Pessoas comuns, histórias incríveis: a construção da liberdade na sociedade sul-rio-grandense – SILVA (RBH)

O Brasil não sofre de falta de passado, talvez ele conviva com um excesso de passado. A questão que se coloca não é a ausência de uma noção do passado nacional, mas sim de qual passado se preserva. Essa ideia foi apresentada por Fernando Nicolazzi na conferência “História e Historiografia em tempos de transição”, oferecida no XVI Encontro Regional de História (Anpuh/Paraná, 2018). O passado que se cultiva no Brasil pode ser pensado nos termos propostos por Manoel Bomfim, ainda na primeira metade do século XX. Bomfim destacou em suas obras como o Brasil incorporava narrativas postas a deturpar sua trajetória histórica, bem como perpetuava um padrão de socialização calcado no parasitismo social (Bomfim, 20052013). Esse passado que se cultiva é, em grande medida, aquele que perpetua as premissas estamentais da sociedade brasileira. Leia Mais

História oral e práticas educacionais – RODEGHERO (HO)

RODEGHERO, Carla Simone; GRINBERG, Lúcia; FROTSCHER, Méri (Org.). História oral e práticas educacionais. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2016. 226 p. Resenha de: SANTHIAGO, Ricardo. A história oral e suas possibilidades educacionais. História Oral, v. 20, n. 1, p. 237-240, jan./jun. 2017.

O livro História oral e práticas educacionais, organizado por Carla Simone Rodeghero, Lúcia Grinberg e Méri Frotscher, consolida e amplia discussões motivadas pelo 13º Encontro Nacional de História Oral, realizado em 2016 na cidade de Porto Alegre, em torno do mesmo tema. A diversidade dos artigos que compõem a obra mostra-se não a despeito do tema unificador do evento, mas, ao menos em parte, em função dele. No Brasil, afinal, a história oral desenvolveu-se predominantemente enquanto uma especialidade acadêmica, perseguida no seio da universidade e favorecida pela expansão do sistema de pós-graduação.

Diferentemente do que ocorreu em contextos onde a história oral floresceu em arquivos, bibliotecas e institutos eminentemente investigativos, aqui a pujança do campo esteve atrelada às universidades; deve-se ao entusiasmo de estudantes que, com inúmeras teses, dissertações e trabalhos de graduação, tiveram e têm um papel fundamental em dimensionar a prática da história oral e garantir que ela seja considerada como um recurso de pesquisa valioso e como um empreendimento coletivo capaz de oferecer interpretações sólidas e muitas vezes desafiadoras sobre o passado e o presente.

A principal novidade da coletânea reside no esforço de sistematização de reflexões e experiências sobre o uso da história oral no ensino – em universidades, escolas e espaços de educação não formal –, aliando-se a outras publicações recentes que tratam do assunto. A busca por essa sistematização dá o tom da primeira parte da obra, História oral e práticas educacionais.

O capítulo De volta ao futuro: o poder político da história oral na educação, da canadense Kristina R. Llewellyn, provém de um contexto que tem a história oral como recurso frequente na escola básica, em variadas disciplinas e em projetos interdisciplinares. Llewellyn argumenta que a história oral “proporciona aos jovens a capacidade de transformar narrativas históricas sobre suas nações e empoderaos para moldar seu futuro político” (p. 17), mas defende que isso passa por uma reorientação da “cultura do testemunho” em que os jovens estão inseridos e das ferramentas tecnológicas em que essa cultura está encarnada. A autora entende o uso do método na escola como um caminho para a democratização e para a consciência crítica, e oferece exemplos de como isso tem sido perseguido, inclusive no projeto que integra, que combina história oral, realidade virtual e realidade aumentada.

Os dois textos seguintes harmonizam o entusiasmo de Llewellyn com reflexões que descortinam a complexidade do uso pedagógico da história oral.

Em Dois temas sensíveis no ensino de história e as possibilidades da história oral: a questão racial e a ditadura no Brasil, Verena Alberti vai além das dimensões sinalizadas por seu título e evidencia como “a própria História já pode ser vista como uma matéria sensível e controversa” (p. 38). Com exemplos instrutivos e propostas pedagógicas práticas, Alberti demonstra de que formas as histórias pessoais podem ser utilizadas como aliadas para desafiar noções do senso comum e estimular o pensamento crítico. Em História oral e história recente do Brasil: desafios para a pesquisa e para o ensino, Carla Simone Rodeghero reforça a ideia de que as histórias orais servem não somente para sensibilizar, mas também para favorecer a compreensão crítica: recuperando dois de seus temas de estudo, o anticomunismo e a anistia, a autora evidencia a capacidade que os relatos orais têm de tensionar leituras e interpretações estabelecidas sobre o passado.

A segunda parte do livro, História oral: experiências e possibilidades na educação formal e não formal, é aberta por Isabel Cristina Martins Guillen, que em História oral e ensino de história: experiências e debates nutre-se de várias experiências de uso da história oral no âmbito da graduação em História para dissertar acerca do valor pedagógico da história oral e da história local enquanto abordagens capazes de enfrentar questões globais nos estudos sobre o presente. Suas ideias encontram ressonância no ensaio História do tempo presente, história oral e ensino de história, em que Marieta de Moraes Ferreira entrelaça as dimensões de seu título, objetos de reflexão persistentes em sua trajetória, reconhecendo que “as novas metas do ofício de historiador” são balizadas pela “tensão entre seu papel social e seu compromisso com a produção científica” (p. 132) e sugerindo que a história oral é um caminho possível para que o profissional persiga essas metas.

Os outros artigos relatam percursos nos quais os procedimentos estabelecidos encontram-se com a criatividade e integram-se a dinâmicas interdisciplinares e práticas multiprofissionais. Em História, memória e performance em narrativas orais de crianças, Luciana Hartmann recapitula três experiências de investigação distintas em termos de tema e abordagem; da perspectiva de uma antropóloga que estuda performance e as múltiplas manifestações da oralidade, ela chama atenção para esses narradores raramente convocados a relatar suas experiências, valorizando o aproveitamento pedagógico do impulso narrativo das crianças. Em Memória, cultura e educação não formal: experiências de pesquisa, a socióloga Olga Rodrigues de Moraes von Simson revisita seu próprio itinerário, demonstrando como, a partir de seu estudo pioneiro sobre o carnaval paulista, outros territórios temáticos e geográficos puderam ser explorados, em uma perspectiva que configura o diálogo entre estudiosos e sujeitos de pesquisa como propulsor do desenvolvimento de uma consciência identitária e de um senso de pertencimento cultural. Em O amor entre a voz e a coisa: a construção de uma exposição sobre o amor a partir do depoimento dos doadores de objetos, Kênia Sousa Rios relata como, partindo do inventivo deslocamento semântico da expressão “prova de amor”, ela propôs aos seus alunos uma reflexão histórica sobre o amor romântico e os temas que ele vivifica, como as relações familiares e os papéis de gênero; essa discussão culminou na criação de uma exposição que, valendo-se de histórias orais, retratos e objetos, encarnou as expectativas, os sonhos, os delírios e as frustrações que enlaçam histórias de amor.

A parte final da obra, intitulada História oral, pesquisa, ensino e acervos, é aberta por Luciane Sgarbi S. Grazziottin, que em História da educação e história oral: possibilidades de pesquisa em acervos de memória reflete sobre os problemas envolvidos nas pesquisas que se valem de entrevistas arquivadas, mencionando três acervos utilizados em seus próprios estudos. Em História oral e educação matemática: perspectivas e um projeto coletivo, Antonio Vicente Marafioti Garnica e Maria Ednéia Martins Salandim relatam a trajetória do Grupo História Oral e Educação Matemática (GHOEM), no qual a história oral acopla duas funções de igual importância: estabelecer novas fontes para o estudo da formação e do ensino de matemática e dinamizar, junto com os educadores, um processo de reflexão que constitui e revela uma identidade profissional específica. Em Garimpando memórias: esporte, lazer e educação física, Silvana Vilodre Goellner recupera a trajetória do Centro de Memória do Esporte (CEME) da UFGRS, dedicado à guarda e à investigação de acervos esportivos e também à produção cultural, já que os depoimentos são base para exposições, programas educativos e para um acervo digital. O artigo explicita o compromisso em oferecer visibilidade pública às histórias colhidas, em coerência com o impulso de reconhecer o papel das experiências de outros sujeitos que não os vencedores (em se tratando de esportes competitivos, no sentido literal).

