irá desenvolver o seu conceito de necropolítica. Embora seja um texto curto, o leitor deve preparar-se para refletir sobre questões densas acerca de perspectivas de autores chaves para Mbembe e de abordagens de difícil digestão, porem necessárias, em relação aos pesados temas apresentados no texto. Leia Mais

Crítica da Razão Negra | Achille Mbembe (R)

O camaronês Achille Mbembe obteve seu doutorado na Universidade de Sorbonne em 1989 e posteriormente obteve o DEA em Ciência Política no Instituto de Estudos Políticos de Paris. Atua como professor e pesquisador de História e Política no Instituto Wits para Pesquisa Social e Econômica em Joanesburgo, África do Sul, e no Departamento de Estudos Românticos do Instituto de Humanidades Franklin, Duke University. Ele também ocupou cargos na Columbia University, Berkeley, Yale University, na University of California e Harvard.

As obras de Mbembe publicadas no Brasil são: Sair da grande noite: Ensaio sobre a África descolonizada (2019); Necropolítica (2018); Crítica da Razão Negra (2018) e Políticas da Inimizade (2017). A sua produção acadêmica ganhou destaque no campo de estudos pós-coloniais e contribuiu para a abertura de uma nova discussão epistemológica sobre a categoria negro.

Para além de sistematizar conceitos e categorias interpretativas, os estudos pós-coloniais, mas recentemente a decolonialidade, consiste também numa prática de oposição e intervenção contra os desígnios imperialistas. Esse projeto é aquele que, ao identificar a relação antagônica entre colonizador e colonizado, busca denunciar as diferentes formas de dominação e opressão dos povos.

De acordo com o antropólogo venezuelano Fernando Coronil1, é possível afirmar que o pós-colonialismo como termo apareceu nas discussões sobre a decolonização2 de colônias africanas e asiáticas depois da Segunda Guerra Mundial, tendo sido produzido, principalmente, por intelectuais do Terceiro Mundo que estavam radicados nos departamentos de estudos culturais, de língua inglesa, antropologia das universidades inglesas e posteriormente das universidades norte-americanas.

A professora Larissa Rosevics explica que a maior parte das pesquisas pós-coloniais seguiu a trajetória dos estudos literários e culturais, através da crítica a modernidade eurocentrada, da análise da construção discursiva e representacional do ocidente e do oriente, e das suas consequências para a construção das identidades pós-independência.

A preocupação dos estudos pós-coloniais esteve centrada nas décadas de 1970 e 1980 em entender como o mundo colonizado é construído discursivamente a partir do olhar do colonizador, e como o colonizado se constrói tendo por base o discurso do colonizador.3

Achille Mbembe considera urgente debater a razão negra e retomar o diálogo sobre o conjunto de disputas acerca das regras de definição do negro e da problemática da raça. Para o autor, não há colonialismo que não esteja vinculado a uma forte dose de racismo estrutural. Nesse sentido, interessa compreender que, como consequência direta desta lógica dominante, o negro e a raça viraram sinônimos no imaginário das sociedades europeias.

Seguindo o pensamento do psiquiatra martiniquense Frantz Fanon, Mbembe declara que a ideia de raça começa a ser construída a partir da modernidade burguesa com processos de colonização da América e o tráfico de pessoas escravizadas e arrancadas do continente africano. Essa construção da raça se consolida no século XIX, com a hegemonia do capitalismo, e está vigente com algumas transformações na contemporaneidade.

Fanon compreende que a ideia de raça esteve como uma das formas de legitimação das relações de poder e o racismo como um elemento que tem consequência direta na destruição dos valores culturais do grupo colonizado. O autor acredita na necessidade de destruir o signo do negro e do branco para construir uma sociedade onde a cor da pele, o fenótipo, não constituí marcador social estruturante das relações sociais.4

Entretanto, Mbembe tenta renovar e reinterpretar nossa compreensão de poder e subjetividade na África contemporânea e subverter alguns pressupostos dos estudos pós-coloniais. Ele afirma que a África não é mais a colônia que Frantz Fanon descreveu em sua obra Os condenados da Terra. O objetivo do seu trabalho é construir uma forma mais dinâmica de pensar que leve em consideração as complexidades dos povos africanos que emergiram recentemente da experiência da colonização e da violência.

Seguindo a linha de outros pensadores pós-coloniais, Mbembe dialoga com a o conceito de Négritude, de Aimé Césaire5 e de Movimento Pan-Africano de Marcus Garvey. Contudo, o autor acredita que, assim como Frantz Fanon, esses intelectuais resgatam o negro da subalternidade dando-lhe uma identidade própria, mas continuam a manter a raça enquanto conceito diferenciador.

Debater a razão negra é, portanto, retomar o conjunto de disputas acerca das regras de definição do negro na contemporaneidade. Para o historiador indiano Sanjay Seth, a própria ideia de razão se constituiu, em parte, por meio de uma série de exclusões. Assim como a modernidade europeia se consagrou como o futuro de todos, também as tradições intelectuais não-europeias se tornaram antecipações inferiores da Razão universal. O autor argumenta que:

Pluralizar a razão não significa abandonar o raciocínio; negar que existe um ponto arquimédico, a partir do qual é possível exercer a crítica, não é defender o fim da crítica. Mas é, sim, defender uma reconsideração daquilo que pensamos estar fazendo quando redescrevemos o(s) passado(s) dos povos em termos que lhes são alheios. Se o que existe é não a Razão, e sim tradições de raciocínio; não a História e suas representações na escrita da história, e sim muitos passados re-presentados de muitas formas, então não podemos escrever com qualquer presunção de privilégio epistêmico.6

Em defesa à razão negra, Mbembe demonstra a ligação que existe entre a razão kantiana e os conceitos de modernidade e de colonialidade. O autor declara que a razão universal supõe a existência de um sujeito igual, cuja universalidade é incorporada pela sua humanidade. Encontramos o mesmo projeto de universalização na colonização. Esta apresenta-se, pelo menos no plano retórico, como resultado do Iluminismo. Assim, segundo Mbembe, os negros tinham desenvolvido concepções da sociedade que não contribuíam para o poder dessa invenção da razão universal.

É também a razão que faz com que, desde o início, o discurso sobre a identidade negra esteja cativo de uma tensão, da qual tem ainda dificuldade de libertar-se. Daí o autor questionar se o negro faria parte da identidade humana em geral ou deveria antes, em nome da diferença e da singularidade, insistir na possibilidade de figuras culturais diversas de uma mesma humanidade, figuras culturais de vocação não autossuficiente, e cujo destino final é universal.

