Nem tudo era italiano. São Paulo e pobreza (1890-1915) | Carlos José Ferreira dos Santos

A primeira impressão que o livro de Carlos José suscita é de espanto. Será possível que ele pretenda refutar a imensa influência da imigração européia no crescimento e na transformação da cidade de São Paulo entre fins do século XIX e início do XX? Mais especificadamente, será que ele pretende negar a esmagadora presença física e cultural dos italianos na população paulistana e o seu papel decisivo na industrialização e nas lutas operárias daquele momento, conforme décadas de trabalho historiográfico tem demonstrado? [1]

Essa impressão se desvanece com facilidade na leitura do trabalho. Longe de negar o poder do dilúvio italiano que mudou profundamente a vida da cidade naquele período, ele procura anexar a este contexto um dado novo e relativamente pouco explorado: a presença de uma população de trabalhadores pobres nacionais, via de regra negros, que deram uma contribuição decisiva à vida da cidade daqueles anos, mas que permanecem escondidos nas brumas da História.

Inicialmente, o autor procura demonstrar como, mesmo dentro de uma cidade que se europeizava rapidamente, havia trabalhadores pobres e negros suficientes para incomodar a elite e seu projeto de branqueamento, o que a levou a estabelecer políticas com o intuito de afastar esses indesejáveis das áreas centrais e dos espaços públicos mais visíveis, de forma que eles não se constituíssem em um estorvo para o plano de construção de uma cidade branca, européia e civilizada. Este contexto, contudo, não é exclusivo de São Paulo, mas comum às grandes cidades que desejavam assemelhar-se aos centros culturais do Velho Continente, sendo paralelo às remodelações que ocorriam no Rio de Janeiro. De qualquer forma, fica claro, pelo texto, como esse projeto de isolar completamente os indesejáveis não pôde ser levado a cabo, inclusive porque esses homens eram necessários para os trabalhos de embelezamento da urbe e para a própria vida da cidade ao exercerem as profissões ligadas à economia informal (lavadeiras, vendedores ambulantes, domésticos, carroceiros), ao mesmo tempo que tinham o seu próprio entendimento do espaço de trabalho e da maneira como buscavam gerir suas vidas. O uso de fotos e a busca dos detalhes nelas escondidos nessas para comprovar a presença dos grupos é um artifício muito rico utilizado pelo autor e que valoriza bastante o trabalho.

A sua discussão do porquê de esses trabalhadores pobres nacionais terem ido para o trabalho informal com pior remuneração e status social, enquanto os setores dinâmicos da economia (especialmente o industrial) permaneciam como domínio dos trabalhadores brancos, mereceria ser aprofundada, mas é realmente inegável que a visão das elites do trabalhador branco e europeu como mais produtivo, disciplinado e dono de padrões de comportamento mais adequados à modernidade européia, industrial e civilizada que se pretendia construir, foi chave para essa situação. Suas ressalvas de que os imigrantes também dificilmente se enquadraram nessa perspectiva das elites e de que o fato de parte substancial dos industriais também serem estrangeiros (preferindo ainda mais a mão de obra imigrante) também colaboraram com essa situação e só enriquecem suas análises, que mereceriam, porém, como já ressaltado, ser suplementadas com um trabalho de maior fôlego, que ajudasse a delimitar com maior clareza o processo pelo qual a população ex-escrava foi jogada para fora do mercado formal de trabalho, o que possivelmente ajuda a explicar as diferenças raciais na sociedade brasileira até hoje.

Importante notar também que essa população ex-escrava não era meramente passiva nesse processo e que a recusa das elites em aceitá-la nos trabalhos “superiores” certamente se conectou com a resistência dessa população, não propriamente em aceitar a modernidade industrial, burguesa e européia, mas o lugar que as elites procuravam lhe impor. Se essa dupla situação de preconceito dos dominantes/resistência dos dominados não acabou levando, a longo prazo, a maiores dificuldades para a ascensão social dos negros é ponto a discutir, mas o que fica claro, no livro, é como essas populações souberam agir e sobreviver num contexto adverso, impondo sua marca na cidade, a qual ainda pouco conhecemos. Nesse sentido, o texto é uma colaboração útil para conhecermos a história dos ex-escravos e seus descendentes no pós-1888, o que só recentemente tem se tornado um objeto mais freqüente de estudo dos historiadores.

Ainda assim, o livro teria sido enriquecido por uma abordagem um pouco mais interétnica. De fato, existem poucas referências ao relacionamento entre esses trabalhadores pobres, ex-escravos ou descendentes, e os imigrantes italianos, os outros imigrantes europeus e seus filhos. A impressão que passa, às vezes, é que brasileiros e imigrantes viviam em ambientes estanques e que não existiram conflitos, convivência amigável e outros tipos de relacionamento entre eles.