O último capítulo da obra, Memórias em movimento: a experiência com fontes orais e visuais do Laboratório de História Oral e Imagem da UFF, de Ana Maria Mauad, ultrapassa a proposta da autora e pode ser interpretado como um encapsulamento de questões que permeiam todo o livro, cujo enfrentamento é crucial na abordagem da história oral como prática educacional.

Em primeiro lugar, é crucial por chamar atenção para os desafios de tomar a memória como um objeto de estudo a ser inquirido criticamente, para além de seu papel celebrativo e reiterativo ou de sua capacidade de sensibilização.

Em segundo, por fazer notar a intertextualidade constitutiva dos textos culturais, cuja leitura é condicionada pelos textos (escritos, orais, imagéticos etc.) que os precedem e sucedem, numa trama histórica complexa. Por fim, não menos importante, por acionar as noções de “prática historiadora” e “prática social”. A justaposição de ambas – “na produção de um conhecimento intersubjetivo e reconhecido como válido pelos sujeitos históricos” (p. 210) – é uma característica que explica, ao menos em parte, a disposição de um número crescente de educadores em incorporar a história oral como ferramenta pedagógica em espaços variados de educação formal e não formal.

Ricardo Santhiago – Doutor em História Social pela Universidade São Paulo (USP), com pós-doutorado em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor do Departamento de Desenvolvimento Humano e Reabilitação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pesquisador do Laboratório de História Oral e Imagem (LABHOI-UFF), do Grupo de Estudo e Pesquisa em História Oral e Memória (GEPHOM/EACH-USP) e do Centro de Estudos em Música e Mídia (MusiMid). E-mail: rsanthiagoc@ gmail.com.

A tentação fascista no Brasil: imaginário de dirigentes e militantes integralistas – TRINDADE (RBH)

TRINDADE, Hélgio. A tentação fascista no Brasil: imaginário de dirigentes e militantes integralistas. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2016. 837p. Resenha de: GONÇALVES, Leandro Pereira. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.36, n.73, set./dez. 2016.

São 17 horas em Brasília. Com os olhos inchados, o rosto deformado pelos anos e após acordar de uma longa sesta, o antigo (e eterno, para os militantes) chefe dos integralistas concedeu uma entrevista ao então doutorando em Ciência Política da Université Paris 1 (Panthéon-Sorbonne) Hélgio Trindade, que teve um segundo encontro com o líder dos camisas-verdes em São Paulo. Na ocasião das pesquisas, foram realizadas entrevistas com Miguel Reale, Dario Bittencourt e Rui Arruda, dentre outros integralistas ou simpatizantes, como Alceu Amoroso Lima e Menotti Del Picchia.

O momento não era nada propício para o desenvolvimento de uma pesquisa dessa estirpe, pois estávamos vivendo os duros tempos da ditadura civil-militar e muitos dos integralistas dos anos 1930 eram figuras ativas no contexto do regime autoritário, como o general Olympio Mourão Filho, que recebeu de pijama e chinelos o então doutorando em seu apartamento, em Copacabana. Detalhes pitorescos e impensáveis que serão descobertos nas 837 páginas do livro A tentação fascista no Brasil: imaginário de dirigentes e militantes integralistas.

Não há estudioso que não tenha esbarrado com o nome de Hélgio Trindade. A tese de doutorado denominada L’Action intégraliste brésilienne: um mouvement de type fasciste au Brésil, traduzida e publicada no Brasil, em 1974, sob o título Integralismoo fascismo brasileiro na década de 30 (Trindade, 1974), é cada vez mais viva na Ciência Política e nos trabalhos historiográficos. Esse estudo promoveu a entrada da temática no meio acadêmico, sendo também responsável por tornar conhecido o movimento e tê-lo interpretado. O pesquisador gaúcho foi o precursor dos estudos e é referência cada vez mais atuante para os que buscam compreender esse fenômeno político do século XX que arrastou multidões e mobilizou milhares de pessoas em torno de um grande nome: Plínio Salgado.

A nova produção de Hélgio Trindade é lançada em contexto acadêmico extremamente oposto ao do momento de divulgação da tese, em 1974, quando não havia amplos diálogos. A tentação fascista no Brasil: imaginário de dirigentes e militantes integralistas é uma espécie de “promessa” do professor emérito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Em 1979, o ex-reitor da UFRGS e da Unila anunciou, na 2ª edição da tese, publicada pela Difel, que um volume seguinte teria como objeto de análise um conjunto de depoimentos gravados, inéditos, colhidos com dirigentes e militantes integralistas, mas, por implicações éticas, faria a divulgação após a morte de todos.

Há muitos anos os pesquisadores comentavam sobre as entrevistas, e muitos se questionavam onde elas estavam e se realmente existiam, visto que o material sempre foi objeto de desejo de todos os estudiosos do tema. Agora, finalmente, há a possibilidade de termos em mãos uma parte significativa dos depoimentos que foram concedidos a Hélgio Trindade. Vejo como um feito da publicação o trabalho que o autor teve em organizar as entrevistas de maneira temática, pois o livro não é apenas uma simples transcrição, há um árduo trabalho metodológico acompanhado por referências e contextualizações amplas sobre o período e o Movimento.

Em “Nota prévia” o autor defende o uso fascista para a caracterização do integralismo frente ao debate da década de 1970 e suas repercussões no contexto acadêmico contemporâneo, polêmica existente desde a defesa da tese. O prefácio da segunda edição (Trindade, 1979), reproduzido no novo livro e escrito pelo cientista político da Universidade de Yale, Juan J. Linz, falecido em 2013, destaca a importância da investigação no cenário acadêmico, principalmente por identificar um tipo fascista fora do contexto europeu, temática que segue a introdução escrita pelo autor, demonstrando em uma visão continental a particularidade do movimento integralista – “O fascismo na América Latina em debate”. Antes de nos brindar com as entrevistas, faz uma síntese da tese, expondo o universo ideológico do integralismo para que o leitor possa identificar elementos da estrutura da Ação Integralista Brasileira.

Plínio Salgado, o líder do movimento, mereceu um capítulo exclusivo: “Entrevistas com dirigentes e militantes da AIB”. Nele, o chefe supremo dos camisas-verdes aponta questões sobre o passado e sobre um presente utópico. São palavras que permitem ao historiador identificar elementos até então conhecidos no campo das hipóteses, nos aspectos político, cultural, internacional, religioso ou mesmo pessoal. Com as entrevistas, é possível contribuir com diversas investigações, como a força exercida pela intelectualidade portuguesa em Plínio Salgado, tanto na juventude, pela leitura de obras ligadas aos católicos lusitanos, como no contexto do pós-guerra, quando António de Oliveira Salazar estabeleceu papel preponderante na composição de um novo Plínio Salgado após o exílio (cf. Gonçalves, 2012).

Em “Imaginário da elite dirigente e Dirigentes e Militantes Locais” Trindade oferece entrevistas realizadas entre maio de 1969 e setembro de 1970 com representantes do movimento e líderes de destaque no cenário político: Frederico Carlos Allendi, Rui Arruda, Dario Bittencourt, Margarida Corbisier, Roland Corbisier, José Ferreira da Silva, Arnoldo Hasselmann Fairbanks, Antonio Guedes Hollanda, Américo Lacombe, José Ferreira Landin, Edgar Lisboa, José Loureiro Júnior, Jeovah Mota, Olympio Mourão Filho, Erico Muller, Zeferino Petrucci, Miguel Reale, João Resende Alves, Goffredo da Silva Telles, Ângelo Simões Arruda, Ponciano Stenzel, Antonio de Toledo Pizza e Aurora Wagner. Como as entrevistas estão no anonimato, uma relação foi inserida no fim do livro, mas no início de cada entrevista há uma pequena biografia do depoente que permite ao estudioso a identificação, mas isso não é tão simples para os demais leitores.