A formação das identidades africanas contemporâneas não se faz de todo em referência a um passado vivido como um destino lançado, mas a partir da capacidade de colocar o passado entre parênteses, condição de abertura ao presente e à vida em curso. Ao levar em consideração esse conceito, Mbembe menciona a identidade em devir, que se alimenta simultaneamente de diferenças entre os Negros, tanto do ponto de vista étnico, geográfico, como linguístico, e de tradições herdeiras do encontro com Todo o Mundo.

Dessa maneira, a identidade em devir é um processo dinâmico, contínuo e inacabado. Achille Mbembe refere-se a um “devir-negro do mundo”, em que toda a Humanidade subalterna corre o risco de se tornar negra, e em que as desigualdades em que todo o processo assenta correm o risco de se disseminarem rapidamente. O autor amplia a categoria de negro a uma condição universal a que todos estarão sujeitos pelo fato do neoliberalismo,7 na sequência dos novos modelos de exploração que o caracterizam, olhar para todos enquanto negros, com a consequente ideia de submissão associada.

Essa identidade não é fruto da consciência individual. Ela é uma relação social estruturante que transcende o nível do indivíduo. É construída historicamente e concretamente. A identidade parece construir-se no cruzamento entre este ritual de enraizamento e o ritmo de afastamento, na constante passagem do espacial ao temporal e do imaginário ao órfico. O segundo revela uma prática de fronteira determinante entre as identidades itinerantes, de circulação.

Historicamente, Mbembe menciona que a ligação ao território e ao solo em África sempre dependeu do contexto. Em alguns casos, as entidades políticas tinham como delimitação não as fronteiras, no sentido clássico do termo, mas uma imbricação de espaços múltiplos, constantemente feitos, desfeitos e refeitos tanto pelas guerras e conquistas como devido à mobilidade de bens e pessoas.

Escalas muito complexas permitem estabelecer correspondências produtivas entre as pessoas e as coisas, podendo ser convertidas umas nas outras, como aconteceu durante o tráfico de escravos. Poderíamos dizer que, operando por empurrões, destacamentos e cisões, a territorialidade pré-colonial é uma territorialidade itinerante. Da mesma maneira, esta era uma das modalidades de constituição de identidades.

Tudo começa, para Mbembe, por um ato de identificação: «Eu sou um negro». O ato de identificação constitui a resposta a uma pergunta que se faz: «Quem sou eu, portanto?»; ou que nos é feita: «Quem são vocês?». No segundo caso, trata-se de uma resposta a uma intimidação. Trata-se, em ambos os casos, de revelar a sua identidade, de a tornar pública. Mas revelar a sua identidade é também reconhecer- se, é saber quem se é e dizê-lo ou, melhor, proclamá-lo, ou também dizê-lo a si mesmo. O ato de identificação é igualmente uma afirmação de existência. «Eu sou» significa, desde logo, eu existo.

A própria raça é entendida como um conjunto de propriedades fisiológicas visíveis e de características morais discerníveis em Crítica da Razão Negra. São estas propriedades e características que, pensa-se, distinguem as espécies humanas entre si. As propriedades fisiológicas e as características morais permitem, por outro lado, classificar as espécies dentro de uma hierarquia na qual os efeitos da violência são ao mesmo tempo políticos e culturais. É esta negação de humanidade (ou este estatuto de inferioridade) que obriga o discurso dos Negros a inscrever-se, desde as suas origens, numa tautologia: também somos seres humanos.

Notas

1 CORONIL, Fernando. Elephants in the Americas? Latin American pós-colonial studies and global decolinization. In: MORAÑA, Mabel; DUSSEL, Enrique; JÁUREGUI, Carlos (Eds.). Coloniality at large: latin american and poscolonial debate, p. 396-416. Durhan; London: Duke University Press, 2008.

2 O uso do termo “decolonial” ao invés de “descolonial” é uma indicação de Walter Mignolo para diferenciar os propósitos do Grupo Modernidade/Colonialidade e da luta por descolonização do pós-Guerra Fria, bem como dos estudos pós-coloniais asiáticos. Cf.: MIGNOLO, Walter. Cambiando las éticas y las políticas del conocimiento: lógicas de la colonialidad y poscolonialidad imperial. Tabula Rasa, n.3, 2005, pp.47-72.

3 ROSEVICS, Larissa. Do pós-colonial à decolonialidade. In: CARVALHO, Glauber. ROSEVICS, Larissa (Orgs.). Diálogos internacionais: reflexões críticas do mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Perse, 2017.

4 FANON, Frantz. Os condenados da terra. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005.

5 CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Lisboa: Sá da Costa, 1978.

6 SETH, Sanjay. Razão ou Raciocínio? Clio ou Shiva? História da Historiografia, Ouro Preto, no. 11, abril 2013, p. 173-189.

7 Por neoliberalismo o autor entende como uma fase da história da Humanidade dominada pelas indústrias do silício e pelas tecnologias digitais. O neoliberalismo é a época ao longo da qual o tempo (curto) se presta a ser convertido em força reprodutiva da forma-dinheiro. Tendo o capital atingido o seu ponto de fuga máximo, desencadeou-se um movimento de escalada. O neoliberalismo baseia-se na visão segundo a qual «todos os acontecimentos e todas as situações do mundo vivo (podem) deter um valor no mercado.

Ana Luiza Rios Martins – Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Atualmente é professora do curso de Licenciatura em História da Universidade Aberta do Brasil/ Universidade Estadual do Ceará. E-mail: [email protected]  ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2627-5144


MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1 edições, 2018. Resenha de: MARTINS, Ana Luiza Rios. Crítica da razão negra e a introdução ao pensamento decolonial. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.39, n.1, p.514-518, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR]

Necropolítica

Achille Mbembe, ou Joseph-Achille Mbembe, é um pensador, professor e filósofo contemporâneo nascido no ano de 1957 em Centre, Camarões, que tem trazido grandes contribuições para o estudo do pós-colonialismo e, ao longo da produção aqui apresentada, tem a habilidade de relacionar diferentes realidades em uma mesma linha de raciocínio, com interpretações significativas e coerentes.

