Calçadas de Porto Alegre e Beijing | Airton Cattani, César Bastos de Mattos Vieira e Lu Ying

Cesar Vieira Calçadas
César Bastos de Mattos Vieira | Foto: PROPUR/UFRGS

Calcadas de Porto Alegre e de Beijing CalçadasUM OLHAR ATENTO

O livro foi editado para documentar a exposição fotográfica Projeto Calçadas: Porto Alegre-Beijing, que ocorreu nos últimos meses de 2019, no Campus Central da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre e, quase simultaneamente (com uma diferença de dias), no Advertising Museum da Communication University of China (CUC), em Beijing. A exposição (e o livro) é o resultado de uma missão acadêmica, intermediada pelo Instituto Confúcio, que professores brasileiros da UFRGS realizaram junto à CUC, na China, em outubro de 2018. Embora a edição impressa esteja esgotada, a versão digital pode ser acedida no sítio web da editora.

Airton Cattani, um dos organizadores do livro e da exposição, arquiteto e professor da Faculdade de Arquitetura da UFRGS, vem trabalhando com a temática das calçadas em Porto Alegre desde 2007, quando da exposição fotográfica Olhe por onde você anda: calçadas de Porto Alegre, que também foi documentada em livro. Essa obra ganhou versão em língua espanhola especialmente para a exposição Mira por donde andas: aceras de Porto Alegre, realizada no Centro de Estudos Brasileiros da Embaixada do Brasil no México, em 2008. Em sua trajetória, Cattani desenvolveu um olhar atento ao registrar a beleza e poesia das texturas, brilhos, formas, padrões e cores das calçadas urbanas, indo além de imagens com características turísticas. Este foi o motting passado aos estudantes dos cursos da Faculdade de Arquitetura da UFRGS e de Design da CUC e que vemos no livro: um registro fotográfico sensível das calçadas de Porto Alegre e Beijing que alimentam e formam um background estético e diferenciado para futuras aplicações tanto na arquitetura quanto no design. Leia Mais

Flávio Koutzii: Biografia de um militante revolucionário. De 1943 a 1984 | Bento B. Schmidt

Com o estudo a respeito da trajetória do militante revolucionário gaúcho Flávio Koutzii, o historiador e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Benito Schmidt consagra-se como uma referência importante na historiografia especializada no campo biográfico. Após 10 anos de pesquisas com consultas a sete arquivos, (além do acervo pessoal do biografado), a 20 periódicos e cerca de 60 entrevistas, Schmidt constrói a história de vida do seu personagem, até o seu quadragésimo primeiro ano de vida, quando Koutzii retornou definitivamente para o Brasil e reconstruiu sua vida pessoal e política na sua terra natal, Porto Alegre. Em 20 de março de 2020 Flávio Koutzii completou 77 anos e eventualmente opina sobre os grandes temas nacionais, a partir de um ponto de vista marxista que consolidou ao longo de sua vida.

O texto de Schmidt é dividido em cinco partes, contando ainda com uma introdução – onde faz uma discussão teórica sobre o gênero biográfico – uma conclusão e um posfácio escrito pelo próprio Koutzii. O livro traz, ainda, uma contribuição de Guilherme Cassel (ministro do Governo Lula e companheiro de partido de Koutzii) e uma lista das fontes consultadas e entrevistas realizadas, bem como a bibliografia. Todo o projeto de pesquisa foi financiado pela CNPQ-CAPES, FAPERGS e foi desenvolvido com apoio de bolsistas ligados à graduação e à pós-graduação do Departamento de história da UFRGS. Leia Mais

Dizendo-se autoridade: polícia e policiais em Porto Alegre (1896-1929) – MAUCH (RTF)

MAUCH, Cláudia. Dizendo-se autoridade: polícia e policiais em Porto Alegre (1896-1929). São Leopoldo: Oikos; Editora Unisinos, 2017. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 12, n. 2, ago.-dez., 2019.

O trabalho desenvolvido por Cláudia Mauch se apresenta como uma importante referência para o estudo da História da polícia. Nele o leitor encontrará uma análise minuciosa sobre a história policial e o trabalho dos policiais na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, entre os anos de 1896 e 1929. Embora não seja a pretensão dessa obra, ela preenche uma lacuna deixada pela historiografia que versa sobre a temática, sobretudo devido a perspectiva escolhida pela autora para discutir o papel dos policiais no processo de policiamento desse universo.

Logo no início dessa obra, a autora desempena um balanço historiográfico a respeito da história da polícia, pontuando nesse processo algumas considerações que sugerem novas possibilidades de trabalho referente à temática. Para tal, a pesquisadora aponta um conjunto muito diversificado de documentos, cuja variedade de fontes e as metodologias utilizadas no seu tratamento se traduzem numa riqueza em detalhes do universo sociocultural analisado. Nesse sentido, o volume documental utilizado para a realização do trabalho, juntamente com a capacidade de análise da autora é algo invejável a qualquer pesquisador.

As considerações presentes no livro, a respeito da história da polícia, nos ajudam a pensar que a decisão tomada por um policial acerca do que deveria ser feito na sua prática cotidiana estava prevista não só na lei e nos regulamentos. Amparada em algumas referências importantes sobre essa questão, a obra nos leva ao entendimento que essa prática era balizada tanto pela lei e regulamentos da instituição a qual os policiais pertenciam, quanto pelas avaliações que os mesmos faziam dos acontecimentos e dos indivíduos neles envolvidos.

Com certa maestria, a autora nos induz ao melhor entendimento acerca do estudo da História da polícia. E amparada num referencial bibliográfico temático atual e muito rico, Cláudia Mauch desenvolve uma significativa contribuição, envolvendo discussões teóricas, reflexões conceituais muito pertinentes à temática. Além disso, seu trabalho apresenta um amadurecimento metodológico que possibilita novos horizontes aos estudiosos dessa área.

A obra é organizada em três capítulos, com os quais a autora apresenta uma argumentação mais sistematizada sobre a história da polícia e do trabalho dos policiais na cidade de Porto Alegre, entre os anos de 1896 e 1929. A autora analisa mais especificamente o sistema policial organizado e montado pelo governo do estado do Rio Grande do Sul a partir de 1896. Para além dessa tarefa, o objetivo é nos mostrar o funcionamento desse sistema policial montado no final do século XIX, sobretudo os seus desdobramentos na Primeira República. Nesse sentido. Longe de fazer uma história puramente descritiva, Cláudia Mauch aponta alguns elementos muito importantes para melhor entender como ocorreu esse processo, pois as tensões políticas da época estavam circunscritas nessa implantação. Isso induz o leitor ao entendimento das dificuldades vivenciadas pelas autoridades para a implantação das polícias dessa capital, bem como dos limites orçamentário e outros problemas que foram enfrentados nesse projeto, tendo em vista as disputas políticas daquele contexto.

Esta análise aponta como as instituições policiais de uma forma mais ampla e os policiais em suas particularidades eram vulneráveis aos conflitos políticos da sociedade na qual estavam cincunscritos. Na realidade por ela estudada, a polícia se inseria num jogo político local, o que, em alguns momentos, tornava o ambiente de trabalho muito tenso e, de certa forma, pode ter comprometido a função das instituições policiais no que diz respeito ao zelo pela segurança pública.

A argumentação da autora sugere que naquele contexto, os governantes e as autoridades policiais definiam algumas prioridades específicas para atuação das polícias estadual e municipal. E neste caso, tais prioridades se definiam a partir dos interesses políticos do grupo que governava. Em meio a uma explanação dos esforços para se montar esse sistema policial, a obra destaca como ele buscou responder aos desafios que a urbanização e sua transformações impunham a esse projeto de policiamento. Além dessas questões urbanísticas, o livro mostra as tensões enfrentadas no relacionamento entre Polícia Judiciária e Polícia Administrativa, como algo que limitava o policiamento local.