Em sequência, Trindade traz em “Olhares externos de intelectuais independentes” entrevistas de personalidades que viveram o período e que conviveram em algum momento com Plínio Salgado e outros membros do movimento: Alceu Amoroso Lima, Cruz Costa, Candido Morra Filho, Menotti Del Picchia e Antonio Candido, sendo este último o único depoente ainda vivo. Como não há relações políticas e comprometimentos em algumas passagens, os nomes desses são identificados nas entrevistas.

A obra, que marca o retorno do autor ao debate (apesar de nunca ter deixado de fazer parte da discussão),2 tem dois aspectos principais e de grande relevância: 1º) permite identificarmos o olhar do ator no contexto histórico; nas entrevistas é possível verificar passagens e trechos inimagináveis, pérolas recolhidas por Trindade; 2º) com tal produção, tem-se a possibilidade de revolucionar a historiografia, pois são documentos até então desconhecidos que, graças aos depoimentos, podem confirmar questões que se encontram no campo da hipótese ou verificar possibilidades investigativas. Além disso, o autor faz parte de um seleto rol de pesquisadores, pois, seja na história ou na ciência política, Hélgio Trindade é responsável pela construção de uma interpretação, um pensamento único e, portanto, estabelece uma composição central na esfera acadêmica.

Esta obra busca, além de identificar o imaginário dos militantes integralistas, contribuir para o entendimento de questões acaloradas da sociedade contemporânea, em que as forças políticas conservadoras estão cada vez mais atuantes e com tentações antidemocráticas, reflexões que são realizadas no epílogo: “Ainda a tentação fascista no Brasil?”.

O livro de Hélgio Trindade vem em momento oportuno, pois não pensemos que o pesadelo acabou, uma vez que a intolerância e o autoritarismo estão longe de ser página virada na história da humanidade, principalmente com a complexa crise política que culminou com as ações do dia 31 de agosto de 2016. O livro não poderia ter desfecho mais atual, pois ao citar Karl Marx, conclui: “a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”.

Referências

GERTZ, René E.; GONÇALVES, Leandro P.; LIEBEL, Vinícius. Camisas Verdes, 45 anos depois – uma entrevista com Hélgio Trindade. Estudos Ibero-americanos, Porto Alegre, v.42, n.1, p.189-208, abr. 2016. [ Links ]

GONÇALVES, Leandro P. Entre Brasil e Portugal: trajetória e pensamento de Plínio Salgado e a influência do conservadorismo português. 2012. Tese (Doutorado em História) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). São Paulo, 2012. [ Links ]

TRINDADE, Hélgio. Integralismo: o fascismo brasileiro da década de 30. São Paulo: Difel, 1974. [ Links ]

_______. Integralismo: o fascismo brasileiro da década de 30. 2.ed. São Paulo: Difel; Porto Alegre: Ed. UFRGS, 1979. [ Links ]

Nota

2 Em recente entrevista para a revista Estudos Ibero-Americanos, Hélgio Trindade aponta questões sobre sua trajetória e, principalmente, sobre o impacto da tese na academia brasileira (GERTZ; GONÇALVES; LIEBEL, 2016). Repercussões foram publicadas na edição seguinte e podem ser consultadas em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/fo/ojs/index.php/iberoamericana/issue/view/1032/showToc.

Leandro Pereira Gonçalves –  Professor adjunto do Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Pesquisador e autor de diversos estudos sobre o integralismo, notadamente, a trajetória de Plínio Salgado, é doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) com estágio no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL) e com pós-doutoramento pela Universidad Nacional de Córdoba (Centro de Estudios Avanzados), Argentina. Programa de Pós-Graduação em História, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Porto Alegre, RS, Brasil. E-mail: [email protected].

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Memórias e narrativas (auto) biográficas – GOMES; SCHMIDT (RBH)

GOMES, Ângela M. de Castro; SCHMIDT, Benito Bisso (Org.). Memórias e narrativas (auto) biográficas. Rio de Janeiro: Ed. FGV; Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2009. 278p. Resenha de: SILVA, Weder Ferreira. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.31, n.61, 2011.

O entusiasmo dos historiadores pela pesquisa no campo das narrativas biográficas e autobiográficas vem ganhando destaque nas publicações recentes no Brasil e no mundo. Um breve passar de olhos em catálogos de editoras e em estantes de livrarias atesta que o país experimenta grande aumento de publicações de caráter biográfico e autobiográfico – a título de exemplo citemos apenas O retorno de Martin Guerre, de Natalie Z. Davis (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987) e D. Pedro II, de José Murilo de Carvalho (São Paulo: Companhia das Letras, 2007).

Esse entusiasmo dos pesquisadores do campo das ciências sociais se deve ao fato de que o contato com fontes primárias, documentos, papéis, cartas, bilhetes e fotografias é capaz de revelar parcelas desconhecidas ou até então invisíveis da história e do mundo social vivenciado tanto por homens e mulheres ‘comuns’ quanto por personagens de maior relevo na história. Essa sensação é fortalecida quando o material foge aos rigores institucionais da produção documental, às características seriais e ao formato burocrático, e tem uma origem privada, um caráter pessoal, conferindo a impressão de que se está tomando contato com aspectos muito íntimos da história de seus personagens. O acesso a tais fontes tem a força de simular o transporte no tempo, a imersão na experiência diretamente vivida, sem mediações.1 Paralelamente a esse movimento, é importante ressaltar que é cada vez maior o interesse do leitor por certo gênero de escritos – uma escrita de si – que inclui diários, cartas, biografias e autobiografias, independentemente de serem memórias ou entrevistas de trajetórias de vida, por exemplo.

Como apontou Giovanni Levi, nosso fascínio de arquivistas pelas descrições impossíveis de corroborar por falta de registros documentais alimenta não só a renovação da história narrativa, como também o interesse por novos tipos de fontes – nas quais se poderiam descobrir indícios esparsos dos atos e das palavras da vida cotidiana dos atores sociais.2 É nesse mesmo movimento historiográfico que se enquadra a publicação do livro Memórias e narrativas (auto)biográficas, organizado por Ângela de Castro Gomes e por Benito Bisso Schmidt.

O conjunto de textos apresentado no livro constitui significativo exemplo de como os chamados escritos de si ou autorreferenciais vêm ganhando terreno no campo da historiografia, ilustrando, assim, as várias possibilidades e os resultados de pesquisas que utilizam tais escritos como fonte de investigação histórica. Nesse sentido, o livro Memórias e narrativas (auto)biográficas apresenta ao leitor uma nova possibilidade heurística para os arquivos privados. De acordo com os organizadores do livro, “a atenção de muitos historiadores voltou-se para os arquivos privados, nos quais passaram a procurar não apenas rastros das ações e ideias de seus personagens, mas também a forma pela qual eles constituíram a si mesmos, à medida que selecionavam e guardavam seus documentos e, assim, propunham um sentido para suas vidas” (p.7).

Na esteira das transformações pelas quais a historiografia passou desde a década de 1980, a biografia, isto é, o indivíduo, emerge como tema relevante para a compreensão não apenas do social, mas também de questões ligadas à ‘invenção’ de si. Essas novas abordagens passam a ocupar espaço privilegiado no conhecimento histórico, suscitando, com isso, reflexões sobre o espaço privado e o público, sobre o individual e o coletivo e sobre as formas narrativas e analíticas da escrita da história. Daí a importância dos acervos pessoais como elementos para a compreensão da ‘superfície social’ em que age o indivíduo numa multiplicidade de campos, a cada momento. Nos textos que compõem o livro é possível observar que as narrativas autobiográficas evidenciam de forma clara como a trajetória de um indivíduo varia no tempo, o que atesta, mais uma vez, aquilo que Pierre Bourdieu chamou de ilusão biográfica – a ilusão de uma linearidade e coerência do indivíduo.3 Dito isto, cabe ainda ressaltar a proposição de Paul Ricoeur, para quem a história de vida de indivíduo não cessa de ser refigurada por todas as histórias verídicas ou fictícias que um sujeito conta de si mesmo. Essa refiguração faz da própria vida um tecido de histórias narradas.4

Os textos que integram o livro em questão estão dispostos em quatro partes. A primeira – “O historiador entre a história e a memória” – compõe-se de um artigo de Sabina Loriga em que a autora aborda ‘as porosas fronteiras’ entre história e memória. Com base na obra A memória, a história, o esquecimento, de Paul Ricoeur (Campinas: Ed. Unicamp, 2007), a historiadora tece considerações sobre as múltiplas relações estabelecidas entre a história e a memória. Nesse sentido, o texto de Loriga antecipa o contexto historiográfico em que se situam os artigos subsequentes da obra.