Necropolítica, em sua proposta inicial, foi publicado no Brasil pela primeira vez no ano de 2016, em forma de artigo, na revista Arte & Ensaio, vinculada ao Programa de PósGraduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Quanto ao livro, teve publicação em 2018 e, ao longo de poucas páginas, dividese em cinco tópicos que contam com discussões muito precisas, capazes de fazer conexões entre a contemporaneidade e as heranças históricas construídas a partir de práticas de dominação do Estado – que, através de discursos racistas e excludentes, fez emergir as mais variadas formas de violência e genocídio. Leia Mais

Políticas da inimizade | Achille Mbembe

Saiu em português de Portugal pela Antígona, com o título Políticas da inimizade, a tradução de Politiques de l’inimitié, publicado em 2016 pela Éditions La Découverte, do professor de história e de ciência política Achille Mbembe. Nascido em 1957 em Otété, Camarões, um dos mais importantes intelectuais cosmopolitas da atualidade, o autor leciona no Witwatersrand Institute for Social and Economic Research e já publicou títulos importantes como Crítica da razão negra (MBEMBE, 2014) que também tem tradução em Portugal, original, Critique de la raison nègre (MBEMBE, 2013a), Sortir de la grande nuit (MBEMBE, 2013b) e De la postcolonie (MBEMBE, 2000).

O livro tem cinco capítulos, alguns deles já publicados em revistas em edições anteriores, uma introdução e uma conclusão. Além do profundo e crítico diálogo com os estudos pós-coloniais, o chamado pós-estruturalismo e a historiografia e teoria política contemporâneas, familiar para quem conhece o autor, os ensaios possuem um interlocutor principal: o martiniquenho Frantz Fanon. Leia Mais

Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte – MBEMBE (FH)

MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. São Paulo: N-1 edições, 2018, 80p. GARRIDO, Mírian Cristina de Moura. A emergência das discussões de Achille Mbembe no Brasil. Faces da História, Assis, v.7, n.1, p.499-500, jan./jul., 2020.

Desde a aprovação da Lei 10.639, em 2003, o debate sobre o tema História da África tem crescido dentro do campo acadêmico, estimulando pesquisas e produções editoriais. Incontestavelmente, a discussão e aprovação de tal lei foi uma conquista do movimento negro contemporâneo (PEREIRA, 2016). Ademais, se as primeiras pesquisas indicavam a ausência de literatura especializada para formação de professores e suporte didático (PANTOJA; ROCHA, 2004), a realidade em 2020 é outra.

A princípio o cenário começou a se modificar pela iniciativa do próprio Estado brasileiro em traduzir, publicar e disponibilizar gratuitamente a ímpar coleção História Geral da África. Dividida em oito volumes e criada por iniciativa da UNESCO, a coleção reúne pesquisadores do continente (majoritariamente) e africanistas para o debate do método e da História da África em seus diferentes períodos históricos.

A esse esforço somaram-se pesquisadores brasileiros que já vinham se dedicando ao tema, a introdução de disciplinas nas Licenciaturas e de linhas de pesquisas na pós-graduação dedicadas à essa área, ou a ele correlatos, e a produção e divulgação dessas pesquisas.

Parte das editoras, que até então afirmavam a ausência de um público consumidor sobre a História da África – historiográfica ou literária – no país, passaram a produzir e publicar livros a respeito da temática. Exemplar desse argumento são os livros do moçambicano Mia Couto, que entre 2008 e 2018 teve vinte e dois livros publicados no Brasil pela Companhia das Letras e tem frequentado as feiras literárias no país desde então.

Outro autor que tem estado em voga é o camaronês Achille Mbembe (1957-). Doutor em História pela Sorbonne e atualmente professor de História e de Ciências Políticas do Instituto Witwatersrand, em Joanesburgo, na África do Sul. No Brasil, suas ideias têm sido divulgadas por meio de três livros: Sair da Grande Noite: ensaios sobre a África descolonizada (2019); Crítica da Razão Negra (2018); Necropolítica (2018). É sobre esse último que essa resenha se debruça.

O livro apresenta-se como um ensaio, resultado do diálogo do autor com outros intelectuais – aos quais identifica e agradece no fim da obra. A Necropolítica parte da definição de soberania e biopoder (a partir da leitura de Foucault1), para determinar que a soberania é exercer o controle sobre a mortalidade, definir quem deve viver e quem não deve viver, ou nas palavras do autor, a soberania permite definir “quem é ‘descartável’ e quem não é” (MBEMBE, 2018, p. 41).

Mbembe reconhece no racismo o modelo exemplar do que chama de “tecnologia destinada ao exercício do biopoder” (2018, p. 18), isto é, o direito soberano de matar. Refletindo sobre os Estados escravistas e os regimes coloniais contemporâneos (sem, contudo, pormenorizar a construção da raça e das hierarquias raciais do século XIX e XX), o autor afirma que ambos são experiências máximas de: ausência da liberdade, expressões de terror, símbolos da perda do lar, direitos ao corpo e do estatuto político (em especial no escravismo), manifestação do poder de controle de uns sobre o corpo/desejo de outros, em ambos os casos.

A ênfase e contribuição maior do ensaio, porém, não está na questão do escravismo ou do racismo, mas sim nas técnicas e dispositivos da mentalidade dos governos contemporâneos e suas formas de controle e de guerra. Essa última, levada a cabo na contemporaneidade, com o objetivo de se instalar a completa submissão do inimigo, sem mensurar os impactos colaterais para a sociedade civil.

Esse modelo de guerra, descrito como característico da “época da globalização”, é exemplificado no livro com a Guerra de Kosovo, onde houve a destruição da infraestrutura tais como ferrovias, rodovias, redes de comunicação, depósitos de petróleo, centrais elétricas e tratamento da água, estendendo, assim, os danos à população local. Contudo, para o autor, há uma racionalidade na morte inerente à essas formas de composição de Estado e concepção de soberania, que reside na já mencionada submissão total do inimigo.

O exemplar da definição do necropolítica está, para o autor, na ocupação contemporânea da Palestina. “Aqui, o Estado colonial tira sua pretensão fundamental de soberania e legitimidade da autoridade de seu próprio relato da história e da identidade. Essa narrativa é reforçada pela ideia de que o Estado tem o direito divino de existir; e entra em competição com outra narrativa pelo mesmo espaço sagrado” (MBEMBE, 2018, p. 42). Nesse caso, a violência e a soberania reivindicam um elemento divino, na qual a identidade do grupo é buscada na divindade e construída em oposição ao “outro” e sua divindade.

O leitor que iniciou seu conhecimento de Mbembe por meio do Crítica da Razão Negra frustra-se pela pouca atenção concedida às discussões sobre escravismo, colonialismo e racismo. Frustra-se, contudo, por algo que não era prometido pela obra e comete um erro, pois a partir dessas considerações sobre a necropolítica o leitor pode, por si mesmo, construir diálogos com o racismo estrutural e institucional brasileiro, o genocídio deliberado contra os negros, o encarceramento em massa da população afro, a segregação espacial da população no país, e assim por diante… Todos elementos corroboram com a ideia de que o Estado adota políticas de morte, definindo inimigos e estabelecendo aqueles que são ou não são descartáveis.