A sugestão dos argumentos apresentados ao longo o primeiro capítulo, indica que o sistema policial projetado pelas lideranças republicanas do final do século XIX não era algo estático. Esse projeto de policiamento, embora influenciado por toda carga ideológica e política das elites locais, fora implantado com alguns objetivos específicos, mas se reformulou e adaptou aos desafios impostos naquele contexto.

Cláudia Mauch constrói uma história social dos policiais, enfatizando esses sujeitos como um grupo de trabalhadores. Ao fazer isso, a autora sugere uma perspectiva historiográfica que se baseia em novas interpretações referente aos sujeitos históricos. Para tal, ela recorre a um estudo quantitativo dos registros pessoal da Polícia Administrativa de Proto Alegre, tomando como ponto de partida para sua investigação histórica, os registros contidos nos livros de matrícula desses indivíduos. E com base nessa documentação, mais especificamente em alguns aspectos fornecidos pela fonte referente à vida desses sujeitos, a saber, procedimentos de recrutamento, percentual de renovação dos quadros, punições e promoções, bem como o tempo de permanência de seus ingressantes, a historiadora, de forma muito competente, traça um perfil social dos policiais municipais, bem como da instituição em questão.

Em meio a um vasto universo numérico, o leitor se depara com uma articulação entre uma análise quantitativa muito substancial e um um conjunto de críticas sobre esse universo quantitativo. Suas explanações quantitativas são conectadas a alguns casos que a autora busca mostrar ao leitor como algumas questões se davam na prática. Longe de ser um capítulo meramente descritivo sobre o perfil social dos policiais municipais e das ações da instituição, Cláudia Mauch nos presenteia com uma bela articulação entre uma perspectiva quantitativa e uma análise mais reflexiva sobre esse universo. Para tal, a autora recorre à alguns gráficos e tabelas que destacam o universo numérico que ela encontrou, sobre idade, escolaridade, origem, estado civil, profissão anterior, conduta profissional na polícia, tempo de permanência na instituição, dentre outras questões que são pontuados no livro.

Ao logo do texto, a autora nos mostra uma proeza muito importante para os estudos da história da polícia, quando a mesma destaca a trajetória desses policiais, seus dramas, indisciplina, relações de apadrinhamento, personalidades. Elementos estes que apontam para perfis dos homens que compunham aquela polícia; indivíduos que formavam o corpo policial de Porto Alegre no contexto em análise. Com base numa vastidão numérica, a historiadora enfatiza os limites e incongruências que faziam parte do corpo policial dessa cidade, destacando que poucos faziam da polícia uma carreira ou profissão.

Nesse sentido, o livro proporciona ao leitor, compreender como funcionava o recrutamentos daqueles “agentes da ordem”, suas origens sociais, bem como a trajetória de muitos deles. A partir desse perfil mais amplo desenhado pela obra sobre esses indivíduos, é possível identificar algumas trajetórias de certos policiais.

Baseada nos relatórios judiciais, registros de ocorrências e inquéritos administrativos, Cláudia Mauch discorre sobre os inúmeros conflitos e situações em que os policiais se envolveram. Seu propósito é analisar as condições de vida e trabalho desses sujeitos. Em meio a essa questão, a autora discute elementos que fundamentavam as representações policiais sobre “autoridade” e masculinidade. Para tal, Cláudia Mauch recorre a uma gama de referências para discutir questões referentes à ambiguidade da posição de classe dos policiais e da cultura policial, sobretudo a partir das relações que esses policiais estabeleciam com a vizinhança. A obra destaca que era muito comum os conflitos envolverem questão da honra masculina, algo que catalizava as relações desses indivíduos.

Uma das intensões da autora é entender até que ponto as relações estabelecidas pelos policiais refletiam distanciamento daqueles grupos que as autoridades buscavam vigiar. Ela salienta que em meio a esse suposto distanciamento havia uma forte aproximação, pois, geralmente, eles faziam parte do mesmo universo sociocultural policiado. Vigiar a vizinhança não era uma tarefa tão simples, pois é possível que os problemas desse universo mais aproximavam os policiadores que os afastavam dos grupos menos privilegiados. Circunscrito em meio aos problemas cotidianos, a honra se tornava um elemento que impulsionava a violência e dificultava mais as relações. Em alguns momentos, a noção de “autoridade” é apontada pela autora como algo que acirrava essas relações, motivando confusões e mortes.

“Dizendo-se autoridade” é uma obra na qual o leitor encontrará uma mescla entre rigor acadêmico e leveza na escrita. No término da leitura, temos o entendimento que se trata de uma grande contribuição para a História da polícia, presente numa obra de fácil compreensão para a o público em geral. Portanto, fica o convite para que o leitor tire suas próprias conclusões referente a este significativo livro.

Wanderson B. de Souza – Mestre em História pela Universidade do Estado da Bahia-UNEB; Possui graduação pela UNEB. Tem experiência na área de História, com ênfase nos seguintes temas: História da Polícia e da Criminalidade, Identidade, Violência Urbana, Relações de Poder, Diversidade e Cidadania; Tenho atuado como formador em cursos de capacitação/atualização de professores para ao Ensino de História, com ênfase em História da África e Cultura Afro-Brasileira. Colaborador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Africanos e Afro-brasileiros – AFROUNEB/UNEB.

Calabouço urbano. Escravos e libertos em Porto Alegre (1840-1860) | Valéria Zanetti

Em nossa formação como nação, como povo e como Estado a colonização e a escravidão foram fundamentais e sob muitos aspectos ainda estão presentes em seus prolongamentos. A escravidão permanecendo bem além da constituição do Estado nacional e do surgimento de um novo ente político, cultural, social e econômico: a Nação brasileira.

Sob as mais diversas visões interpretativas e com maior ou menor solidez de pesquisa documental, ambas – colonização e escravidão – foram desde logo objeto de estudos históricos muitos dos quais se tornaram referências obrigatórias na historiografia brasileira. Não podia ser diferente, mesmo de um ponto de vista teoricamente pouco ambicioso, devido, entre outros fatores, a união intrínseca entre colonização e escravidão e a longa duração de ambas por mais de quatro séculos para a primeira e quase cinco séculos para a segunda. A escravidão sobreviveu ao fim do Antigo Sistema Colonial e continuou sendo o fundamento das relações sociais de produção do Império do Brasil. Todas as tentativas iniciais feitas para desvincular a nova Nação da escravidão fracassaram sob a força avassaladora da herança colonial escravista. Assim o Império do Brasil assentou sua modernidade na manutenção de uma estrutura econômica e social arcaica. Conheceu uma nova inserção na economia internacional absorvendo várias das inovações tecnológicas oriundas da revolução industrial: navegação a vapor, estradas de ferro, cabo submarino para a comunicação com a Europa e a América do Norte, fotografia, telefone, imprensa de massa. No plano político nasceu como uma nação constitucional, com divisão de poderes, limitações ao poder imperial, declaração de direitos de cidadania, liberdade de imprensa, vida social e cultural burguesa. Mas, convivendo com tudo isto no plano das estruturas materiais e das estruturas da política e da cultura, lá estava presente a escravidão. Não é, naturalmente, fortuito, que o final do Império tenha se dado pouco depois do fim da escravidão, embora esta quase coincidência não possa e não deva ser vista como uma causalidade mecânica. A relação entre os dois acontecimentos é mais profunda e, sob muitos aspectos, não deve ser tomada em desfavor das realizações reformistas do Império. Mas esta questão nos levaria longe do objeto e do objetivo desta resenha: a escravidão urbana em Porto Alegre e, por extensão no Brasil, a partir do livro de Valéria Zanetti, aqui examinado.