Na segunda parte do livro, Ângela de Castro Gomes, Haike Roselane Kleber da Silva, Yonissa Marmitt Wadi e Keila Rodrigues de Souza abordam facetas das trajetórias de indivíduos com base nas correspondências que trocaram. Ao leitor, ficará evidente que a documentação epistolar permite ‘decompor’ a vida de indivíduos aproximando-se da sua esfera privada de atuação. Ao investigarem a troca de correspondência entre figuras de relevo da política e da intelectualidade da Primeira República, as cartas de germanistas no Brasil e bilhetes de pessoas que cometeram autoviolência, os autores tecem reflexões sobre a construção do ‘Eu’, demonstrando que as escritas de si também se constituem em lugares de memória.

Na sequência, Joseli Maria Nunes Mendonça, Benito Bisso Schmidt e Gisele Venâncio ocupam-se em investigar como determinados atores sociais construíram suas imagens por meio de narrativas autobiográficas. Essas análises são reveladoras para pensar as estratégias utilizadas de forma consciente ou não – no processo de construção de si mesmo. Nesse espectro de análise é possível notar as disputas, os silêncios, as hipérboles, enfim, as oscilações das narrativas que pretendem ‘forjar’ uma imagem de si projetadas para a posteridade.

Por fim, os artigos de Márcia de Almeida Gonçalves, Bruno Barreto Gomide, Marcelo Timotheo da Costa e Maria Elena Bernardes têm como objeto de análise as produções biográficas e autobiográficas que pretenderam traçar um sentido social e existencial para as trajetórias de notáveis intelectuais e políticos brasileiros dos séculos XIX e XX. No capítulo que encerra o livro, Maria Elena Bernardes faz uma incursão à instigante trajetória de vida da escritora e militante comunista Laura Brandão. Nessa biografia, como que em um jogo de escalas, a autora articula aspectos da vida da militante com elementos mais amplos da história do Brasil e mundial, revelando, assim, as potencialidades que a biografia pode oferecer ao campo do ofício do historiador.

Não obstante a diversidade dos objetos e de enfoques, os artigos que compõem a obra Memórias e narrativas (auto)biográficas podem ser conectados um ao outro formando, assim, um ‘hipertexto’ que se constitui em importante contribuição para o campo da historiografia que se ocupa em investigar a multiplicidade de temas relacionados aos fenômenos da lembrança, do esquecimento e da produção do ‘eu’.

Notas

1 HEYMANN, Luciana Quillet. Indivíduo, memória e resíduo histórico: uma reflexão sobre arquivos pessoais e o caso Filinto Muller. Estudos Históricos, Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, v.19, p.41, 1997.         [ Links ]

2 LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína. Usos e abusos da história oral. 8.ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2006. p.169.         [ Links ]

3 BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA; AMADO, 2006, p.183-191.         [ Links ]

4 RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Campinas (SP): Papirus, 1997. t 3. p.425.         [ Links ]

Weder Ferreira Silva – Doutorando em História Social pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. Largo de São Francisco de Paula, nº 1, sala 205. Centro. 20051-070 Rio de Janeiro – RJ – Brasil. E-mail: [email protected].

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O imaginário da cidade. Visões literárias do urbano / Sandra J. Pesavento

O Imaginário da Cidade é uma obra que se insere no que chamaríamos de história cultural do urbano, que se propõe a estudar a cidade através de suas representações. É através dessas que a autora, Sandra Jatahy Pesavento, professora e historiadora formada pela UFRGS, mestre em História pela PUCRS e doutora em História pela USP, pós-doutora pela Sourbonne e EHESS, na França e ex- professora do departamento de História da UFRGS, busca retratar o “real do passado”.

No caso, Pesavento vai se apropriar das representações literárias como meio de acesso à investigação do passado, percebendo, nas metáforas e nas imagens mergulhadas em seu seio, o imaginário das sensibilidades de uma época que procura se construir a partir do pensar e do agir dentro de um parâmetro de urbano, preso na ideia que chamaríamos de modernidade.

Pois, para ela, a literatura, ao “dizer a cidade”, condensa a experiência do vivido na expressão de uma sensibilidade “feita texto”. Essa é, pois, uma “estratégia de abordagem teóricometodológica que aponta para o cruzamento das imagens e discursos da cidade e que, por sua vez, conduz a um aprofundamento das relações entre história e literatura, além de ter por base o contexto da cidade em transformação” (PESAVENTO, 2002, p.10). Ora, “textos literários e de arquivo não são da mesma natureza, mas fazem parte, ambos, do que chamamos de referencial de contingência, que é socialmente construído e, como tal, histórico” (PESAVENTO, 2002, p.391). Mais do que isso, entendemos que o discurso urbano, o texto literário, a narrativa do historiador, os artigos de jornal, e outros tantos registros de linguagem são todos representações do real e, no caso, recriam a cidade.

Vale salientar que a autora já tem certa experiência nessa linha de pesquisa como pode ser percebido em outras obras de sua autoria, tais como: Os pobres da cidade (1994), Imagens Urbanas (1997), Uma outra cidade: O mundo dos excluídos no final do século XIX (2001), entre outras reflexões.

Por intermédio desse corpus documental, a autora vai investigar e analisar recortes temporais e espaciais diferenciados e significativos na sua espacialidade: “da Paris do final do século XVIII às reformas de Haussmann, na segunda metade do século XIX, o Rio de Janeiro da belle époque e de Pereira Passos do início do século, e a Porto Alegre do final do século às primeiras décadas do século XX, mais precisamente, até a gestão de José Montaury na prefeitura dessa cidade, finda em 1924” (PESAVENTO, 2002, p.22). Nesse percurso, investiga com um olhar literário as construções de perfis e paradigmas de modernidade e de como discursos e imagens construídas sobre o urbano são capazes de migrar no tempo e no espaço. Essas ideias e representações ganham um novo significado ao se mesclarem com as especificidades locais, fazendo com que possamos retratar o padrão identitário dessa cidade e consequentemente termos acesso às sensibilidades e às experiências vividas por seus habitantes.

A obra é composta por 5 capítulos, cujo primeiro, “A pedra e o sonho, os caminhos do imaginário urbano”, apresenta a temática do livro e conceitos aplicados pela linha de pesquisa escolhida pela autora, tais como representação, imaginário e alegoria. Pesavento aborda a cidade como o “lugar do homem”, que se presta à multiplicidade de olhares entrecruzados que, de forma transdisciplinar, busca entender a pluralidade da cidade e o conhecimento sobre essa. Esses discursos e essas visões não se hierarquizam, vão se cruzar e não vão se excluir, vão se justapor e darão ao leitor do urbano uma forma de entender o que chamaríamos de “cidade plural”, fenômeno múltiplo e poliocular.

Nesse capítulo, a autora deixa clara a distinção do oficio do historiador e do escritor: o historiador busca recriar o que teria se passado um dia, e o escritor de literatura cria um enredo que poderia também ter ocorrido. Nesse sentido, “ambas as representações são plausíveis e trata de convencer o leitor e transportá-lo há outro tempo, mas só o historiador empenha-se em demonstrar que a sua versão não é apenas, poderia ter sido, mas efetivamente foi” (PESAVENTO, 2002, p.13).