Referências

KI-ZERBO, Joseph et al. História geral da África. Metodologia e pré-história da África. Brasília: Ministério da Educação, 2011. v. 1.

MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. São Paulo: N-1 Edições, 2018.

MBEMBE, Achille. Sair da Grande Noite: ensaios sobre a África descolonizada. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 2019.

PANTOJA, Selma; ROCHA, Maria José. Rompendo Silêncios: História da África nos Currículos da Educação Básica. Brasília: DP Comunicações Ltda., 2004.

PEREIRA, Amilcar Araújo. O movimento negro brasileiro e a Lei 10.639: da criação aos desafios de implementação. Revista Contemporânea da Educação, Rio de Janeiro, v. 11, n. 22, p. 13-30, jan/abr. 2016.

Mírian Cristina de Moura Garrido – Doutora pela Universidade Estadual Paulista, Assis – SP, pós-doutoranda em História, pela Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos – SP. E-mail: [email protected].

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Crítica da razão negra | Achille Mbembe

Tomemos de empréstimo ao texto de Achille Mbembe uma passagem que nos servirá de ponto de partida para este comentário sobre sua obra Crítica da razão negra, recém-publicada no Brasil:

Há nomes que carregamos como um insulto permanente e outros que carregamos por hábito. O nome “negro” deriva de ambos. Por fim, mesmo que determinados nomes possam ser lisonjeiros, o nome “negro” foi, desde sempre, uma forma de coisificação e de degradação. Seu poder era extraído da capacidade de sufocar e estrangular, de amputar e de castrar. Aconteceu com esse nome o mesmo que com a morte. Uma íntima relação sempre vinculou o nome “negro” à morte, ao assassinato e ao sepultamento.1 Leia Mais

Crítica da razão negra – MBEMBE (Topoi)

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. 1. ed., Lisboa: Antígona, 2014. Tradução de Marta Lança. Resenha de: ROBYN, Ingrid. Capitalismo, esquizofrenia e raça. O negro e o pensamento negro na modernidade ocidental. Topoi v.18 n.36 Rio de Janeiro Sept./Dec. 2017.

Crítica da razão negra, de Achille Mbembe (original em francês pela editora La Découverte, 2013), é um desses livros que nasceu já clássico: clássico não no sentido de antigo, ou imune à passagem do tempo, mas no sentido borgeano de ter sido escolhido por uma comunidade de leitores como leitura obrigatória. E o livro é, de fato, leitura obrigatória não apenas para aqueles que se interessam pela questão do “negro”,1 mas para todos aqueles que, de alguma forma, se interessam pela relação entre raça e modernidade, ou posto de outra maneira: raça, Estado e mercado. Porque o que o autor denomina devir-negro do mundo é, concretamente, uma teoria explicativa das relações entre o pensamento racial no mundo ocidental e a emergência da modernidade em sua relação intrínseca com o desenvolvimento do Estado moderno e do capitalismo, sobretudo da chamada acumulação primitiva do capital (que, diga-se de passagem, tanto Mbembe como a teórica italiana Silvia Federici não veem como uma etapa superada do desenvolvimento do capitalismo, e sim como algo ainda em curso). Situando-se entre a filosofia, a história e a crítica, Crítica da razão negra é, ao mesmo tempo, uma abrangente e provocadora reflexão sobre os conceitos de “raça”, “negro” e “África” no ocidente, e um panorama histórico das relações raciais no mundo ocidental entre os séculos XV e XXI. Ao mesmo tempo que analisa os processos históricos dos quais derivam estes conceitos, Mbembe também nos oferece um recorrido do que eu chamaria “pensamento negro” – a sua “razão negra” -, dialogando criticamente com uma série de filósofos, teóricos e escritores negros que se debruçaram sobre a sua condição e refletiram sobre as possibilidades de emancipação do negro no mundo ocidental; uma tradição cujo ponto alto o autor localiza entre as décadas de vinte e setenta do século XX, mas de cuja ideias ele se apropria para pensar o século XXI.

Apesar de que percorre um longo caminho histórico, a maior parte do livro se concentra em dois momentos históricos especialmente paradigmáticos da história das relações entre Europa e África, assim como a construção dos conceitos de “negro” e “raça”: o pensamento ilustrado do século XVIII francês e o colonialismo europeu sobre o continente africano no século XIX. Se bem faz remontar o termo “negro” ao século XVI, e conceda especial atenção à maneira como esta categoria opera nas Américas francesa e inglesa, é durante o iluminismo e o neocolonialismo europeus que Mbembe localiza o ponto nodal da construção do negro como sujeito racializado no Ocidente e, como tal, contraponto à humanidade encarnada pelo “branco”:

o Negro e a raça têm significado, para os imaginários das sociedades europeias, a mesma coisa. (…) a sua aparição no saber e no discurso modernos sobre o homem (e, por consequência, sobre o humanismo e a Humanidade) foi, se não simultâneo, pelos menos paralelo; e, desde o início do século XVIII, constitui, no conjunto, o subsolo (inconfessado e muitas vezes negado), ou melhor, o núcleo complexo a partir do qual o projeto moderno de conhecimento – mas também de governação – se difundiu. (p. 10)

Antes de entrar a fundo no conteúdo do texto, no entanto, proponho uma pergunta: por que a tradução portuguesa do livro saiu três anos antes da sua tradução ao inglês, quando o mercado de editoras acadêmicas nos Estados Unidos – para ficar apenas com os Estados Unidos – é reconhecidamente mais ativo e mais lucrativo que o mercado editorial português tomado em seu conjunto?

A pergunta permite um sem-fim de hipóteses. Uma hipótese seria a de que foram os portugueses os primeiros europeus a ocupar as costas africanas e estabelecer o tráfico de escravos daquele continente, para o resto do mundo. A teoria, no entanto, é preguiçosa: sabemos do papel de companhias inglesas no tráfico de escravos de origem africana e, mais importante, do papel preponderante das colônias da América do Norte no que diz respeito à construção da categoria “negro”. Além disso, tal hipótese apelaria ao nacionalismo português, algo do que o livro de Mbembe se afasta de forma notável.

Outra hipótese seria o interesse que o livro poderia suscitar em outros países de língua portuguesa, sobretudo as ex-colônias portuguesas na África e o Brasil. Mais condizente, esta hipótese não explica o outro lado da história: o fato de que o livro tenha demorado tanto em publicar-se em língua inglesa, quanto Mbembe na verdade confere certo protagonismo à Inglaterra e aos Estados Unidos tanto no que diz respeito ao tráfico negreiro e à escravidão como à construção das fabulações responsáveis pelo surgimento da figura do negro, e que em última instância determinariam os rumos da ideologia racial na modernidade.