A grande teia das relações escravistas que cobriu, com intensidade diversa, todo o território colonial e nacional até sua extinção tinha duas grandes expressões espaciais: a rural e a urbana. A primeira numericamente mais importante propiciou a inserção da colônia e depois do Império independente, na economia mundial. Foi, em sua fase colonial, essencial para o enriquecimento da metrópole e de suas camadas mercantis, burocráticas clericais e fradescas e do Estado monárquico português. Foi, ainda, fundamental no processo de acumulação primitiva que está na base da formação do capitalismo e da eclosão da revolução industrial do século XVIII. A escravidão urbana, mais voltada para a acumulação interna, foi, sobretudo, a escravidão dos indispensáveis serviços domésticos quando a tecnologia do cotidiano dependia em larga medida da força física: abastecimento de água e lenha, limpeza dos excrementos humanos, limpeza do lixo, transporte de alimentos, de diversas mercadorias, de móveis e mesmo de pessoas. Mas ela esteve, também, presente, no comércio urbano de miudezas, de alimentos, de bebidas. No transporte costeiro e fluvial. Produtores de renda para seus senhores, escravos e escravas urbanos foram utilizados sob a dupla forma de escravos de aluguel e de escravos de ganho. Vista no longo prazo percebemos que, ao contrário de arrefecer com a Independência e com o crescimento de uma vida urbana de recorte mais burguês, ela se intensificou. O auge da escravidão urbana no Brasil corresponde justamente aos anos de consolidação do Império e ao seu apogeu.

Durante anos, mais ou menos ignorada pela historiografia ou mitificada como mais suave, a escravidão urbana no Brasil tem sido objeto de novos e importantes estudos, que tem promovido uma verdadeira renovação do conhecimento da história brasileira em seu conjunto. Neste processo de renovação muitos são os autores e livros a serem citados. Para não cometer injustiças e omissões deixamos de mencioná-los aqui, mas o leitor encontrará boa parte deles nas referências presentes no livro de Valéria Zanetti. Que passaremos agora a examinar mais detidamente. Situando-se com originalidade na renovadora historiografia da escravidão no Brasil Valéria Zanetti nos deu um livro vigoroso, solidamente fundamentado em pesquisas de ricas fontes primárias e utilizando o melhor das referências então disponíveis. Com pleno domínio da boa escrita histórica. O que significa que a leitura é feita com agrado, além de proveito, tanto por especialistas quanto por não especialistas, o que não é pouco.

Com este livro tomamos conhecimento da escravidão urbana na Porto Alegre e arredores entre os anos 1840-1860. A autora reforça a revisão de um equívoco por vezes ainda corrente: a da pouca presença do escravo no Rio Grande do Sul. Para tanto os dados quantitativos são, naturalmente, essenciais. Ficamos assim sabendo que mesmo após o fim do tráfico a partir de 1850, o número de escravos no Rio Grande do Sul aumentou. Informação importante que significa a existência de um dinamismo econômico que necessitava do aporte de mão de obra escrava através do comércio interprovincial de escravos. Mas, os essenciais dados quantitativos são aqui a base de uma trama qualitativa de grande riqueza. Para tanto contribui em muito o uso de depoimentos de viajantes e observadores locais, do noticiário dos jornais e dos processos judiciais. As ilustrações foram escolhidas com critério, enriquecem o texto, complementando-o.

Acomodação, negociação, alimentação, vestuário, doenças, folguedos, ofícios e ocupações de escravos e escravas, feitiçarias, estupros prostituição, devoção, controle, traições, atração erótica da mulher negra, assassinatos, conflito violência, criminalidade, roubos, suicídios, resistência, sob as mais diversas formas, (in) justiça senhorial, são algumas expressões e temas estudados ao longo do livro e que registram com acuidade a presença e o modo da presença de escravos e escravas no meio urbano de Porto Alegre de meados do século XIX. Expressões e temas que podem ser aplicados às principais cidades brasileiras do período, o que situa este livro não apenas como uma valiosa contribuição para a história de Porto Alegre, mas para a história do Brasil. A enunciação dos títulos dos seus vários capítulos dará ao leitor uma idéia dos diversos aspectos da escravidão em Porto Alegre no período estudado por Valéria Zanetti: 1. O gado, a terra e o homem, 2. Porto Alegre: origem e povoamento, 3. Violência no passado, amenidades no presente: as visões da historiografia acerca do escravo urbano, 4. Crimes de escravos e libertos em Porto Alegre, 5. Vivendo em conflito e em solidariedade, 6. Vida amorosa, familiar e manifestações culturais de escravos e libertos em Porto Alegre, 7. Poder e contrapoder: resistência do escravo urbano.

Finalizemos esta breve resenha com um trecho do livro para que o leitor tenha a vontade, da qual não se arrependerá, de conhecer o livro em sua inteireza:

“A visão de que os cativos urbanos eram bem alimentados, vestiam-se adequadamente e viviam em harmonia com os senhores não combina com a informação documental. Involuntariamente, os anúncios sobre fugas na imprensa denunciam a verdadeira condição de existência civil. Arsène Isabelle esteve na província e não partilhou da visão otimista, registrando em seu diário as violências cometidas pelos senhores. Segundo Isabelle, os senhores gaúchos tratavam seus cativos como se tratavam os cães: ‘Começam por insultá-los. Se não vêm imediatamente, recebem duas ou três bofetadas da mão delicada de sua senhora […] ou ainda um rude soco, um brutal pontapé de seu grosseiro amo. Se resmungam, são ligados ao primeiro poste e então o senhor e senhora vêm com grande alegria no coração, para ver como são flagelados, até verterem sangue aqueles que não têm, muitas vezes, outro erro que a inocência de não ter sabido adivinhar os caprichos de seus senhores e patrões’.

Ao percorrer as páginas deste livro, sob muitos aspectos fascinantes, não podemos deixar de pensar que muitos dos antigos males da escravidão não compõe apenas o nosso passado. Renovam-se cotidianamente em nossa (in) justiça de classe, ainda senhorial, na precariedade das diversas formas de trabalho nas áreas rurais e urbanas, na precariedade dos direitos, nas discriminações de gênero, na exploração do trabalho infantil, em renovadas formas de trabalho escravo, na violência a que está submetida a população pobre do campo e das cidades, especialmente dos descendentes diretos dos antigos escravos, nos privilégios incrustados no Estado, na sua captura pelos interesses privados.

Livros como este mostram como a boa história é sempre libertadora e não faz uma limitada e equivocada separação entre o passado e o presente. Por isso a grande mídia conservadora a ignora, promovendo best sellers que veiculam uma visão pitoresca e caricatural do nosso passado. Visão que serve apenas para acomodar os leitores na visão de que nada mudou e nada mudará.

Nota

1. Home Page: www.upf.tche.br/editora. E-mail: [email protected]

Denis Antônio de Mendonça Bernardes – Universidade Federal de Pernambuco.


ZANETTI, Valéria. Calabouço urbano. Escravos e libertos em Porto Alegre. (1840-1860). Apresentação de Mário Maestri. Passo Fundo: Editora Universitária; Universidade de Passo Fundo1, 2002. (Coleção Malungo, 6). Resenha de: BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.29, n.2, jul./dez. 2011. Acessar publicação original [DR]

 

Participatory Institutions in Democratic Brazil – AVRITZER (NE-C)

AVRITZER, Leonardo. Participatory Institutions in Democratic Brazil Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2009. Resenha de: ROMÃO, Wagner de Melo. Entre a Sociedade Civil e a Sociedade Política. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.87, Jul, 2010.

Participatory institutions in democratic Brazil é a obra mais importante de Leonardo Avritzer desde a publicação de Democracy and the public space in Latin America1. O autor rediscute e amplia a análise sobre experiências de orçamento participativo (OP) nas cidades de Porto Alegre, Belo Horizonte e São Paulo e também apresenta estudos sobre mais duas “instituições participativas” — os conselhos de saúde e os processos de formulação dos planos diretores urbanísticos nestas cidades, e também em Salvador.