A problemática é apresentada nesse capítulo para evidenciar o modelo de metrópole difundido pelo mito de modernidade da capital da França, em que o imaginário do urbano dessa se universaliza, ultrapassando o além mar, influenciando, assim, os padrões estéticos e arquitetônicos das cidades brasileiras, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Assim, Paris serve como referência de civilidade e progresso.

No segundo capítulo, “O imaginário de Paris – no final do século XVIII ao final do século XIX, procura-se entender as transformações de Paris num contexto marcado pela ascensão da burguesia e pela influência do Iluminismo, em que a cidade acaba sofrendo algumas mutações decorrentes do apelo e do desenvolvimento do capitalismo francês. Em virtude do crescimento exagerado de sua população, essa capital passa por profundas mudanças em sua forma arquitetônica, estética, cultural e moral para atender os anseios dos indivíduos que compõem uma classe privilegiada.

Aos poucos, a capital da França vai ganhando nova forma. Renunciará a tradição, as muralhas e entrará em um processo rumo à modernidade. Paris ganha, portanto, uma nova concepção de “cidade aberta” e é nesse sentido que se colocam os discursos literários em busca de mostrar uma cidade em pleno progresso econômico e social, um símbolo de civilização. Dessa forma, autores como Mecier, Bretonne e Vitor Hugo, por exemplo, vão retratar, através de metáforas, a nação de urbanidade, ora identificada com um alto grau de civilização e cultura, ora de barbárie e repúdio.

No capítulo 3, Rio de Janeiro uma cidade no espelho, a autora busca investigar a cidade carioca à cultura ocidental moderna. A ideia do “mito de Paris”, como referência emblemática, incentiva o prefeito do Rio de Janeiro, Pereira Passos, nas transformações urbanísticas dessa urbe. Ao longo do século XIX, o Brasil passará por algumas mudanças no âmbito político, econômico e social. De uma monarquia, passará para um regime republicano.

As cidades com perfis de “cidade colonial brasileira, com suas ruas estreitas, seu casario baixo entremeado de alguns sobrados, com um traçado irregular de ruas, ruelas e becos, entremeados de paços, praças e chafarizes” (PESAVENTO, 2002, p.164) começariam a ser substituídos, no século XIX, pela proposta européia de metrópole moderna, de uma urbe ideal, ordenada e planejada. Assim, “a Paris mística não é só a capital da França, mas a de um século, como definiu Walter Benjamin, além de se tornar a referência imagética, o porto de ancoragem para os sonhos da cidade almejada” (PESAVENTO, 2002, p.392). Sendo assim, a remodelagem da cidade do Rio de Janeiro atenderia os anseios de apresentar esse centro urbano como o cartão postal de um país que aspirava ser civilizado; essa imagem, porém, não agradava a todos, principalmente os literatos da época como João do Rio e Lima Barreto, sendo, o segundo, quem mais criticou e debochou da “capital das aparências” e declarava, nessa época, que essa ainda era “uma velha e feia cidade, de ruas estreitas e mal calçadas, mas, não sei porque, mais interessante, mais sincera, do que esse Rio binocular que temos agora, Rio trompe d`oeil, com avenidas e palácios de fachadas, só cascas de casa, espécie de portentos cinematográficos” (PESAVENTO, 2002, p.222). O Rio de Janeiro foi o microcosmo de análise para a reflexão de Lima Barreto sobre o Brasil e sobre esse poder mágico dos nacionais de se conceberem de forma diferente daquilo que eram. Daí “o país se enxergar da maneira como desejava ser e viver essa transfiguração do real como verdadeira.

Todos se julgavam lordes, mistificando um país de mestiços e miseráveis” (PESAVENTO, 2002, p.227). A imagem do espelho era, em tudo, melhor do que o mundo do lado de cá. “Por que resistir à tentação do imaginário? As pessoas acreditavam naquilo que queriam ver, e o Rio apresentava aquela situação de fachada, de teatralização da vida, distorcendo o real ou, então, ignorando o lado incômodo da existência” (PESAVENTO, 2002, p.227). A obra de Lima Barreto é, nesse caso, pejada de figuras e situações metafóricas, cujo significado último encontraria na capacidade do homem de se conceber diferente daquilo que é. Os Bruzundangas é o texto no qual a paródia atinge a dimensão global: neste “país das maravilhas”, os cidadãos da elite cultivada se julgavam outros, distantes daquilo que são”.

(PESAVENTO, 2002, p.227). Com essa via literária, Lima Barreto tinha à intenção, segundo a autora, “de criticar o governo republicano, sua burocracia e seus métodos violentos como o meio literário medíocre e, sobretudo, o preconceito de cor que leva à discriminação social” (PESAVENTO, 2002, p.227).

Mas seria a cidade apenas com vícios ou uma cidade com virtudes? Pesavento nos leva a compreender que a urbe é o espaço que se situa acima do bem e do mal, amoral e relativa. A cidade é sempre um desafio, “uma personificação da modernidade, que atrai e seduz, mas, ao mesmo tempo, que aterroriza e faz recuar” (PESAVENTO, 2002, p.231), portanto, ela deve ser analisada a partir daquilo que ela representa para cada indivíduo. O Rio de Janeiro, para alguém do interior, era, “sobretudo conforto e facilidades da vida moderna, elementos que davam beleza e encanto à vida, e até mesmo no seu lado pernicioso tinha uma capacidade de envolver”( PESAVENTO, 2002, p.230).

Vendo o desenvolvimento da capital do país, outros lugares do Brasil, como Porto Alegre, começaram a se espelhar no Rio de Janeiro. As oscilações valorativas da cidade-vício e da cidade-virtude, o desencantamento com o mundo e do reencantamento proporcionado pela modernidade urbana vão implicar em uma requalificação do campo. E, sendo assim, o Rio Grande do Sul, mais especificamente Porto Alegre, aufere a atenção da autora no 4º Capítulo – Os Ecos do Sul- Porto Alegre e seu duplo (1890-1924).

As visões do desenvolvimento da capital gaúcha vão oscilar entre o viver modernourbano, agitado pelo crescimento acelerado de sua população e por audaciosas boemias, e no oposto, mais visível, a inércia e a vida simples de campo ou aldeia. Assim, Porto Alegre fica em um dilema: seguir o progresso proposto pela positividade das referências identitárias transmitido por Paris e pelo Rio de Janeiro, para assim se configurar enquanto metrópole ou preservar as tradições e os hábitos de aldeia que trazem a sensação de nostalgia.

Através do olhar literário que também se expandia sobre o urbano dessa cidade, podemos perceber o confronto dessas imagens do passado com as do presente. O olhar se volta para o positivo do rural voltado para o passado, num trabalho de recuperar, pelo imaginário, um tempo e um espaço preciso. Assim, a visão que se tem da cidade supracitada é bipolar, “que transita pelos paradigmas da metrópole, com o seu agito, a multidão, as atrações da rua, o luxo, a ostentação, o prazer fácil, o povo apreensivo e nervoso” (PESAVENTO, 2002, p.310) e uma cidade tranquila e cheia de lembranças.

No último capítulo, Um Fim e um Começo, mas sempre cidade, a autora mostra todo o estudo feito durante a obra, resumindo, portanto, cada um dos textos que a compõem e evidenciando a problemática central, trazendo uma conclusão que nos faz enxergar na literatura um palco repleto de possibilidades para o historiador se debruçar. Ao usar o seu olhar investigativo sobre esse campo, os “mestres da história”, sobre essa determinada fonte, poderão enxergar um “real” de um mundo trazido por essas imagens pictóricas e metáforicas enraizadas nesse tipo de documento, para assim confirmar, ou não, um sonho almejado por uma época, no caso exemplificado nessa obra, as cidades que procuravam se tornar urbanomodernas e seguir certos padrões de civilidade.

Adson Rodrigo Silva Pinheiro – Graduando em História – Uece e bolsista FUNCAP. E-mail: [email protected].


PESAVENTO, Sandra J. O imaginário da cidade. Visões literárias do urbano. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002. 400p. Resenha de: PINHEIRO, Adson Rodrigo Silva. Embornal, Fortaleza, v.1, n.1, p.1-5, 2010. Acessar publicação original. [IF].