Uma possível resposta encontra-se, talvez, na tese central que Mbembe desenvolve ao longo deste livro, e que encontra particular resistência no mundo anglo-saxão: a ideia de que o liberalismo – tanto econômico, como político – não é incompatível com a escravidão e o racismo; ao contrário, é o liberalismo que cria o negro e a noção de “raça”, indissociável desta figura. Para Mbembe, ao mesmo tempo que o Estado moderno surge com e para o mercado global – é a máquina de guerra do Estado moderno que permite a empresa colonial, isto é, a escravidão em massa, o sistema de plantação e a acumulação primitiva de capital -, o liberalismo é a ideologia que justifica esta operação. Obviamente, Mbembe diferencia os processos históricos e ideologias específicos que distinguem o colonialismo dos séculos XV-XVIII, daqueles que irão caracterizar o século XIX e boa parte do século XX. No entanto, o autor não observa uma real ruptura entre esses dois tipos de colonialismos – e capitalismos – no que diz respeito à questão do negro. Ao contrário, é o surgimento da noção de humanidade, no esteio do iluminismo e o liberalismo, o que garante a definitiva separação desta entre “brancos” – sinônimo de “homem”, neste contexto – e “negros” – vistos como uma outredade absoluta, como espécie de semi-homens cuja diferença radical frente ao “homem branco” justificaria a empresa colonizadora. Nos termos de Walter Migonolo, seria no século XVIII que se processa a separação dos homens entre humanitas e anthropos.

É esta a tese que o autor desenvolve nos três primeiros capítulos do livro, “A questão da raça”, “O poço da alucinação” e “Diferença e autodeterminação”. Seu ponto de partida, o questionamento das categorias “negro” e “África”, e com elas, da noção de “raça”. Para Mbembe, o negro é uma ficção, um conjunto de fabulações elaboradas no esteio do capitalismo mercantil e do estabelecimento do sistema de plantação. A criação da categoria “negro”, à qual logo se vincularia a noção de “raça”, teria por finalidade estabelecer uma diferença radical, entendida como insuperável, entre a humanidade europeia e esse outro, o negro, sobre o qual se projetam todo tipo de medos e ansiedades. Esse outro, prossegue Mbembe, não seria homem no sentido pleno da palavra, mas sim objeto: pré-humano, vivendo em estado primitivo, incapaz de autogovernar-se, o negro seria então reduzido à condição de escravo – mercadoria e trabalho – e a empresa colonial justificada como obra “civilizatória” e inclusive “humanitária”; algo que, segundo o autor, continuaria informando o neoliberalismo do século XXI e os processos de globalização.

Junto com as categorias “negro” e “raça”, surge a “África”, terra desconhecida e que não se quer conhecer, sobre as quais se projetariam também uma série de fabulações. A partir de então, negro e África passariam a ser diretamente associados: o colonialismo e o desenvolvimento do capitalismo dariam lugar, ao mesmo tempo, a uma territorialização da raça e racialização do espaço. Essa associação sine qua non entre negro e África é algo que os próprios sujeitos negros abraçariam em seus primeiros intentos de emancipação, reclamando sua “africanidade essencial” como parte de sua identidade, e canibalizando assim o discurso europeu.

Outro aspecto fundamental destes capítulos são as íntimas relações que se estabelecem entre o Estado moderno, o mercado e o racismo. Para Mbembe, o Estado moderno surge como instrumento do mercado e produto da razão mercantilista, a partir dos quais não apenas se estabelece uma partilha do mundo, mas uma partilha na qual a raça ocupa um papel central. Se o principal objetivo da lei e da burocracia é a coerção e controle dos corpos, e o medo é o principal instrumento do Estado – como já afirmara Michel Foucault -, é sobre o negro que irá se projetar este medo, e portanto sobre seu corpo que se exercerá o controle do Estado. Além do mais, o surgimento do direito moderno, na Europa, implicou entender tudo o que está além dela – homens incluídos – como ao mesmo tempo além e aquém da lei. Para Mbembe, o Estado moderno e o liberalismo surgem, então, como instrumentos biopolíticos por excelência que irão permitir e justificar a escravização do negro – entendido como ameaça, como conjunto de fabulações e de disparates que por sua vez disparam afetos -, o estabelecimento do sistema de plantação e, com isto, de um mercado global:

No ensaio La Naissance de la biopolitique, Foucault defende que, na origem, o liberalismo “implica intrinsecamente uma relação de produção/destruição [com] a liberdade”. Esquece-se de explicar que, historicamente, a escravatura dos Negros representa o ponto culminante desta destruição da liberdade. Segundo Foucault, o paradoxo do liberalismo é que “é necessário, por um lado, produzir a liberdade, mas esse próprio gesto implica que, do outro lado, se estabeleçam limitações, controles, coerções, obrigações apoiadas em ameaças, etc.” A produção da liberdade tem portanto um custo cujo princípio de cálculo é, acrescenta Foucault, a segurança e a protecção. Por outras palavras, a economia do poder característica do liberalismo e da democracia do mesmo tipo assenta no jogo cerrado da liberdade, da segurança e da protecção contra a omnipresença da ameaça, do risco e do perigo. (…) O escravo negro representa este perigo. (p. 143)

É neste sentido que o liberalismo e inclusive o discurso sobre direitos humanos solidificam o racismo. O liberalismo econômico tem por base o comércio de escravos, responsável pelo desenvolvimento do capitalismo e pelo que hoje chamamos globalização. Neste contexto, o negro ocupa o papel de mercadoria e de matéria energética: ele é, ao mesmo tempo, homem-mineral (não homem, natureza), homem-metal (escravo, instrumento de extração) e homem-moeda (produtor de mercadorias e mercadoria em si mesmo). Por sua vez, o liberalismo político e o discurso sobre os direitos humanos, herdeiro do iluminismo, utilizam a escravidão como metáfora da condição humana em seu conjunto, ao mesmo tempo que apagam a existência do racismo sob a bandeira da igualdade e da fraternidade: trata-se de um discurso universalizante que, por isso mesmo, é incapaz de dar conta da diferença histórica sobre a qual se fundam as categorias “negro” e “raça”. Ao contrário, sugere Mbembe, trata-se de reafirmá-las ante a suposta impossibilidade de conciliação entre a “raça branca”, portadora de humanidade e cidadania plenas, e a “raça negra”:

O direito é, portanto, neste caso, uma maneira de fundar juridicamente uma certa ideia de Humanidade enquanto estiver dividida entre uma raça de conquistadores e uma raça de servos. Só a raça de conquistadores é legítima para ter qualidade humana. A qualidade do ser humano não pode ser dada como conjunto a todos e, ainda que o fosse, não aboliria as diferenças.2 (p. 111)

O século XIX concluiria o trabalho de exclusão a partir do qual a África e o negro se vêm separados da “história da civilização”: sem lei e nem razão, a África e o negro deveriam ser paulatinamente “introduzidos” ao processo civilizatório sob a égide europeia. A noção de “decadência do ocidente”, bastante popular nas primeiras décadas do século XX, e o exotismo com o qual se recobre o continente africano – visto pela vanguarda europeia e também caribenha como portador de uma vitalidade perdida no velho continente -, não fazem senão reafirmar esses discursos, ainda quando se buscava reivindicar o termo “negro” como categoria de autodeterminação, e não mera projeção alheia.