É óbvio que essa impressão deriva apenas do foco dado pelo autor à população brasileira, e seu próprio trabalho demonstra exemplarmente como essa compartimentação jamais ocorreu. De qualquer forma, recuperar o relacionamento entre os brasileiros (negros ou não) e italianos, entre os italianos e os outros grupos imigrantes, e entre os brasileiros e esses outros grupos seria fundamental para enriquecer a história desse verdadeiro cadinho cultural que foi a São Paulo das primeiras décadas do século [2]. Tanto a historiografia da escravidão que também estuda os ex-escravos, como a que aborda a imigração européia para o Brasil só teriam a ganhar com esse cruzamento.

Esse cruzamento, na verdade, vem sendo feito por outros estudiosos como George Reid Andrews (Andrews, 1998), que estudou os trabalhadores negros e brancos, analisando o impacto da imigração européia e a situação do mercado de trabalho para ex-cativos em São Paulo e Teresinha Bernardo (Bernardo, 1998), que trabalha com a memória dos brancos, especialmente italianos, e negros da mesma cidade, também nas primeiras décadas deste século. Tais trabalhos formam um rico panorama das relações raciais que ocorriam na cidade, além de recuperar as tensões cotidianas presentes à época.

Como parte integrante desse esforço, o trabalho de Carlos José mapeia a presença negra com precisão quase cirúrgica. Fica-nos, porém, o desejo de saber mais sobre a população evidenciada; faltam as tecituras de seus destinos, o motivo de estarem ali, seus sentimentos para com a cidade e com os demais segmentos da população. Nota-se, portanto, que é ainda um trabalho bastante introdutório.

De qualquer modo, Nem tudo era italiano é um trabalho fundamental dentre os estudos sobre a vida da população liberta no período pós-Abolição e colabora para a dissolução de mitos sobre a impossibilidade da presença do imigrante e dos trabalhadores nacionais no mesmo espaço e a rejeição dos ex-escravos a quaisquer formas de trabalho.

Notas

1. Para uma introdução ao tema e à bibliografia sobre a presença esmagadora dos italianos na primeira classe operária paulista, ver Bertonha (1998).

2. Os graves incidentes, opondo brasileiros e italianos na última década do XIX, são ainda pouco estudados, enquanto os conflitos de rua entre os dois grupos, por questões nacionalistas em 1928, só recentemente foram recuperados. Também os choques entre brasileiros, negros e italianos quando da guerra da Abissínia em 1935/36 mereceriam um estudo mais aprofundado. Apenas alguns exemplos de como as relações inter-étnicas mereceriam maior atenção da historiografia (o que, aliás, animou um historiador da imigração e uma historiadora da escravidão e do racismo a escreverem esse comentário conjunto, algo não usual em se tratando de resenha) e de como os estudo destas relações poderiam fornecer-nos muitas respostas sobre as vidas dessas comunidades.

Sobre os incidentes descritos acima, com bibliografia, e mais algumas reflexões sobre a questão do estudo inter-étnico na historiografia brasileira, ver Bertonha (1998a, cap. 7). Ver também Munhoz (1998) para o pouco abordado tema da relação da polícia brasileira (da qual boa parte dos soldados era negra) com os italianos no início do século.

Referências

ANDREWS, George Reid. Negros e brancos em São Paulo (1888-1988). Bauru: Editora do Sagrado Coração, 1998.

BERNARDO, Teresinha. Memória em branco e negro: olhares sobre São Paulo. São Paulo: Educ/Editora da Unesp, 1998.

BERTONHA, João Fábio. Trabalhadores imigrantes entre identidades nacionais, étnicas e de classe: o caso dos italianos de São Paulo, 1890-1945. Varia Storia, 1998, no prelo.

—————————–. Sob o Signo do fascio: O fascismo, os imigrantes italianos e o Brasil, 1922-1943. Tese de Doutorado em História Social, Campinas: UNICAMP, 1998.

MUNHOZ, Sidnei José. Ordem e desordem em São Paulo no limiar do século XX. Diálogos, 2: 129-148, 1998.


Resenhistas

João Fábio Bertonha – Doutor em História Social/Unicamp e Professor Colaborador de História Contemporânea na Universidade Estadual de Maringá.

Lúcia Helena Oliveira Silva – Doutoranda em História Social/Unicamp e Professora de Metodologia e Prática de Ensino de História na Universidade Estadual de Londrina.


Referências desta Resenha

SANTOS, Carlos José Ferreira dos. Nem tudo era italiano. São Paulo e pobreza (1890-1915). São Paulo: Fapesp; AnnaBlume, 1998. Resenha de: BERTONHA, João Fábio; SILVA, Lúcia Helena Oliveira. Diálogos. Maringá, v.3, n.1, 359-362, 1999. Acessar publicação original [DR]

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