Avritzer reelabora o que tem sido seu principal desafio teórico desde os anos de 1990: as aproximações entre sociedade civil e sociedade política, e a incorporação de práticas originárias da sociedade civil pelas instituições políticas, em novos “desenhos institucionais” participativos com poder de deliberação sobre políticas públicas. O autor propõe-se a desenvolver uma “teoria das instituições participativas” (p. 4) e reconhece que “os partidos políticos e a sociedade política permanecem pouco teorizados na maior parte da literatura sobre participação, por causa do caráter elitista da literatura ou das concepções anti-sistêmicas da teoria dos movimentos sociais”2. Isto seria uma lacuna na literatura, sobretudo no contexto brasileiro, “em que o Partido dos Trabalhadores (PT) mostrou o caminho ao introduzir arranjos participativos, a conexão entre partidos políticos e sociedade civil na implementação de modelos de participação vem a ser uma variável-chave — mas que não é esclarecida pela teoria” (p. 7). Assim, a principal diferença deste livro para seus trabalhos anteriores é a incorporação da dimensão político-partidária à análise.

Avritzer busca formular sua teoria sobre as instituições participativas relacionando-a com três elementos principais: a sociedade civil, a sociedade política e o desenho institucional3. Inicialmente, o autor retoma a tese já presente em seus trabalhos anteriores: as mudanças na sociedade civil brasileira — explicadas, sobretudo, pelo avanço do associativismo em grandes cidades como Porto Alegre, São Paulo e Belo Horizonte a partir de meados dos anos de 1970 — teriam atuado fortemente para a democratização do país, em uma perspectiva autonomista ante o Estado autoritário, distinta de uma cultura política anterior, centrada na aproximação clientelista e subalterna ao aparelho estatal. Entretanto, o autor identifica algumas peculiaridades locais. Em Belo Horizonte e, principalmente, em Porto Alegre, indica maior autonomia em face do Estado e dos partidos políticos, na comparação com São Paulo e Salvador. Além disso, os movimentos sociais de Belo Horizonte e Porto Alegre seriam mais “generalistas” no que diz respeito ao acesso a bens públicos, enquanto os de São Paulo e Salvador teriam objetivos mais localizados — em torno da saúde e educação, em São Paulo, e do movimento cultural, em Salvador. Tais diferenças seriam fatores de maior ou menor sucesso na incorporação das “instituições participativas” ao sistema político formal.

Em seguida, o autor direciona suas observações às mudanças ocorridas na sociedade política brasileira e latino-americana nos anos de 1980 e 1990. É então que começa a ser incorporada à análise a dimensão partidária, pouco explorada nos textos anteriores em virtude da avaliação sobre a centralidade da sociedade civil nos processos de democratização no Brasil e na América Latina, e também pela visão de que o Estado seria refratário aos impulsos democratizantes advindos da esfera societária. Neste livro, ao contrário, Avritzer enfatiza o modo como a sociedade política, os partidos políticos de esquerda e, especificamente, o Partido dos Trabalhadores teriam atuado para a formalização do que chama de “instituições participativas”, incorporando demandas sobre participação presentes em suas origens “externas” às instituições políticas formais:

A sociedade política, no interior das instituições participativas, relaciona concepções de participação originárias dos atores da sociedade civil. Nesse sentido, reforça concepções gerais de participação que estão na raiz da formação dos partidos políticos de massas e de esquerda. […] O PT, no Brasil, desempenha exatamente este papel de relacionar ideias de participação presentes em suas origens com atores da sociedade civil que demandam participação. Na maior parte dos casos de participação analisados neste livro, a iniciativa foi tomada por atores da sociedade política (p. 10).

Esta nova demarcação teórica, dada pela incorporação dos partidos políticos à análise, dá-se de modo bastante específico:

Afirmo que a distinção entre partidos de massa e partidos eleitorais ainda é válida. Além disso, argumento que o lado identitário da formação do partido continua a ser relevante no debate sobre partidos políticos de massa. Demonstro que um partido de massas com ligações externas ao sistema político é o veículo ideal para trazer demandas participativas ao Estado (p. 13).

Assim, o modo pelo qual Avritzer incorpora a sociedade política na análise se dá pelo viés da sociedade civil, uma vez que o PT é visto como um partido de origem nela e portador de suas demandas participativas. As mudanças na sociedade política — em suma, o aparecimento do PT — são derivadas das mudanças ocorridas na sociedade civil: o PT, herdeiro direto do associativismo revigorado nos anos de 1970 e 1980, teria atuado como cabeça de ponte da participação popular no sistema político, facilitando a inserção de práticas democratizantes da sociedade civil no Estado.

Dessa forma, assim como no caso da sociedade civil, a caracterização do PT elaborada por Avritzer se dá na chave da autonomia: “o projeto político do PT nasce das demandas por autonomia em relação ao Estado feitas pelo novo sindicalismo e pela Igreja Católica” (p. 47). No caso do “novo sindicalismo”, tratar-se-ia de autonomia diante da tutela do controle do Estado sobre as organizações sindicais. No caso da Igreja Católica, Avritzer indica que “autonomia significou a habilidade dos atores sociais de demandar bens públicos — terra, serviços sociais, saúde, ou melhorias urbanas, como pavimentação ou saneamento — independentemente do Estado” (p. 47)4. Ao “novo sindicalismo” e à Igreja Católica, o autor agrega o que chama de new left, parcela da esquerda que critica os comunistas, sem que se demore em investigar suas características e o modo como teria se agregado às duas outras “forças de coalizão”.

Além disso, também como um componente identitário do PT, figuram a crítica ao clientelismo e a adoção da democracia participativa. Estes fatores teriam contribuído para que o PT tivesse inovado institucionalmente ao introduzir formas de participação no orçamento, na saúde e na política urbana.

É a partir desta caracterização do papel do PT na sustentação das “instituições participativas” que o autor introduz o que parece ser o principal — embora modesto — ganho analítico de Participatory institutions in democratic Brazil. Avritzer argumenta que, para que sejam investigadas as causas dos sucessos e dos fracassos das políticas participativas das diversas administrações petistas, devem ser conhecidas as seções locais do PT, sobretudo, quanto à relação entre identidade e estratégia no nível local. E avalia que o PT, como todo partido político de esquerda e de massas de perfil social-democrata, teria passado pelo dilema de manter sua identidade sociopolítica, construída sobre o princípio da autonomia dos movimentos sociais dos quais seria originário, e ao mesmo tempo tornar-se competitivo no sistema político — a dimensão estratégica. As variações desses dois pólos (identidade e estratégia) deveriam ser consideradas no âmbito local (municipal e/ou estadual). Deste conjunto de fatores originou-se maior ou menor “vontade política” da seção local do PT e de seus governos municipais para com as “instituições participativas” (p. 50ss).

Cabe no momento indicar o terceiro elemento analítico utilizado por Avritzer no livro. Ele propõe um olhar sobre as “mudanças no desenho institucional” (pp. 62-80), apresentando um “modelo dinâmico e interativo de desenho participativo”:

O modelo dinâmico e interativo também compreende que o sucesso do desenho participativo não é causado pelo desenho em si; antes, cada sucesso é o resultado não antecipado de interações entre atores da sociedade política e da sociedade civil que levam ao desmantelamento das velhas regras e fixam as novas (p. 64).

Este é fundamento do movimento teórico pelo qual o autor incorpora a sociedade política como um ator propositivo de instituições participativas, e não apenas resistente a elas. A partir da premissa do “desenho institucional e interativo”, são apresentadas três possibilidades de instituições participativas — o orçamento participativo, os conselhos de saúde e os processos de aprovação dos planos diretores municipais. Com base nelas, o autor constrói tipos ideais de desenho institucional, respectivamente os chamados bottom-up designs (desenhos “de baixo para cima”), os power-sharing designs (desenhos de compartilhamento de poder) e os ratification designs (desenhos de ratificação). Esses modelos terão maior ou menor possibilidade de sucesso de acordo com o modo em que se dá o encontro entre sociedade civil e sociedade política no contexto local. Assim, por meio da análise sobre como se comporta cada design em cada uma das quatro cidades estudadas, o autor pretende construir quadros comparativos que o levem a uma “teoria das instituições participativas”.