Paralelamente à descrição dos processos históricos que discute, Mbembe vai deslindando o pensamento negro, a sua “crítica da razão negra”, à que irá se dedicar de maneira mais direta a partir do capítulo três. Durante os séculos XV-XVIII, o negro expressa uma espécie de cisão a partir do qual habita a si mesmo como um outro, expressando mesmo um desejo de ser outro – como já o havia sugerido Franz Fanon. Neste primeiro momento, o negro abraçaria os discursos e fabulações que o constroem como tal e lhe retiram a sua humanidade, ao mesmo tempo que está obrigado a reconhecer sua condição humana. Mesmo com o fim do tráfico de escravos e os movimentos de emancipação do século XIX, afirma Mbembe, o pensamento negro reproduziria as três respostas elaboradas pelo Ocidente no que diz respeito ao “problema africano”: a noção de que África representaria uma humanidade sem história, aquém da razão e da lei; a noção de que a diferença radical do negro é algo a emendar-se, para o qual se faria necessário administrar, ainda que de forma indireta, tanto os escravos libertos e seus descendentes como o continente africano como um todo; a ideia de que o negro deve assimilar-se ao projeto civilizatório europeu para tornar-se um ser humano e um cidadão.

Se nesse primeiro momento o negro experimentaria um processo de desapropriação e de degradação, num segundo momento, o pensamento negro se caracterizaria pela vitimização. Para Mbembe, o pensamento negro do século XIX e inícios do século XX teria sido incapaz de escapar do universalismo e humanismo liberal-ilustrados, abraçando a noção de reabilitação como forma de afirmar a sua humanidade. Neste contexto, o pensamento negro não nega, mas sim incorpora a noção de raça, fazendo dela fundamento para sua ideia de nação:

A reafirmação de uma identidade humana negada por outro participa, neste sentido, do discurso da refutação e da reabilitação. Mas se o discurso da reabilitação procura confirmar a co-pertença negra à Humanidade, não recusa, no entanto – exceto em raros casos -, a ficção de um sujeito de raça ou da raça em geral. Na realidade, abraça esta ficção. Isto é tão válido para a negritude como para as variantes do pan-africanismo. (p. 158)

Além disso, e como vítima, o negro passaria a ver a sua própria história como série de fatalidades causadas por um inimigo externo, planteando a necessidade de superar o seu passado e inclusive esquecê-lo, para poder gerar uma possibilidade de futuro.

É este, em grande medida, o tema do capítulo quatro deste livro, “O pequeno segredo”, dedicado à questão da memória e ao que o autor denomina “modos de inserção da colônia no texto negro”. Como origem da cisão fundamental a partir da qual emerge o negro, locus de uma perda originária, a colônia será contraditoriamente algo comemorado e relegado ao esquecimento. A colônia, afirma Mbeme, se apresenta para o negro ao mesmo tempo como violência e como espécie de espelho no qual se reconhece a si mesmo. Neste sentido, a memória da colônia se apresentará como ponto fulcral da literatura negra, e com ela, o problema do olhar: é o olhar do colonizador que cria o negro, um olhar que não vê mais além de um corpo sobre o qual projeta todo tipo de ansiedade sexual, e que se alimenta da sua própria ignorância:

África propriamente dita – à qual acrescentaria o Negro – só existe a partir do texto que a constrói como ficção do outro. (…) Por outras palavras, África só existe a partir de uma biblioteca colonial por todo o lado imiscuída e insinuada, até no discurso que pretende refutá-la, a ponto de, em matéria de identidade, tradição ou autenticidade, ser impossível, ou pelo menos difícil, distinguir o original da sua cópia e, até, do seu simulacro. (p. 166)

Outro aspecto que Mbembe associa à colônia é seu papel como produtora de desejos e alucinações. A colônia, afirma ele, faz circular no continente africano toda uma série de mercadorias e bens simbólicos que excitam o desejo dos colonizados, que passam quase imediatamente a ser considerados signos de prestígio, status, classe etc. Nesse sentido, a colônia é, também, objeto de desejo. Sua memória, então, apresenta-se à literatura africana como algo que ultrapassa os limites daquilo que a linguagem pode expressar, mas também como inelidível.

O quinto capítulo de Crítica da razão negra, “Réquiem para o escravo”, está dedicado quase exclusivamente à literatura negra. Neste capítulo, Mbembe se debruça sobre certos motivos correntes na literatura contemporânea, e que remetem à duplicidade de que nela se recobre a figura do negro: reverso da humanidade, mas incapaz de ignorar sua condição humana, o negro se identifica com seu duplo, a sua sombra, convertendo-se em espécie de fantasma, alienado do próprio corpo. Na realidade – e aqui Mbembe se afasta notavelmente do marxismo clássico -, dissociar-se do próprio corpo, metamorfosear-se, seria condição fundamental para a emancipação do negro, uma vez que a operação básica do capitalismo racial consiste precisamente em converter o negro em corpo para o trabalho, isto é, em objeto.