História da escravidão e da liberdade no Brasil Meridional. Guia bibliográfico – XAVIER (RBH)

XAVIER, Regina Célia Lima (Org.). História da escravidão e da liberdade no Brasil Meridional. Guia bibliográfico. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2007. 392p. Resenha de: PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.28, n.56, 2008. 

O guia bibliográfico História da escravidão e da liberdade no Brasil Meridional, organizado por Regina Célia Lima Xavier e que resultou de um projeto premiado pelo concurso “Memória do Trabalho no Brasil” (Petrobrás/MinC, CPDoc da FGV e Ministério do Trabalho e Emprego), é uma obra ímpar na historiografia brasileira. Pertence àquela linhagem de trabalhos absolutamente indispensáveis para promover e renovar a produção do conhecimento histórico em um determinado ‘território’ e que, pelos serviços que prestam aos pesquisadores, merecem todo destaque e divulgação.

Neste caso, trata-se de um levantamento exaustivo de fontes bibliográficas (com os respectivos resumos) sobre a temática, precedido por uma sólida abordagem analítica de referências teóricas, problemáticas, temas e debates que orientaram e vêm orientando os estudos sobre a escravidão no Brasil Meridional. Dentro desse cenário de análise historiográfica, examina as principais tendências da produção dos historiadores sul-riograndenses que trabalharam esses temas e questões. Oferece assim ao leitor uma oportuna contribuição sobre o ‘estado da arte’ em um tema que vem agregando cada vez maior número de pesquisadores no Brasil e no sul do Brasil em particular.

Ainda que a autora classifique esta análise historiográfica como “breve e introdutória”, seu texto é bem mais que uma introdução, não só pelo rigor com que é apresentado, mas também pelo fato de que não existia até agora um trabalho mais específico, que abordasse de forma sistemática e desde a perspectiva historiográfica, o tema da escravidão e da liberdade no Rio Grande do Sul.

Certamente a qualidade deste trabalho presta tributo à trajetória intelectual da autora, que vem de longa data se dedicando ao estudo da escravidão e da liberdade no Brasil, especialmente desde sua dissertação de mestrado desenvolvida na Unicamp.1

Quanto ao repertório bibliográfico que é objeto da obra, ele inclui livros, dissertações, teses, artigos e resumos de trabalhos apresentados em congressos acadêmicos, totalizando 851 títulos que abrangem o período compreendido entre meados do século XIX e o ano de 2006.

Esses trabalhos estão agrupados em blocos ou itens classificatórios, cujos títulos já oferecem ao leitor um sugestivo elenco temático que ultrapassa amplamente os enfoques tradicionais sobre a história da escravidão e da liberdade no Brasil meridional: “Dados populacionais, étnicos e questões raciais”; “Participação dos escravos em conflitos militares”; “Trajetórias de vida e experiências cotidianas”; “Trabalho escravo; movimentos sociais: fugas, quilombos, insurreições e crimes”; “Cultura; Afro-descendentes no pós-abolição”; “Família escrava”; “Aspectos jurídicos”; “Abolições e processo de emancipação”; “Economia”; “Tráfico” e “Reflexões historiográficas”. Um último bloco reúne os resumos de apresentações em eventos.

O livro também expõe com muita clareza os critérios que presidiram a seleção da bibliografia (as razões, por exemplo, de não haver incluído obras literárias ou artigos de jornais e revistas de grande circulação), a elaboração dos resumos, os blocos em que as obras foram agrupadas etc. Um índice dos autores e uma lista de siglas completam esta preocupação de orientar o leitor na consulta da obra.

A partir destas observações, é fácil concluir que o Guia atenderá aos objetivos a que se propõe:

Primeiro, deve estimular pesquisas inovadoras sobre o tema da escravidão, uma vez que evidencia as temáticas que foram mais desenvolvidas e aquelas mais carentes de estudos; proporciona uma percepção sobre o uso de fontes e formas de abordagem; assinala as regiões geográficas mais favorecidas nas pesquisas; abre a possibilidade de se pensar as semelhanças entre os Estados do Sul e suas experiências escravistas; por fim, o guia pode ainda explicitar as lacunas existentes e incentivar a renovação e o aprofundamento das pesquisas. Em segundo lugar, deve instigar estudos de cunho historiográfico. (p.11-12)

Trabalhos como o de Regina Xavier nos levam à constatação de que certas afirmações repetidas sem muita crítica ao longo dos anos são apressadas e não resistem às evidências demonstradas por um livro este. Neste caso estão a situação quase residual da escravidão no Rio Grande do Sul, a democracia racial dos pampas, a concentração do trabalho escravo em regiões específicas e o caráter antieconômico da escravidão.

Através dos agradecimentos que a autora faz na Introdução aos numerosos alunos — bolsistas ou voluntários — e aos professores que proporcionaram informações sobre obras de difícil localização, o leitor vislumbra o cuidado em realizar um levantamento exaustivo, que levou a equipe a se embrenhar por três anos nas mais diversas bibliotecas, em arquivos e acervos de todo tipo e depois produzir resumos muito apropriados sobre o conteúdo dos textos, trabalho este que implica extraordinária economia de tempo e esforço para os que consultarem o livro. Uma obra de referência desta envergadura é verdadeiramente uma preciosidade para os pesquisadores.

No entanto, é preciso insistir, o livro de Regina Xavier não é apenas um guia bibliográfico, o que já justificaria plenamente sua publicação. Mais do que isto, como antecipei, a autora realiza também uma pioneira análise historiográfica da produção sul-riograndense sobre a presença do escravo africano e de seus descendentes.

O espaço de uma resenha não permite que eu refaça aqui o caminho que ela percorreu em sua análise, na qual comenta as características da abordagem desses autores, a começar pelas Memórias ecônomo-políticas de Gonçalves Chaves, escritas entre 1817 e 1823, um dos primeiros textos antiescravistas que se conhece no sul do Brasil. Também coloca historiadores rio-grandenses como Emílio de Souza Docca e Dante de Laytano em diálogo com as conjunturas históricas das décadas de 1930 a 1950, em que suas obras foram produzidas, e com os vários debates que se desenvolveram no centro do país — onde a referência obrigatória é Gilberto Freyre — e na Europa sobre o racismo e o conceito de raça, sua definição biológica ou cultural, sobre o papel das diferentes raças na construção da nacionalidade. Na década de 1960, esses debates têm por referência as transformações estruturais da sociedade brasileira, a passagem da sociedade tradicional escravista para a sociedade moderna capitalista, e um dos expoentes dessa perspectiva analítica foi Fernando Henrique Cardoso, com cujo trabalho dialogou no Rio Grande do Sul, entre outros, Mario Maestri Filho. A obra de Cardoso suscitou, no entanto, numerosos debates e experimentou muitas refutações através das pesquisas de Paulo Zarth e Helen Osório, para citar os mais conhecidos, que têm revisado, desde vários ângulos, a importância e o significado do trabalho escravo no Rio Grande do Sul.

A autora comenta, também, os trabalhos muito diversificados que se voltaram, nas décadas recentes, para valorizar a experiência dos escravos, seu cotidiano e sua religiosidade, e neste alargamento temático, proporcionado em boa medida pela pesquisa vinculada ao crescimento dos cursos de pós-graduação, também se incluem investigações sobre o tema do trabalho escravo na pecuária e na cidade. Paulo Zarth, Helen Osório e Paulo Moreira são timoneiros dessa nova historiografia no Rio Grande do Sul.

Na conclusão deste panorama analítico referente ao conhecimento produzido sobre a presença do escravo africano e de seus descendentes no Rio Grande do Sul, a autora também faz um diagnóstico que aponta rumos para as futuras pesquisas:

muito resta por ser aprofundado: na análise das próprias obras citadas nesta Introdução ou o contexto de suas formulações; na relação dessas obras com seus interlocutores, entre outros aspectos. Certamente é preciso tecer considerações mais abrangentes sobre toda esta produção arrolada, privilegiando a perspectiva comparativa. Neste caso, aguardam-se estudos mais sistemáticos que relacionem, por exemplo, a experiência do Rio Grande do Sul com aquela de Santa Catarina e do Paraná. Enfim, longe de esgotar o tema, o panorama citado acima tem o intuito de demonstrar a potencialidade e a importância dos estudos historiográficos. (p.40)

Concluindo, quero reafirmar que a impecável análise historiográfica introdutória, o rigor da pesquisa realizada e o alentado número de obras que integram este livro de Regina Xavier fazem dele um excelente exemplo da qualidade que os historiadores e historiadoras brasileiros da recente geração vêm imprimindo aos seus trabalhos, atestando a vitalidade do conhecimento histórico em nosso país.