O livro denota um relativo deslocamento nas teses anteriores de Avritzer, sobretudo quanto ao orçamento participativo. De fato, era insustentável a pouca importância teórica dada ao contexto político-partidário das localidades, sobretudo aquele relativo aos posicionamentos do PT local e mesmo às disputas no interior do partido. Embora o tema não estivesse totalmente ausente em seus textos anteriores, o autor não havia ainda tratado do papel central dos governos — e dos partidos que os sustentam — na proposição e no controle dos processos de orçamento participativo. Ou seja, não havia ainda estabelecido como preocupação teórica a natureza das relações entre os partidos políticos e a sociedade civil que ajudam a explicar a configuração das instâncias participativas, considerando a propensão do PT local a estimular e fortalecer as instituições participativas. Avritzer pouco se debruçara sobre o problema dos padrões de comportamento e composição local dos partidos que ajudam a explicar as variações de “vontade política” nas várias experiências de orçamento participativo nos governos petistas ou não-petistas.

Este passo analítico teve que ser dado principalmente pelo relativo fracasso da experiência do OP de São Paulo. Anteriormente saudado como “potencializador da dinâmica participativa na cidade”5— a postura adotada pelo autor com relação a esse caso se torna mais crítica neste livro. Assim, a incorporação de São Paulo ao seu rol de cidades estudadas (em textos anteriores ele se respaldava nas experiências “positivas” de Porto Alegre e Belo Horizonte6) — traz a necessidade de explicar por que, em uma cidade com movimentos sociais tradicionalmente vigorosos, a experiência de OP não teria sido satisfatória na capital paulista.

Os oito anos de malufismo (1992-2000) entre a primeira e a segunda administração petista em São Paulo são indicados como perniciosos para a estruturação de instituições participativas na cidade. Isto teria se dado não só em relação ao OP, mas também aos conselhos de saúde e à elaboração de seu plano diretor urbanístico. Entretanto, o que é central como opção analítica é a verificação das divisões internas no PT paulistano sobre as prioridades dadas à participação popular, já presentes no governo de Luiza Erundina e acentuadas no governo de Marta Suplicy.

É fundamental ao argumento de Avritzer indicar o PT como um partido pró-participação. Os casos em que isso não se configura são ora explicados pelas fissuras internas ao partido — entre setores mais ou menos afeitos às instituições participativas —, ora indicados como “concessões” ao sistema político formal para que o partido não “perca votos”, como na justificativa pela “opção” do governo de Marta Suplicy em não privilegiar o OP como política de gestão, pela necessidade eleitoral que o teria levado a realizar acordos com a direita malufista na Câmara de Vereadores (p. 113).

Para Avritzer, quando há harmonia intrapartidária nas seções locais do PT, as chances de que o OP vingue são maiores. Este argumento vale tanto para o caso negativo — São Paulo —, em que não teria havido acordo no interior do partido sobre a dimensão a ser dada às políticas participativas, como para o caso positivo — Porto Alegre —, em que teria havido um “pacto” entre as principais facções para que as disputas internas não atrapalhassem o projeto político maior na cidade:

Em Porto Alegre, Olívio Dutra tomou posse com o apoio de todos os grupos internos ao PT, liderando um pacto segundo o qual cada facção local do PT iria indicar o prefeito nas eleições subsequentes. Tarso Genro seguiu Dutra, e Pont seguiu Genro, mostrando como este pacto no âmbito das lideranças produziu uma durável hegemonia do PT na cidade (p. 58).

Afirmações de tal natureza indicam os limites da análise de Avritzer e demonstram as insuficiências da compreensão apresentada pelo autor quanto aos padrões internos da competição político-partidária. É sabido que as disputas entre as forças políticas internas do PT de Porto Alegre — e gaúcho de maneira geral — nos anos de 1990 talvez tenham sido ainda mais conflagradas do que as do PT paulistano. Segundo Filomena7, de 1993 a 1999, estabeleceu-se uma aliança entre as tendências Articulação de Esquerda e Democracia Socialista (DS), adversárias do PT Amplo (grupo liderado por Tarso Genro). Tanto é que, ao contrário do que aponta Avritzer, em 1996 houve prévias entre Raul Pont (DS) e José Fortunati (PT Amplo) para a escolha do candidato a prefeito, vencidas pelo primeiro. Fortunati, então, torna-se vice de Pont. Já em 2000, mesmo com a vigência da possibilidade da reeleição, as novas prévias envolvem Pont, Fortunati e Genro, que as venceu. Estas situações e os muitos casos de desfiliações de figuras locais proeminentes — como o próprio Fortunati e, antes dele, Antonio Hohlfeldt, que fora o primeiro vereador do partido em Porto Alegre, eleito em 19828— indicam que o ambiente interno do PT gaúcho pouco diferia do habitual em outras seções do partido. Ou seja, as disputas por indicações a cargos majoritários deram-se em geral na base do voto e da quantidade de delegados que cada candidato ou facção conseguia arregimentar. Tal aritmética, da mesma forma, era a base para a nomeação de mais ou menos correligionários aos cargos no governo ou no partido9. O prestigiado OP porto-alegrense, sem dúvida, tornou-se também um anexo a esta disputa, pois se tornou um espaço político estratégico de fortalecimento dos grupos internos10.

É também interessante verificar como Avritzer trata de um caso negativo de orçamento participativo, o de São Paulo na gestão de Marta Suplicy (PT). Para o autor, a explicação para o fracasso se deve aos seguintes fatores, combinados: 1) o núcleo de assessores mais próximos de Suplicy seria cético em relação à participação, e teria deixado o comando do OP aos setores esquerdistas do PT na capital paulista, com pouco poder político no interior do partido e da gestão; 2) a opção de governabilidade executada pelo governo fora a incorporação de setores conservadores e malufistas à maioria governista, sobretudo por meio das nomeações de subprefeitos. Isto teria dificultado o OP em subprefeituras dominadas por membros de partidos não comprometidos com a participação.

Embora certamente tais fatores possam explicar parcialmente a pouca relevância do OP na elaboração do orçamento e na priorização de políticas públicas na cidade de São Paulo, não explicam o fato de o OP de São Paulo ter apresentado, nos quatro anos em que esteve em vigor, um crescente aumento na participação, que variou crescentemente de 34 mil a 82 mil pessoas, entre 2001 e 2004 (p. 101).

Em outros trabalhos, relativos aos casos de Porto Alegre e Belo Horizonte, Avritzer vinculou a participação à credibilidade do processo perante a população. Em suma, as regras do orçamento participativo seriam efetivas e as deliberações quanto à priorização de obras e serviços seriam cumpridas pelos governos11. No caso de Porto Alegre, o autor liga a baixa participação em algumas regiões com “menor tradição associativa” a dúvidas sobre a capacidade do processo em promover a execução de obras públicas. Sugere, então, que a existência anterior de práticas de participação da sociedade civil predetermina a efetividade do orçamento participativo. No caso de Belo Horizonte, os altos e baixos níveis de participação que se apresentam ano após ano são ligados também a dúvidas dos participantes quanto à efetividade e à continuidade do orçamento participativo. Em seu estudo sobre esta cidade, o autor relaciona tais dúvidas com a incerteza sobre se o candidato do PT ganharia as eleições em 1996 e se, depois, o prefeito do PSB daria a mesma prioridade ao OP12. Todas essas elucubrações, de fraca consistência empírica, servem ao autor para o reforço de suas premissas sobre a capacidade da população em participar de “modo racional”.