O último capítulo do livro, “Clínica do sujeito”, nos oferece um recorrido do pensamento negro no século XX, analisando criticamente diferentes propostas de emancipação que marcaram o período: especificamente, as de Marcus Garvey, Aimé Césaire, Franz Fanon e Nelson Mandela. Após comentar em detalhe cada um desses pensadores, Mbembe propõe dividir o pensamento negro contemporâneo em dois períodos: um primeiro no qual o desejo de autodeterminação passaria pela afirmação da diferença e celebração da negritude, do qual o exemplo máximo seria Aimé Césaire; e um outro, o do século XXI, no qual se abraçaria o significante negro não como forma de autoafirmação ou autocompadecimento, mas sim para melhor livrar-se dele. Para Mbembe, o atual mundo globalizado requereria uma crítica radical da raça, tanto política como ética, a partir da qual seria possível passar de uma afirmação da diferença para uma afirmação da comunidade humana. Valendo-se, sobretudo, de Fanon, e estendendo a questão do negro ao que o autor chama “novos condenados da terra”, Mbembe afirma que qualquer projeto efetivamente emancipador, nos dias de hoje, requer que o negro abandone o papel de vítima, por um lado, e que os colonizadores assumam a sua responsabilidade, de outro. Trata-se, segundo ele, de insistir na lógica da justiça; algo que se observa em movimentos negros contemporâneos como Black Lives Matter:3

Enquanto persistir a ideia segundo a qual só se deve justiça aos seus e que existem raças e povos desiguais, e enquanto se continuar a fazer crer que a escravatura e o colonialismo foram grandes feitos da “civilização”, a temática da reparação continuará a ser mobilizada pelas vítimas históricas da expansão e brutalidade europeia no mundo. Neste contexto, é necessária uma dupla abordagem. Por um lado, é preciso abandonar o estatuto de vítima. Por outro, é preciso romper com a “boa consciência” e a negação da responsabilidade. Será nesta dupla condição que é possível articular uma política e uma ética novas, baseadas na exigência de justiça. (p. 297)

Seria impossível dar conta aqui de toda a riqueza intelectual e gama de ideias que desenvolve Achille Mbembe nesse livro. Para finalizar, ressaltaria a contribuição teórica que oferece o autor, que compartilha com Fanon a qualidade de não poupar a sensibilidade do leitor. Claramente inspirado nas obras de teóricos como Gilles Deleuze e Michel Foucault, Crítica da razão negra responde a esses teóricos apontando a centralidade do negro e da noção de raça para o desenvolvimento da modernidade. Ao mesmo tempo, Mbembe incorpora em sua escritura as contribuições de toda uma série de teóricos negros – africanos, caribenhos e norte-americanos -, e até mesmo de teóricos latino-americanos como Walter Mignolo. Trata-se portanto de um arcabouço teórico que apenas em aparência deriva direta ou exclusivamente da tradição francesa. Ao demonstrar a relação inelidível entre o pensamento sobre raça no Ocidente, a constituição do Estado moderno e o mercado, Mbembe desloca o centro de preocupações da crítica de esquerda europeia da história do capital e dos chamados direitos humanos para a questão da raça. Ao mesmo tempo, o autor denuncia também as contradições do pensamento libertário e nacionalista negros, ressaltando suas dívidas para com a “razão branca” e insuficiências no que diz respeito a qualquer perspectiva de futuro. Por fim, apesar de enfocar-se na questão do negro em sua relação com a África e o colonialismo europeu – o negro como homem de origem ou descendência africana – as teses desenvolvidas em Crítica da razão negra, como indica o próprio autor, referem-se antes ao que ele denomina um devir-negro do mundo; expressão que introduz a possibilidade de pensar outros sujeitos racializados – muçulmanos, por exemplo – como os “novos negros” do mundo contemporâneo, e que reforça a ideia de que a categoria negro não passa de uma ficção útil. Não humano ou sub-humano, e ainda, ameaça ao mundo dos “brancos” – o que equivale a dizer, à “humanidade” mesma – o negro é portanto passível de ser explorado, isolado do resto da “humanidade” e, inclusive, exterminado. Neste sentido, Crítica da razão negra oferece não apenas chaves fundamentais para pensar-se a experiência do outro na modernidade, mas também a sua emancipação; aspecto fundamental para o desenvolvimento da humanidade mesma.

1“Nègre” no original, “black” na tradução ao inglês. Como veremos adiante, Mbembe analisa a categoria “negro” como uma construção histórica de longa duração que não se refere apenas aos sujeitos africanos e afrodescendentes, mas ao contrário se constrói como sinônimo de uma outredade absoluta; trata-se, portanto, de uma “ficção útil” que ultrapassa a questão da cor da pele, a origem ou a localização geográfica do sujeito negro.

2Mbembe se refere aqui ao direito moderno, e que continua informando tanto o funcionamento do Estado como o discurso sobre direitos humanos. Fundado numa noção universalizante de humanidade, o discurso sobre direitos humanos, de acordo com Mbembe, teria como resultado a obliteração da cisão fundamental que se estabelece a partir da própria criação da categoria “homem”.

3Refiro-me ao principal slogan do movimento BLM, “No justice, no peace!” (Sem justiça não há paz!), mas também ao fato de que o movimento rejeita a “boa consciência branca”, que via de regra se limita a converter o negro em vítima e portanto reproduz a lógica paternalista a partir da qual operam as relações raciais.

4Como citar – Mbembe, Achille . Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona, 2014. Tradução de Marta Lança. 1. ed. Resenha de ROBYN, Ingrid. Capitalismo, esquizofrenia e raça. O negro e o pensamento negro na modernidade ocidental. Topoi. Revista de História, Rio de Janeiro, v. 18, n. 36, p. 696-703, set./dez. 2017. Disponível em: <www.revistatopoi.org>.

Ingrid Robyn – Professora do Departamento de Línguas e Literaturas Modernas/Instituto de Estudos Étnicos. Universidade de Nebraska-Lincoln. E-mail: [email protected].

Sortir de la grande nuit: essai sur l’Afrique décolonisée – MBEMBE (AN)

MBEMBE, Achille. Sortir de la grande nuit: essai sur l’Afrique décolonisée. Paris: Éditions La Découvert, 2010, 246p. Resenha de: MIGLIAVACCA, Adriano Moraes. Anos 90, Porto Alegre, v. 21, n. 40, p. 559-562, dez. 2014.

Desde as descolonizações e retiradas de seus países dos antigos poderes coloniais europeus, a situação do continente africano vem sendo assunto frequente e polêmico entre intelectuais, políticos e formadores de opinião no próprio continente e fora dele. Os diversos problemas econômicos e sociais, a instabilidade política e os conflitos internos fazem com que a metáfora da “caixa sem chave”, usada como epígrafe de um dos capítulos do livro Sortir de la grande nuit: essai sur l’Afrique décolonisée, do cientista político camaronês Achille Mbembe, pareça se justificar. O hermetismo presente nessa metáfora amplifica-se com a imagem que o leitor encontra logo no título do livro: a da “grande noite”.

A obra de Mbembe apresenta um exame complexo da natureza desse fechamento em que se encontram o continente e os fenômenos que o compõem. Obra de teor político, Sortir de la grande nuit, além de se valer de imagens poéticas, parte de um relato pessoal de memórias do próprio autor, camaronês com formação acadêmica na França e longa passagem pelos Estados Unidos, que vive atualmente na África do Sul, onde leciona na Universidade de Witwatersrand. O percurso intelectual da obra reflete, portanto, a trajetória do próprio autor: tendo importante foco na África francófona e seu relacionamento ambíguo e tenso com os poderes coloniais franceses, não deixa de considerar as possibilidades e visões que advêm desses diversos países que perfaz a experiência do autor.