Notas

1 Sua dissertação de mestrado foi publicada pela Editora da Unicamp em 1997, com o título A conquista da liberdade; a tese de doutorado foi publicada em 2008 pela Editora da Universidade/UFRGS e pelo IFCH, com o título Religiosidade e escravidão, século XIX: mestre Tito.

Sílvia Regina Ferraz Petersen – Pesquisadora do CNPq — Depto. de História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) — Av. Bento Gonçalves, 9500. 91509-900 Porto Alegre — RS — Brasil. E-mail: [email protected]

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SALVADÓ Francisco J Romero (Aut), A guerra civil espanhola (T), Jorge Zahar (E), MOTTA Rodrigo Patto (Res), Revista Brasileira de História (RBH), Guerra Civil Espanhola, Europa/Espanha (L), Século 20 (P)

SALVADÓ, Francisco J. Romero. A guerra civil espanhola. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. 356p. Resenha de: MOTTA, Rodrigo Patto. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.28, n.56 2008.

O livro de Francisco J. Romero Salvadó vem se juntar à escassa bibliografia em português sobre a guerra civil espanhola e deverá ocupar lugar de destaque em razão da qualidade do trabalho. A proposta é fazer uma síntese desse grande evento do século XX, verdadeiro símbolo de uma época, com base nas pesquisas e publicações produzidas nos últimos anos. E algumas delas foram beneficiadas pelo acesso a documentos abertos ao público em período recente, notadamente os arquivos soviéticos.

Os trágicos acontecimentos da Espanha da década de 1930 tiveram impacto internacional e inscreveram-se de maneira marcante na memória coletiva, em parte por força das representações construídas no cinema, literatura e artes plásticas. Naturalmente, seus ecos fizeram-se ouvir também no Brasil. Quando as forças de direita deslancharam o golpe contra a República espanhola, em julho de 1936, dando início à guerra civil que duraria três anos, o Brasil vivia clima político igualmente tenso, sob a onda de repressão que se seguiu à frustrada insurreição de novembro de 1935. Os projetos e valores políticos em disputa no Brasil assemelhavam-se aos das forças conflagradas na Espanha, e por aqui muitos torceram contra ou a favor da República, tendo um pequeno grupo de ativistas da esquerda, na maioria militares implicados no levante de 1935, se alistado nas tropas das brigadas internacionais. A direita nacional, por seu turno, entusiasmou-se pela luta de seus congêneres espanhóis, aumentando-lhe a convicção de que o seu mundo, ordenado com base nos valores cristãos e no caráter sagrado da propriedade privada, estava sob ataque cerrado do comunismo internacional. A conflagração espanhola, junto com outros eventos do contexto internacional à época, contribuiu para fortalecer o ânimo punitivo e autoritário das forças conservadoras brasileiras.

Para o bem e para o mal, o ambiente político dos anos 30 está a anos-luz da realidade deste início do século XXI, em que não se vêem mais disputas acirradas por questões de natureza ideológica, embora as guerras religiosas pareçam estar voltando. Em meio à radical polarização política da época, os lados contendores no conflito espanhol foram denominados com diferentes adjetivos, reveladores das visões de mundo em choque. Para a esquerda, tratava-se de uma luta em defesa da República, contra as forças do fascismo e da reação. O outro lado não se identificava como fascista, embora parte dele efetivamente fosse (os falangistas), mas sim como nacionalistas em luta pela pátria espanhola, agredida pelo comunismo ateu.

É precisamente na análise do quadro internacional que reside o ponto alto do livro de Romero. As melhores páginas do trabalho são dedicadas a explicar como o drama espanhol se inseriu nos conflitos internacionais do período; sobretudo, como as ações das grandes potências influenciaram os acontecimentos. O autor mostra os interesses em jogo, tanto materiais quanto político-ideológicos, e as estratégias dos países decisivos: França, Inglaterra, Alemanha, Itália e União Soviética. A Alemanha nazista e a Itália fascista foram os principais protagonistas entre as potências que interferiram na Espanha. Solidarizaram-se com as forças contrárias à República por afinidade de idéias, afinal, do lado nacionalista alinhava-se coalizão de direita semelhante à que permitira a Hitler e Mussolini ascender ao poder, e contra os mesmos inimigos: comunistas, socialistas, anarquistas, democratas e liberais. Mas também havia razões mais concretas para o apoio: a Itália desejava estabelecer hegemonia na bacia do Mediterrâneo, e a Alemanha cobiçava os recursos naturais da Espanha para alimentar sua máquina de guerra.

Com seu ânimo agressivo e a convicção de que os países liberal-democráticos eram fracos e decadentes, os dois Estados fascistas mobilizaram tropas e recursos numa escala que nenhuma outra potência ousou atingir: cerca de 80 mil italianos e 20 mil alemães combateram na Espanha, sob o pouco convincente disfarce de tropas voluntárias, ao lado de 10 mil portugueses enviados por outro regime simpatizante, o de Salazar. Do lado republicano, os combatentes das lendárias brigadas internacionais, recrutados por organizações ligadas à Internacional Comunista em mais de quarenta países, montaram a cerca de 35 mil, enquanto a União Soviética enviou 2 mil assessores militares, que, com poucas exceções, não se engajaram em combates. O balanço da ajuda material em armas leves, artilharia, tanques e aviões é semelhante: os aliados fascistas enviaram para as tropas de Franco quantidade muito superior ao que os republicanos receberam (compraram) dos soviéticos. E uma das razões para explicar tal disparidade foi a atitude dos governos franceses e ingleses, que criaram empecilhos à chegada dos suprimentos soviéticos, enquanto faziam vistas grossas à crescente intervenção ítalo-alemã. A diplomacia inglesa, principalmente, que nesse caso arrastou consigo a França, temia mais a vitória dos republicanos que a dos franquistas, preferindo uma eventual hegemonia fascista na Espanha a correr o risco de ver a Península Ibérica cair na órbita soviética.

Na opinião do autor, que é convincente, o desfecho da guerra deveu-se em grande medida à maior ajuda externa recebida pelos nacionalistas, pois em outros aspectos os dois lados tinham recursos semelhantes. Grande responsabilidade teve o governo inglês, que, com sua infeliz e ineficaz política de apaziguar Hitler, combinada ao medo de ver o comunismo instalar-se na Europa ocidental, favoreceu, na prática, a vitória de Franco. Ao contrário de outros autores, que buscam atribuir a culpa pela derrota da República aos comunistas, Romero tende a relativizar a responsabilidade do PCE (Partido Comunista Espanhol) e dos soviéticos. A seu ver, o aumento da influência comunista no campo republicano durante a guerra civil deveu-se menos a maquinações soviéticas e mais à atração exercida por um grupo que mostrou dedicação total à causa. A disciplina dos comunistas e o prestígio alcançado pela União Soviética, único país que apoiou de fato a República (embora seus motivos não fossem altruístas, claro), atraiu para seu lado milhares de republicanos, muitos dos quais tinham escassa convicção marxista.