Em São Paulo, mesmo considerando que o OP “sempre levantou fortes dúvidas sobre o quão deliberativas seriam suas decisões” (p. 100), os números oficiais utilizados pelo autor demonstram que houve sempre um acréscimo dos níveis de participação, mesmo considerando que o OP paulistano teria privilegiado os setores mais organizados da população13 (p. 102), em tese, os mais esclarecidos sobre eventuais manipulações da prefeitura e/ou sua incapacidade em entregar as obras prometidas.

Tais inconsistências analíticas sobre a participação no OP e a limitação em se considerar os partidos políticos e governos apenas com relação à “vontade política” para se implementar ou não propostas participativas fazem com que o livro pouco avance na análise sobre o que realmente pauta a dinâmica política das experiências de OP e, de resto, das “instituições participativas”. A incorporação da sociedade política em sua argumentação é restringida por seu arcabouço teórico anterior, vinculado ao protagonismo da sociedade civil na proposição de processos participativos. Esta visão permanece em Participatory institutions in democratic Brazil, impedindo-o de avançar significativamente na incorporação à análise das dinâmicas próprias da sociedade política.

Artigos e livros publicados ao longo desta década14 têm contribuído para que se forme a seguinte tese: as “instituições participativas” são freqüentadas principalmente por agentes (indivíduos e grupos) situados nas franjas da “sociedade política”, em torno (ou mesmo no interior) dos partidos políticos. Esta visão é reforçada à medida que se sobe na escala de proximidade com a sociedade política, ou seja, no caso das experiências de orçamento participativo, de maneira crescente desde as reuniões de bairro até os “conselhos do orçamento participativo”, que deliberam sobre a proposta orçamentária a ser apresentada à Câmara de Vereadores e têm maior capacidade institucional de interagir com o poder municipal. A proximidade com as esferas estatais invariavelmente é utilizada pelos conselheiros para um melhor posicionamento pessoal (ou de grupo) no interior da dinâmica político-partidária-eleitoral de cada bairro e da cidade.

Diante disso, é preciso que o referencial analítico sobre os processos participativos induzidos pelos poderes públicos seja remodelado. Deve-se caracterizar, afinal, quem acorre aos conselhos e, mais do que qualificar e mensurar a relação dos conselheiros com organizações da sociedade civil, verificar qual o nível de relação destes com a sociedade política, tanto nas instituições (governos, partidos), como nos processos típicos das disputas realizadas na sociedade política, sobretudo as campanhas eleitorais. Afinal, quem é a “sociedade civil” que participa dessas experiências? E em que medida seus “representantes” podem ser considerados como tal, uma vez que, numa visão mais acurada, mantêm vínculos tão fortes com a sociedade política?

Este veio de análise não poderia ser trilhado por Avritzer, pois põe à prova suas teses originais sobre uma “sociedade civil” que demandaria espaços de participação e atuaria neles de maneira autônoma pela democratização do Estado. O argumento do livro, de que “o elemento analítico relevante é como sociedade civil e sociedade política interagem” (p. 165), mantém intacto o espírito de seus textos desde A moralidade da democracia15. É notável como, em Participatory institutions in democratic Brazil— embora avance na observação do contexto local das relações internas dos governos e partidos —, sociedade civil e sociedade política permanecem como elementos estanques. Pouco se diz sobre o quanto a dimensão substantiva da sociedade civil — tal como conceituada por Avritzer —, em vez de se afirmar, pode ser diminuída nos orçamentos participativos e nas outras instituições políticas.

Notas

1 Princeton/Oxford: Princeton University Press, 2002. [Links] 2 Todas as passagens do livro citadas foram traduzidas pelo autor.
3 Provavelmente, esta incorporação da sociedade política como um componente analítico no mesmo nível da sociedade civil tenha se devido, de um lado, a outros trabalhos sobre o OP que enfatizaram a centralidade das iniciativas partidárias para o sucesso (ou fracasso) de inúmeras experiências. De outro lado, Avritzer passa a reconhecer a multiplicidade de situações relativas à “vontade política” com relação ao OP no interior mesmo do Partido dos Trabalhadores e outros partidos de esquerda.
4 É interessante perceber como o autor, assim, vincula diretamente os movimentos sociais que demandam políticas públicas de todas as ordens à ação estrita da Igreja Católica.
5 AVRITZER, Leonardo, RECAMÁN, Marisol e Venturi, Gustavo. “O associativismo na cidade de São Paulo”. In: AVRITZER, L. (org.). A participação em São Paulo. São Paulo: Editora da Unesp, 2004, pp. 11-57. [Links] 6 AVRITZER. “O orçamento participativo: as experiências de Porto Alegre e Belo Horizonte”. In: DAGNINO, Evelina (org.).Sociedade civil e espaços públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2002, pp. 17-45; [Links] Ibidem, “O orçamento participativo e a teoria democrática: um balanço crítico”. In: AVRITZER e NAVARRO, Z. (orgs.). A inovação democrática no Brasil: o orçamento participativo. São Paulo: Cortez, 2003, pp. 13-60. [Links] 7 FILOMENA, César L. O agonismo nas relações sociais do partido, dos espaços públicos da sociedade civil e do sistema administrativo estatal: a experiência da Administração Popular em Porto Alegre. Porto Alegre: dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC-RS, 2006. [Links] 8 Antonio Hohlfeldt retira-se do PT em 1993, filiando-se ao PSDB, e José Fortunati, em 2001, filiando-se ao PDT. Ambos continuaram como figuras de proa na política no Rio Grande do Sul, sendo que Hohlfeldt foi vice-governador do estado (no governo de Germano Rigotto — PMDB) e José Fortunati é, atualmente, o prefeito de Porto Alegre (beneficiado pela renúncia de José Fogaça — PMDB).
9 O que não quer dizer que tenha sido o único critério para nomeações.
[10] BAIERLE, Sergio. “OP ao termidor?”. In: VERLE, João e BRUNET, Luciano (orgs.). Construindo um mundo novo: avaliação da experiência do orçamento participativo em Porto Alegre — Brasil. Porto Alegre: Guayí, 2002, p. 132-64. [Links] Cf. Filomena, op. cit.
11 Cf. AVRITZER, Democracy and the public space in Latin America, op. cit.; “O orçamento participativo: as experiências de Porto Alegre e Belo Horizonte”, op. cit.; “O orçamento participativo e a teoria democrática: um balanço crítico”, op. cit.
12 AVRITZER, Democracy and the public space in Latin America, op. cit., pp. 152-3.
13 Segundo survey utilizado como referência por Avritzer, em 2003, 69% dos participantes do OP de São Paulo pertenceriam a associações voluntárias.
14 NAVARRO, Zander. “Orçamento participativo de Porto Alegre (1989-2002): um conciso comentário crítico”. In: AVRITZER e NAVARRO op. cit., pp. 89-128; [Links] Wampler, Brian. “Instituições, associações e interesses no orçamento participativo de São Paulo”. In: AVRITZER (org.). A participação em São Paulo, op. cit., pp. 371-407; [Links] GURZA LAVALLE, Adrian, Houtzager, Peter e Achrya, Arnab. “Lugares e atores da democracia: arranjos institucionais participativos e sociedade civil em São Paulo”. In: COELHO, Vera Schattan e NOBRE, Marcos (orgs.). Participação e deliberação: teoria democrática e experiências institucionais no Brasil contemporâneo. São Paulo: Editora 34, 2004, pp. 343-67; [Links] Baiocchi, Gianpaolo. Militants and citizens: the politics of participatory democracy in Porto Alegre. Stanford-CA: Stanford University Press, 2005; [Links] COELHO, Vera Schattan e FAVARETO, Arilson. “Dilemas da participação e desenvolvimento territorial”. In: Democracia, sociedade civil e participação. Chapecó: Argos, 2007, pp. 97-126; [Links] WAMPLER, Brian. Participatory budgeting in Brazil: contestation, cooperation, and accountability. University Park, PA: The Pennsylvania State University Press, 2007. [Links] 15 AVRITZER. A moralidade da democracia: ensaios em teoria habermasiana e teoria democrática. São Paulo/Belo Horizonte: Perspectiva/Editora da UFMG, 1996. [Links]

Wagner de Melo Romão – Doutorando no Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo.