Em seu ecletismo literário, o ensaio inicia-se com uma narrativa dos anos de infância, no Camarões, estabelecendo a África, incontroversamente, como núcleo de onde o pensamento do autor se organiza e a partir do qual se articulam as influências de fora. De sua infância em Camarões, Mbembe destaca e elabora seu convívio inicial com os dois elementos que, articulados, dão o teor do livro: a noite e a morte. O autor recorda como o impressionaram, quando criança, os cadáveres ao relento, revolvidos por escavadeiras; relembra também os revolucionários tornados terroristas pelo discurso do poder colonial, mortos aos quais foi negado o reconhecimento de uma sepultura. Acima de tudo, o autor lembra como buscava simbolizar e entender essa realidade que o cercava, e é aí que a metáfora central do livro aparece em sentido denotativo e conotativo: era à noite que o jovem Achille Mbembe buscava construir um discurso sobre a morte. Não é negado o papel que teve o encontro com o cristianismo nessa busca por entendimento: a religião que veio de fora aparecia tanto como discurso de insubmissão quanto como possibilidade de haver, após o escuro da morte e da noite, algo de vida.

Mbembe deixa evidente, no decorrer da obra, o ceticismo com que encara a cultura do colonizador em seus anos de estudante na França. Lá, ele se depara com um povo orgulhoso de sua tradição republicana humanista e universalista, de sua língua como uma “língua humana, universal”. Mbembe não deixa de apontar e elaborar uma contradição entre esse humanismo universalista e o racismo que vê no bojo da própria sociedade francesa e na forma como esta se impusera em seu país natal. A obra do autor antilhano Frantz Fanon abre para ele novas perspectivas sobre o tema da raça, o faz ver o confinamento em uma raça como algo que pode ser superado, bem distante da rigidez dos postulados raciais com que as tradições francesas formaram narrativas de cidadania e pertença a uma humanidade; postulados nos quais o estatuto de “cidadão” é barrado àqueles que, embora admitidos na grande esfera da “humanidade”, o são com certas limitações: são seres humanos “primitivos”, limitados em sua humanidade última. O pensamento de Fanon o coloca à frente com o desafio de romper tal clausura identitária e fazer ver que o homem negro, longe de ser um “primitivo”, é um “homem”, ao qual não faltam quaisquer predicados que definem essa categoria.

Para além da França, Mbembe articula as oportunidades de entendimento que se lhe apresentaram suas experiências nos Estados Unidos e na África do Sul. Uma história de luta por direitos civis, a presença de personalidades negras altamente influentes e a capacidade, mais pronunciada que a da França, de captar para suas universidades as elites africanas, fazendo dos Estados Unidos um destino mais atraente do que a França, cuja influência Mbembe vê declinar. A África do Sul não consegue esconder os vestígios de seu passado discriminatório, que faz o autor ver nela “o signo da besta”; no entanto, o trânsito étnico, nacional e cultural do país dá a ele um cosmopolitismo que é incorporado pelo autor em seu pensamento.

Acima de tudo, é enfatizada a necessidade de uma descolonização, mais que política ou econômica, subjetiva, interior; ou, para usar as palavras do autor, é necessária uma “reconstituição do sujeito”, no qual se desmontem as estruturas coloniais e o possível seja reabilitado. Mbembe é inequívoco em afirmar que esta não é uma tarefa meramente prática-política: um trabalho epistemológico e estético deve ser efetuado, por meio do qual um novo conhecer-se a si mesmo pode emergir. Em particular, a importância da literatura e da crítica literária é enfatizada nesse movimento de descolonização.

A exclusão da África enquanto realidade surge no discurso ocidental primeiramente como uma operação da linguagem. A literatura africana surge como uma reação contra a falta de realidade que reveste o signo africano, enquanto a crítica literária busca operar a desconstrução da prosa colonial, sua montagem mental, suas representações e formas simbólicas que serviram de infraestrutura ao projeto imperial.

Em quaisquer áreas disciplinares, Mbembe identifica no discurso africano três paradigmas político intelectuais, não necessariamente autoexcludentes: o nacionalismo anticolonial, o marxismo e o pan- -africanismo. O primeiro teve uma influência importante na esfera da cultura, da política e economia; o segundo foi fundamental na formação do que veio a ser conhecido como “socialismo africano”; e o terceiro enfatizou a solidariedade racial e transnacional. Para Mbembe, parece, tais paradigmas tendem a ser excessivamente fixos, não dando conta da complexidade e do dinamismo que caracterizam o continente africano. O autor lembra como a África não compreende apenas os negros, mas também as diversas etnias que vieram lançar raízes em seu solo; não compreende apenas os que lá ficam, mas os que de lá saíram, mas continuam sendo, não obstante, africanos.

A África de Mbembe constitui-se, então, não como fonte estática, mas como intervalo de modificações e passagens; seu é o discurso, não mais das origens, mas do movimento, de uma “circulação de mundos”, como conceitua o próprio autor. A esse novo paradigma, Mbembe dá o nome de “afropolitanismo” – movimento no qual a África relativiza suas raízes e busca se reconhecer no distante e o distante no próximo, o próprio no outro. Esse novo paradigma, Mbembe enfatiza, torna insustentável mesmo a “solidariedade negra” proposta pelo pan-africanismo; a raça, afinal, resulta do discurso colonial e externo, exatamente aquele que se busca superar.

Talvez não seja coincidência o fato de o livro se iniciar com as palavras “Il y a um demi-siécle” (há meio século) e terminar com “temps nouveaux” (novos tempos). No título mesmo, já se insinua a inclinação do pensamento do autor para o que há de vir, ao qual todo o trabalho histórico, biográfico e crítico, estendendo-se ao longo da obra. A saída da grande noite a que o autor insta seu leitor é uma busca de vida, uma vontade de comunidade; a noite e a morte englobam as heranças do passado colonial – o confinamento racial, a dependência política e econômica, a subordinação psíquica e intelectual. A vida que busca o empreendimento do autor passa pela negação mesma dessas heranças, mas se dirige a uma nova identidade, um novo centro, que não negue, mas celebre sua multiplicidade.

Notas

1 O livro acaba de ser publicado em língua portuguesa, com o título Sair da grande noite: ensaio sobre a África descolonizada. Mangualde; Luanda: Edições Pedagô; Edições Mulemba, 2014. 204p.

Adriano Moraes Migliavacca – Formado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; doutorando em Literaturas Estrangeiras Modernas pela mesma universidade. E-mail: [email protected].