No território da Linha Cruzada: a cosmopolítica afro-brasileira | José Carlos Gomes dos Anjos

O livro No território da linha cruzada: a cosmopolítica afro-brasileira é escrito por José Carlos Gomes dos Anjos, e trata-se de um trabalho etnográfico no qual o autor, enquanto antropólogo, militante do movimento negro e filho-de-santo de um terreiro de Linha Cruzada, vale-se desses diferentes status, em diferentes momentos, para configurar sua problemática, colher seus dados e construir o texto etnográfico. Antropólogo já antes envolvido em pesquisas sobre religiosidade afro-brasileira, o autor volta seu olhar ao processo de remoção da Vila Mirim – uma vila de maioria negra no centro de Porto Alegre – para a implementação do entroncamento de três grandes avenidas, quando o movimento negro é acionado para mediar os conflitos que a iminência da remoção provocam. Dos 113 domicílios da área a ser removida, seis eram terreiros. É nesse contexto que dos Anjos se inicia como filho-de-santo de mãe Dorsa, uma das líderes da resistência contra a proposta da prefeitura de Porto Alegre de reassentar os moradores no bairro Rubem Berta, movimento instaurado em 1992, quando em reunião realizada num terreiro, formou-se a Comissão dos Moradores a serem removidos. A única reivindicação alcançada pela comunidade foi de não ser removida para Rubem Berta, mas para o bairro Chácara da Fumaça.

O autor, então, norteia suas análises acerca das estratégias políticas dos atores envolvidos nesse processo: a Comissão dos Moradores contra a remoção, a Associação dos Moradores da Vila Divina Providência (a favor da remoção), a Prefeitura de Porto Alegre e o Movimento Negro Unificado.

Estrutura sua reflexão a partir da categoria êmica de “encruzilhada”, problematizando a percepção dos moradores acerca dessa disputa, focando “o cruzamento de representações políticas e representações religiosas” destes, em situações concretas de interação e na contingência das ações cerimoniosas.

  1. A Encruzilhada: do urbanismo branco e da religiosidade negra

Nesse capítulo, a elaboração do universo religioso em questão, a Linha Cruzada, permite propor a substituição do conceito de sincretismo religioso pela noção de cruzamento, e a partir desta analisar como o pensamento afro-brasileiro absorve as diferenças. Nos terreiros de Linha Cruzada pode-se dizer que são cultuadas três religiões, ou, na linguagem êmica, três “linhas”: o Batuque ou Nação (culto aos orixás), a Umbanda ou linha dos caboclos, e a Gira, linha dos exus. No entanto, cada uma dessas linhas tem seus rituais e cerimônias independentes, espacial e temporalmente. Na religiosidade afro-brasileira, a encruzilhada, o cruzamento de ruas, de caminhos, é uma percepção espaço-temporal a partir do qual a “pessoa de religião” organiza o agenciamento de sua subjetividade: nenhum ritual começa sem a permissão do “povo da rua”, dos guardiões dos cruzeiros; tendo em vista que os rituais condensam a prática, no cotidiano, pode-se observar que para o pensamento afro-brasileiro “os empreendimentos da vida também são percebidos como caminhos”, o que faz “da vida um território”. Para que os desejos aconteçam é preciso que haja fluxo nos caminhos, por isso a encruzilhada pode ser vista como um não-lugar, por onde circulam energias nômades, não fixas e não territorializadas. Na cosmovisão afro-brasileira, a encruzilhada é onde as diferenças se cruzam em caminhos plurais, sem se fundirem, onde o processo de subjetivação é um puro processo; as diferenças subsistem.

Assim, ao pensar em raça como um percurso nômade, não-essencializado, dos Anjos aproxima o conceito afro-brasileiro de encruzilhada com a elaboração filosófica de intensidades feita por Deleuze, ou seja, nos terreiros as raças e nações (Ketu, Jeje, Angola…) são transformados em um patrimônio simbólico onde a racialidade é vivenciada, assim como toda diferença, a partir de gradientes de intensidade – não necessariamente essencialidades.

  1. O território da “Linha Cruzada”

O capitulo dois dedica-se a uma etnografia da Vila Mirim, situada na encruzilhada entre a remoção e a permanência, buscando aprofundar o conceito de encruzilhada, como fundamental ao ethos em análise, Dos Anjos apresenta a percepção que o religioso de Linha Cruzada faz desta categoria e suas implicações na sua visão de mundo e nas estruturas de organização.