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O imaginário da cidade. Visões literárias do urbano / Sandra J. Pesavento

O Imaginário da Cidade é uma obra que se insere no que chamaríamos de história cultural do urbano, que se propõe a estudar a cidade através de suas representações. É através dessas que a autora, Sandra Jatahy Pesavento, professora e historiadora formada pela UFRGS, mestre em História pela PUCRS e doutora em História pela USP, pós-doutora pela Sourbonne e EHESS, na França e ex- professora do departamento de História da UFRGS, busca retratar o “real do passado”.

No caso, Pesavento vai se apropriar das representações literárias como meio de acesso à investigação do passado, percebendo, nas metáforas e nas imagens mergulhadas em seu seio, o imaginário das sensibilidades de uma época que procura se construir a partir do pensar e do agir dentro de um parâmetro de urbano, preso na ideia que chamaríamos de modernidade.

Pois, para ela, a literatura, ao “dizer a cidade”, condensa a experiência do vivido na expressão de uma sensibilidade “feita texto”. Essa é, pois, uma “estratégia de abordagem teóricometodológica que aponta para o cruzamento das imagens e discursos da cidade e que, por sua vez, conduz a um aprofundamento das relações entre história e literatura, além de ter por base o contexto da cidade em transformação” (PESAVENTO, 2002, p.10). Ora, “textos literários e de arquivo não são da mesma natureza, mas fazem parte, ambos, do que chamamos de referencial de contingência, que é socialmente construído e, como tal, histórico” (PESAVENTO, 2002, p.391). Mais do que isso, entendemos que o discurso urbano, o texto literário, a narrativa do historiador, os artigos de jornal, e outros tantos registros de linguagem são todos representações do real e, no caso, recriam a cidade.

Vale salientar que a autora já tem certa experiência nessa linha de pesquisa como pode ser percebido em outras obras de sua autoria, tais como: Os pobres da cidade (1994), Imagens Urbanas (1997), Uma outra cidade: O mundo dos excluídos no final do século XIX (2001), entre outras reflexões.

Por intermédio desse corpus documental, a autora vai investigar e analisar recortes temporais e espaciais diferenciados e significativos na sua espacialidade: “da Paris do final do século XVIII às reformas de Haussmann, na segunda metade do século XIX, o Rio de Janeiro da belle époque e de Pereira Passos do início do século, e a Porto Alegre do final do século às primeiras décadas do século XX, mais precisamente, até a gestão de José Montaury na prefeitura dessa cidade, finda em 1924” (PESAVENTO, 2002, p.22). Nesse percurso, investiga com um olhar literário as construções de perfis e paradigmas de modernidade e de como discursos e imagens construídas sobre o urbano são capazes de migrar no tempo e no espaço. Essas ideias e representações ganham um novo significado ao se mesclarem com as especificidades locais, fazendo com que possamos retratar o padrão identitário dessa cidade e consequentemente termos acesso às sensibilidades e às experiências vividas por seus habitantes.

A obra é composta por 5 capítulos, cujo primeiro, “A pedra e o sonho, os caminhos do imaginário urbano”, apresenta a temática do livro e conceitos aplicados pela linha de pesquisa escolhida pela autora, tais como representação, imaginário e alegoria. Pesavento aborda a cidade como o “lugar do homem”, que se presta à multiplicidade de olhares entrecruzados que, de forma transdisciplinar, busca entender a pluralidade da cidade e o conhecimento sobre essa. Esses discursos e essas visões não se hierarquizam, vão se cruzar e não vão se excluir, vão se justapor e darão ao leitor do urbano uma forma de entender o que chamaríamos de “cidade plural”, fenômeno múltiplo e poliocular.

Nesse capítulo, a autora deixa clara a distinção do oficio do historiador e do escritor: o historiador busca recriar o que teria se passado um dia, e o escritor de literatura cria um enredo que poderia também ter ocorrido. Nesse sentido, “ambas as representações são plausíveis e trata de convencer o leitor e transportá-lo há outro tempo, mas só o historiador empenha-se em demonstrar que a sua versão não é apenas, poderia ter sido, mas efetivamente foi” (PESAVENTO, 2002, p.13).

A problemática é apresentada nesse capítulo para evidenciar o modelo de metrópole difundido pelo mito de modernidade da capital da França, em que o imaginário do urbano dessa se universaliza, ultrapassando o além mar, influenciando, assim, os padrões estéticos e arquitetônicos das cidades brasileiras, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Assim, Paris serve como referência de civilidade e progresso.

No segundo capítulo, “O imaginário de Paris – no final do século XVIII ao final do século XIX, procura-se entender as transformações de Paris num contexto marcado pela ascensão da burguesia e pela influência do Iluminismo, em que a cidade acaba sofrendo algumas mutações decorrentes do apelo e do desenvolvimento do capitalismo francês. Em virtude do crescimento exagerado de sua população, essa capital passa por profundas mudanças em sua forma arquitetônica, estética, cultural e moral para atender os anseios dos indivíduos que compõem uma classe privilegiada.

Aos poucos, a capital da França vai ganhando nova forma. Renunciará a tradição, as muralhas e entrará em um processo rumo à modernidade. Paris ganha, portanto, uma nova concepção de “cidade aberta” e é nesse sentido que se colocam os discursos literários em busca de mostrar uma cidade em pleno progresso econômico e social, um símbolo de civilização. Dessa forma, autores como Mecier, Bretonne e Vitor Hugo, por exemplo, vão retratar, através de metáforas, a nação de urbanidade, ora identificada com um alto grau de civilização e cultura, ora de barbárie e repúdio.

No capítulo 3, Rio de Janeiro uma cidade no espelho, a autora busca investigar a cidade carioca à cultura ocidental moderna. A ideia do “mito de Paris”, como referência emblemática, incentiva o prefeito do Rio de Janeiro, Pereira Passos, nas transformações urbanísticas dessa urbe. Ao longo do século XIX, o Brasil passará por algumas mudanças no âmbito político, econômico e social. De uma monarquia, passará para um regime republicano.

As cidades com perfis de “cidade colonial brasileira, com suas ruas estreitas, seu casario baixo entremeado de alguns sobrados, com um traçado irregular de ruas, ruelas e becos, entremeados de paços, praças e chafarizes” (PESAVENTO, 2002, p.164) começariam a ser substituídos, no século XIX, pela proposta européia de metrópole moderna, de uma urbe ideal, ordenada e planejada. Assim, “a Paris mística não é só a capital da França, mas a de um século, como definiu Walter Benjamin, além de se tornar a referência imagética, o porto de ancoragem para os sonhos da cidade almejada” (PESAVENTO, 2002, p.392). Sendo assim, a remodelagem da cidade do Rio de Janeiro atenderia os anseios de apresentar esse centro urbano como o cartão postal de um país que aspirava ser civilizado; essa imagem, porém, não agradava a todos, principalmente os literatos da época como João do Rio e Lima Barreto, sendo, o segundo, quem mais criticou e debochou da “capital das aparências” e declarava, nessa época, que essa ainda era “uma velha e feia cidade, de ruas estreitas e mal calçadas, mas, não sei porque, mais interessante, mais sincera, do que esse Rio binocular que temos agora, Rio trompe d`oeil, com avenidas e palácios de fachadas, só cascas de casa, espécie de portentos cinematográficos” (PESAVENTO, 2002, p.222). O Rio de Janeiro foi o microcosmo de análise para a reflexão de Lima Barreto sobre o Brasil e sobre esse poder mágico dos nacionais de se conceberem de forma diferente daquilo que eram. Daí “o país se enxergar da maneira como desejava ser e viver essa transfiguração do real como verdadeira.

Todos se julgavam lordes, mistificando um país de mestiços e miseráveis” (PESAVENTO, 2002, p.227). A imagem do espelho era, em tudo, melhor do que o mundo do lado de cá. “Por que resistir à tentação do imaginário? As pessoas acreditavam naquilo que queriam ver, e o Rio apresentava aquela situação de fachada, de teatralização da vida, distorcendo o real ou, então, ignorando o lado incômodo da existência” (PESAVENTO, 2002, p.227). A obra de Lima Barreto é, nesse caso, pejada de figuras e situações metafóricas, cujo significado último encontraria na capacidade do homem de se conceber diferente daquilo que é. Os Bruzundangas é o texto no qual a paródia atinge a dimensão global: neste “país das maravilhas”, os cidadãos da elite cultivada se julgavam outros, distantes daquilo que são”.

(PESAVENTO, 2002, p.227). Com essa via literária, Lima Barreto tinha à intenção, segundo a autora, “de criticar o governo republicano, sua burocracia e seus métodos violentos como o meio literário medíocre e, sobretudo, o preconceito de cor que leva à discriminação social” (PESAVENTO, 2002, p.227).

Mas seria a cidade apenas com vícios ou uma cidade com virtudes? Pesavento nos leva a compreender que a urbe é o espaço que se situa acima do bem e do mal, amoral e relativa. A cidade é sempre um desafio, “uma personificação da modernidade, que atrai e seduz, mas, ao mesmo tempo, que aterroriza e faz recuar” (PESAVENTO, 2002, p.231), portanto, ela deve ser analisada a partir daquilo que ela representa para cada indivíduo. O Rio de Janeiro, para alguém do interior, era, “sobretudo conforto e facilidades da vida moderna, elementos que davam beleza e encanto à vida, e até mesmo no seu lado pernicioso tinha uma capacidade de envolver”( PESAVENTO, 2002, p.230).

Vendo o desenvolvimento da capital do país, outros lugares do Brasil, como Porto Alegre, começaram a se espelhar no Rio de Janeiro. As oscilações valorativas da cidade-vício e da cidade-virtude, o desencantamento com o mundo e do reencantamento proporcionado pela modernidade urbana vão implicar em uma requalificação do campo. E, sendo assim, o Rio Grande do Sul, mais especificamente Porto Alegre, aufere a atenção da autora no 4º Capítulo – Os Ecos do Sul- Porto Alegre e seu duplo (1890-1924).

As visões do desenvolvimento da capital gaúcha vão oscilar entre o viver modernourbano, agitado pelo crescimento acelerado de sua população e por audaciosas boemias, e no oposto, mais visível, a inércia e a vida simples de campo ou aldeia. Assim, Porto Alegre fica em um dilema: seguir o progresso proposto pela positividade das referências identitárias transmitido por Paris e pelo Rio de Janeiro, para assim se configurar enquanto metrópole ou preservar as tradições e os hábitos de aldeia que trazem a sensação de nostalgia.

Através do olhar literário que também se expandia sobre o urbano dessa cidade, podemos perceber o confronto dessas imagens do passado com as do presente. O olhar se volta para o positivo do rural voltado para o passado, num trabalho de recuperar, pelo imaginário, um tempo e um espaço preciso. Assim, a visão que se tem da cidade supracitada é bipolar, “que transita pelos paradigmas da metrópole, com o seu agito, a multidão, as atrações da rua, o luxo, a ostentação, o prazer fácil, o povo apreensivo e nervoso” (PESAVENTO, 2002, p.310) e uma cidade tranquila e cheia de lembranças.

No último capítulo, Um Fim e um Começo, mas sempre cidade, a autora mostra todo o estudo feito durante a obra, resumindo, portanto, cada um dos textos que a compõem e evidenciando a problemática central, trazendo uma conclusão que nos faz enxergar na literatura um palco repleto de possibilidades para o historiador se debruçar. Ao usar o seu olhar investigativo sobre esse campo, os “mestres da história”, sobre essa determinada fonte, poderão enxergar um “real” de um mundo trazido por essas imagens pictóricas e metáforicas enraizadas nesse tipo de documento, para assim confirmar, ou não, um sonho almejado por uma época, no caso exemplificado nessa obra, as cidades que procuravam se tornar urbanomodernas e seguir certos padrões de civilidade.

Adson Rodrigo Silva Pinheiro – Graduando em História – Uece e bolsista FUNCAP. E-mail: [email protected].


PESAVENTO, Sandra J. O imaginário da cidade. Visões literárias do urbano. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002. 400p. Resenha de: PINHEIRO, Adson Rodrigo Silva. Embornal, Fortaleza, v.1, n.1, p.1-5, 2010. Acessar publicação original. [IF].

No território da Linha Cruzada: a cosmopolítica afro-brasileira | José Carlos Gomes dos Anjos

O livro No território da linha cruzada: a cosmopolítica afro-brasileira é escrito por José Carlos Gomes dos Anjos, e trata-se de um trabalho etnográfico no qual o autor, enquanto antropólogo, militante do movimento negro e filho-de-santo de um terreiro de Linha Cruzada, vale-se desses diferentes status, em diferentes momentos, para configurar sua problemática, colher seus dados e construir o texto etnográfico. Antropólogo já antes envolvido em pesquisas sobre religiosidade afro-brasileira, o autor volta seu olhar ao processo de remoção da Vila Mirim – uma vila de maioria negra no centro de Porto Alegre – para a implementação do entroncamento de três grandes avenidas, quando o movimento negro é acionado para mediar os conflitos que a iminência da remoção provocam. Dos 113 domicílios da área a ser removida, seis eram terreiros. É nesse contexto que dos Anjos se inicia como filho-de-santo de mãe Dorsa, uma das líderes da resistência contra a proposta da prefeitura de Porto Alegre de reassentar os moradores no bairro Rubem Berta, movimento instaurado em 1992, quando em reunião realizada num terreiro, formou-se a Comissão dos Moradores a serem removidos. A única reivindicação alcançada pela comunidade foi de não ser removida para Rubem Berta, mas para o bairro Chácara da Fumaça.

O autor, então, norteia suas análises acerca das estratégias políticas dos atores envolvidos nesse processo: a Comissão dos Moradores contra a remoção, a Associação dos Moradores da Vila Divina Providência (a favor da remoção), a Prefeitura de Porto Alegre e o Movimento Negro Unificado. Leia Mais

O imaginário da cidade. Visões literárias do urbano | Sandra Jathay Pesavento

Gravuras, desenhos e fotografias mostrando os vários lugares e espaços originais das cidades de Paris, Rio de Janeiro e Porto Alegre, em meados do século XIX e inícios do XX, compõem o livro Imaginário da Cidade. Visões literárias do urbano, de Sandra Jatahy Pesavento2. Algumas dessas imagens nos remetem à Paris de 1739 a 1876, aos sobrados sombrios das ruas Marmousets, Pirouette e de la Colombe – hoje desaparecidas em função das reformas urbanas. Outras revelam paisagens de Porto Alegre (no início do século XX) e do Rio de Janeiro (na segunda metade do século XIX). O mercado público, as praças e as ruas da capital gaúcha são flagrados em sua modesta suntuosidade por fotógrafos desconhecidos. A modernidade da Avenida Central da cidade carioca, com seus suntuosos palacetes, se justapõe aos registros de moradias populares (como os cortiços) e da destruição de morros da cidade – cenas captadas pelas lentes das câmeras de Victor Frond, Marc Ferrez e Augusto Malta. Leia Mais

Rivalidades e solidariedades no movimento operário (porto Alegre 196-1911) – BILHÃO (AN)

BILHÃO, Isabel. Rivalidades e solidariedades no movimento operário (porto Alegre 196-1911). Porto Alegre: Editora da PUC-RS, 1999. Resenha de: SCHMIDT, Benito Bisso. Anos 90, Porto Alegre, v.8, n.13, p.134-138, 2000.

Benito Bisso Schmidt – Professor no Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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