O autor percebe no ethos religioso afro-brasileiro um encontro entre a noção de encruzilhada e o conceito de desterritorialização “como um fenômeno o qual dois territórios se sobrepõem no tempo. Um se torna imagem virtual do outro: a avenida Nilo Peçanha como futuro da Mirim; a Mirim como passado da Nilo Peçanha”(p.33). É nessa maleabilidade que o autor encontra o principal foco estratégico político da religiosidade afro-brasileira, visto que as identidades estão em processo de constante desterritorialização. O que acontece com a família-de-santo (da linha da Nação) na Linha Cruzada, que se desterritorializa sobre a tribo indígena (da linha de Umbanda), na qual a fragilidade do chefe do terreiro impede a solidificação de relações de poder centralizada, estando o chefe à serviço da comunidade. Portanto, a fluidez das múltiplas constituições como de “eu”, de família-de-santo, de família carnal ou de vizinhança empreende um processo intenso de resistência à remoção da vila, visto que as identidades de grupo são nômades, os conjuntos se interceptam sem se sobreporem completamente.

  1. Mirim em desterritorialização

No terceiro capítulo, dos Anjos enfatiza a encruzilhada em sua dimensão política, ainda partindo de uma descrição da vila como o território em disputa. Aqui o autor aponta para a necessidade de desvinculação da referência estritamente empírica para se discutir território como um conjunto de arranjos simbólicos de determinados grupos sociais, que interagem com níveis mais complexos de realidades, porém sem formar um todo completo, pois as identidades se produzem simultaneamente em diferentes locais. E acrescenta que, no seu universo empírico, o próprio território se desterritorializa à medida que os referenciais simbólicos de delimitação de fronteiras são nômades, quanto à forma de lidar com a identidade. A memória, então, se apresenta como fator territorializante, quando, a partir da seleção, ordenação e enquadramento demarca as fronteiras entre o nós e o eles, tecidas no relembrar de referenciais territoriais do grupo, os quais aparecem em narrativas que vão da origem da comunidade até seu presente. A territorialidade em análise, portanto, se desenha com articulações religiosas, relações de vizinhança e políticas “que transbordam as fronteiras estabelecidas” entre quem vai ser removido ou não.

Desta forma, as fronteiras étnicas também serão sempre “transpostas e reconfiguradas em função das exigências da situação”, pois a Linha Cruzada apresenta uma cosmovisão que afirma as diferenças com muita intensidade, sem, no entanto diluí-las ao território demarcado pelas fronteiras externas. Pode-se perceber esse fenômeno na reterritorialização da identidade étnica, quando em determinado momento do conflito, o sistema de classificação deixa de seguir tonalidades de cor para se polarizar em branco e negro – “o confronto racial branco-negro” se acopla à “permanência da vila”. Essa disposição nômade, que tanto permeia a Linha Cruzada cola-se à “localização espacial marginalizada”, ao reconhecimento social do caráter sociocultural marginalizado, ao reforço da exclusão pelo reconhecimento da marginalização, estabelecendo uma circularidade nos momentos de crise, quando a remoção é iminente ameaça.

Aqui o autor aponta como a noção de encruzilhada permite à Linha Cruzada substituir a síntese mestiça da ideologia da miscigenação, que considerou a Umbanda como a religião brasileira. Em paralelo com as diferentes tonalidades de pele e seguindo a mesma lógica das estratégias momentâneas, as classes populares, afirmando as diferenças internas, apostam na multiplicidade que foge ao estigma ou no contraste que enfatiza o conflito – o que rechaça o mito da democracia racial.

  1. Representação política da encruzilhada

Neste capítulo, dos Anjos, após descrever “a vila como encruzilhada”, propõe-se a discutir a atuação política dos atores. Para isso, toma como situação cerimoniosa a ser analisada a visita à Vila Mirim do prefeito de Porto Alegre, Tarso Genro – ocasião em que a simples presença dessa autoridade, e o seu uso de algumas frases já gastas, como “ninguém vai ser levado à força”, trouxe aos líderes do movimento contra a remoção a confiança da permanência em seus domicílios.

O autor formula a idéia de que a comitiva do prefeito seria uma exibição de poder, sendo ela mesma esse poder, demonstração de um poder delegado pela população, e que por isso acredita-se ter que se mostrar como melhor representante dos múltiplos interesses da cidade: forjando a institucionalização dos diferentes interesses e comunicando-se de forma a colocar-se como mais ou menos imparcial. A presença do prefeito como mediador simbólico seria uma dimensão “mágica” da representação política, inconsciente por parte dos delegados e dos mandatários.

No entanto, a percepção que os moradores da Mirim têm dessa representação não é necessariamente a pretendida pelo Estado. Para chegar à formulação de como o poder do prefeito atinge o ethos da vila o autor compara a presença do governante com os Acutás. Estes são pedras sagradas de singularização dos orixás na “religião”, representam a imanência do poder sagrado o tempo todo presente, concretamente. Na religiosidade dominante na Vila Mirim, é pela concretude que o poder se constitui nos seres. É a concretude que atualiza a virtualidade do poder do orixá. E quando o representante é uma imagem de santo católico branco, situada no centro do congá, em detrimento da imagens negras situadas nas zonas periféricas de disposição da hierarquia da linha de Umbanda, o padrão de humanidade é representado “na cara de santo” (branco e médio) como legítimo para constituir-se do poder sagrado. A subversão desse padrão de humanidade se daria através da imagem do exu, que carrega a pureza de dentro para fora, traz para o rosto e o corpo – no simulacro das guampas, do rabo do focinho – o que a cara branca e padronizada do santo católico não permitia ver: não há forma humana que seja mais ou menos próxima do poder sobrenatural.

A partir da análise dessas estruturas dos rituais e cultos, o autor observa como eles fornecem meios através dos quais a comunidade religiosa percebe o mundo, nesse caso, como Tarso Genro torna-se o mediador entre os moradores e a esperança de não serem removidos. A hipótese de Dos Anjos para descartar a idéia de que a estrutura dos terreiros os liga com facilidade à praticas clientelistas é de que, tendo em vista a estrutura como “o ponto de chegada” (GOLDMAN), a atuação do prefeito teve seu limite nesse ponto do ethos do grupo

  1. A disputa política na Mirim

No último capítulo, a atenção é voltada para o surgimento da comissão dos moradores, considerando ser um terreiro o contexto de sua gênese. Para explicar como se constitui o grupo do terreiro, dos Anjos lança mão do conceito de grupo corporado, no qual os membros da família-de-santo estabeleceriam um contrato formal explícito envolvendo suas “obrigações” e direitos. Porém, a não explicitação dessas obrigações e a fluidez das relações institucionalizadas incitam o surgimento de relações diádicas. O que, para o autor, não é o bastante para se dizer que a relação filho-pai-de-santo seja de patronagem, já que, na sua opinião, a intensidade do vínculo que se estabelece entre ambos desde a iniciação é mais significativa do que as relações de equilíbrio das trocas, pois mais profunda e com regras de cooperação não institucionalizadas explicitamente.

Vale-se de Bourdieu para refletir sobre o fato de os moradores reconhecidos como não- proprietários resignarem-se à remoção, afirmando que a conformação das estruturas objetivas com os esquemas mentais de classificação impostos faz com que os dominados adiram à ordem estabelecida. A primeira ruptura com o estabelecido se dá, segundo Dos Anjos, no momento em que os moradores passam a questionar sua classificação de “não-proprietários”, quando expõem ao público seu questionamento; isso numa percepção global, não individual, o que esbarra na carência de instrumentos políticos como o tempo para reuniões e o capital cultural.

Para compreender os obstáculos e facilidades do rompimento com o estabelecido, o autor compara-o ao processo de possessão religiosa vivenciada pelos afro-religiosos, como uma subversão cognitiva que faz com que o indivíduo rompa com a estrutura original, que o faz se reconhecer enquanto pessoa em contato imediato com o mundo, para deixar-se possuir por outro sujeito. No entanto, a legitimidade do poder do santo expresso nesse tipo de ritual é desconsiderada no momento em que a pessoa que incorporou retorna ao seu Eu original; não é a confiança, nem a crença que legitimam o poder do pai-de-santo, mas a passagem pelos rituais. Isso contraria a concepção moderna de pessoa política legitimada, unívoca, autônoma e coerente, que os agentes da prefeitura, por exemplo, consideram. Como não vivenciam da mesma forma os rituais políticos, como reuniões ou assembléias, os religiosos acabam por reconhecerem-se como despossuídos do poder legitimado para a ação nessas ocasiões.

Conclusão

É postando-se na encruzilhada (militante, antropólogo e filho-de-santo) no momento da redação de seu texto que dos Anjos consegue fazer a ressonância do discurso êmico, trazendo à tona a filosofia política da religiosidade afro-brasileira como alternativa para a política moderna de “pacto entre raças, que, no caso da Vila Mirim, reforça a demarcação do lado mais pobre e negro da vila, fenômeno que configura a situação de fricção interétnica a partir do novo trajeto da avenida Nilo Peçanha.

A etnicidade insurgida dos terreiros afro-brasileiros na Vila Mirim seria – no contexto de uma herança cultural africana como habitus (imutável e não-fixa) – fruto de uma situação em que a posição de subalternidade instigaria desafios e propostas para pactos inter-raciais. O patrimônio étnico cristalizado na religiosidade afro-brasileira seria, para o autor, o núcleo desse habitus, por sua maneira de lidar com as diferenças e as identidades; o nomadismo das raças, das perspectivas, das entidades sacralizadas, dialogam simetricamente com a filosofia ocidental. Dessa forma, a multiplicidade seria uma resposta ao racismo, ou um caminho proposto às políticas públicas compensatórias – sem esgotar as diferenças, nem absolutizá-las em tipos de fenótipos.


Resenhista

Marília Floôr Kosby


Referências desta Resenha

DOS ANJOS, José Carlos Gomes. No território da Linha Cruzada: a cosmopolítica afro-brasileira. Porto Alegre: Editora da UFRGS; Fundação Cultural Palmares, 2006. Resenha de: KOSBY, Marília Floôr. No território da linha cruzada: a cosmopolítica afro-brasileira. História em Revista. Pelotas, v.12-13, dez. 2006-07. Acessar publicação original [DR]

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