Naturalmente, Romero menciona os expurgos comandados pelos comunistas, que vitimaram sobretudo militantes do POUM (Partido Obrero de Unificación Marxista) e seu líder, Andreu (Andres) Nin, odiado por sua inclinação trotskista. Mas o autor relativiza esses eventos ao situá-los no meio de outras disputas pelo poder no campo republicano, em que todos os grupos recorreram ao assassinato de concorrentes. Argumento polêmico, decerto, e longe de encerrar o debate, mas Romero parece ter razão ao tentar mostrar que os expurgos stalinistas não foram a causa da derrota republicana. A obsessão antitrotskista dos stalinistas contribuiu para as divisões, desconfianças e traições no campo republicano, mas eles não foram os únicos a cometer atos condenáveis. Afinal, a derrota da República foi abreviada quando forças moderadas (março de 1939) tentaram aproximar-se de Franco negociando à base do isolamento dos comunistas. Fracionado o bloco que a sustentava, a República desmoronou quando ainda ocupava um terço do território espanhol. Desfecho melancólico para uma causa que despertou tanta paixão e sacrifícios.

O livro, portanto, é leitura instigante e provocativa, e nos estimula a continuar refletindo sobre esse acontecimento fundamental à compreensão do século XX. Na conta dos aspectos negativos mencione-se que, em certas passagens, o autor exagera nos detalhes, citando nomes e eventos que o leitor comum teria dificuldade em localizar, muitos deles desnecessários em trabalho cuja ambição é a síntese. A tradução do original em inglês é competente, mas cometeu alguns deslizes: por alguma razão, e recorrentemente, milhares viraram milhões, gerando a situação absurda das tropas africanas de Franco montarem a ‘milhões’ de soldados; e o nome do marechal italiano Italo Balbo tornou-se Marshall Italo Balbo.

Rodrigo Patto Sá Motta – Pesquisador do CNPq — Depto. de História, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) — Av. Antônio Carlos, 6627. 30310-770 Belo Horizonte — MG — Brasil. E-mail: [email protected]

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No território da Linha Cruzada: a cosmopolítica afro-brasileira | José Carlos Gomes dos Anjos

O livro No território da linha cruzada: a cosmopolítica afro-brasileira é escrito por José Carlos Gomes dos Anjos, e trata-se de um trabalho etnográfico no qual o autor, enquanto antropólogo, militante do movimento negro e filho-de-santo de um terreiro de Linha Cruzada, vale-se desses diferentes status, em diferentes momentos, para configurar sua problemática, colher seus dados e construir o texto etnográfico. Antropólogo já antes envolvido em pesquisas sobre religiosidade afro-brasileira, o autor volta seu olhar ao processo de remoção da Vila Mirim – uma vila de maioria negra no centro de Porto Alegre – para a implementação do entroncamento de três grandes avenidas, quando o movimento negro é acionado para mediar os conflitos que a iminência da remoção provocam. Dos 113 domicílios da área a ser removida, seis eram terreiros. É nesse contexto que dos Anjos se inicia como filho-de-santo de mãe Dorsa, uma das líderes da resistência contra a proposta da prefeitura de Porto Alegre de reassentar os moradores no bairro Rubem Berta, movimento instaurado em 1992, quando em reunião realizada num terreiro, formou-se a Comissão dos Moradores a serem removidos. A única reivindicação alcançada pela comunidade foi de não ser removida para Rubem Berta, mas para o bairro Chácara da Fumaça.

O autor, então, norteia suas análises acerca das estratégias políticas dos atores envolvidos nesse processo: a Comissão dos Moradores contra a remoção, a Associação dos Moradores da Vila Divina Providência (a favor da remoção), a Prefeitura de Porto Alegre e o Movimento Negro Unificado. Leia Mais

O imaginário da cidade. Visões literárias do urbano | Sandra Jathay Pesavento

Gravuras, desenhos e fotografias mostrando os vários lugares e espaços originais das cidades de Paris, Rio de Janeiro e Porto Alegre, em meados do século XIX e inícios do XX, compõem o livro Imaginário da Cidade. Visões literárias do urbano, de Sandra Jatahy Pesavento2. Algumas dessas imagens nos remetem à Paris de 1739 a 1876, aos sobrados sombrios das ruas Marmousets, Pirouette e de la Colombe – hoje desaparecidas em função das reformas urbanas. Outras revelam paisagens de Porto Alegre (no início do século XX) e do Rio de Janeiro (na segunda metade do século XIX). O mercado público, as praças e as ruas da capital gaúcha são flagrados em sua modesta suntuosidade por fotógrafos desconhecidos. A modernidade da Avenida Central da cidade carioca, com seus suntuosos palacetes, se justapõe aos registros de moradias populares (como os cortiços) e da destruição de morros da cidade – cenas captadas pelas lentes das câmeras de Victor Frond, Marc Ferrez e Augusto Malta. Leia Mais

Palácio para guardar doidos: uma história das lutas pela construção do hospital de alienados e da psiquiatria no Rio Grande do Sul | Yonissa Marmitt Wadi || Arquivos da loucura: Juliano Moreira e a descontinuidade histórica da psiquiatria | Vera Portocarrero

O tema da constituição da psiquiatria no Brasil, que há algumas décadas vem sendo estudado em diferentes áreas — da psiquiatria às ciências sociais —, ganha agora mais duas contribuições importantes: Palácio para guardar doidos, de Yonissa Marmitt Wadi, e Juliano Moreira e a descontinuidade histórica da psiquiatria, de Vera Portocarrero. Os dois trabalhos são, respectivamente, frutos de dissertações de mestrado na área da história e da filosofia, abordando os desenvolvimentos da psiquiatria em cidades e períodos históricos distintos. O livro de Wadi trata do processo de construção do primeiro hospício da província de São Pedro do Rio Grande do Sul — que culminou em 1884 com a criação do Hospício São Pedro. Analisa o lugar que a medicina ocupou nesse processo e em seus desenvolvimentos até os anos 1940. Já a dissertação de Portocarrero — defendida em 1980, e agora felizmente publicada através da iniciativa da Coleção Loucura & Civilização — toma como objeto a transformação da ciência e da assistência psiquiátrica no Brasil, no início do século XX, representada no pensamento do psiquiatra baiano Juliano Moreira. Leia Mais

A diplomacia do interesse nacional: a política externa do governo Médici | Cíntia Souto || As mudanças da política externa brasileira nos anos 80: uma potência média recém industrializada | Ricardo Sennes || A política externa do governo Sarney: a nova república diante do reordenamento internacional (1985-1990) | Analúcia Pereira

Esses são os três primeiros títulos da coleção Estudos Internacionais, coordenada pelo Professor Paulo Fagundes Vizentini e editada pelo Núcleo de Estudos de Estratégia e Relações Internacionais (Nerint) do Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em parceria com a Editora da Universidade/UFRGS. A coleção é destinada a divulgar estudos, teses, dissertações e seminários produzidos ou orientados pelos pesquisadores do núcleo, bem como textos relevantes na área de relações internacionais.

Embora trabalhando com temporalidades diferenciadas, de certa forma os três livros têm uma linha de continuidade, pois discutem a mesma matriz de inserção internacional, formulada nos anos 1970 no Brasil e que vigorou até o final da década de 1980, mais conhecida pelo seu ápice, o Pragmatismo Responsável do governo Geisel. Mas a estruturação dessa matriz já vinha ocorrendo no período do Governo Médici, assim como, embora o regime militar tenha formalmente acabado em 1985, seu modelo de inserção internacional duraria até 1990. Nesse sentido, esses autores trabalham com os seus primeiros ensaios (no Governo Médici) e sua crise (já no final do governo Sarney). Leia Mais

A política externa dos Estados Unidos | Cristina Soreanu Pecequilo

Premiada como melhor Tese de Doutorado em 2000 pelo Departamento de Ciência Política da USP, a obra de Pecequilo torna-se leitura obrigatória para quem estuda não só a política externa dos Estados Unidos, mas as Relações Internacionais de maneira geral. Trata-se de um trabalho brasileiro sem precedentes sobre o tema e, justamente por ser uma obra nacional, esquiva-se das tradicionais análises norte-americanas e européias, contribuindo para uma visão mais neutra do tema em questão.

A idéia inicial da autora era trabalhar exclusivamente o período de 1989 a 1998, buscando traçar continuidades e rupturas na política externa dos Estados Unidos a partir do fim da Guerra Fria. Uma vez iniciada a pesquisa, contudo, percebeu que era necessário recuar no tempo, a fim de conferir maior precisão à própria idéia de continuidades e rupturas. Foi na formação nacional dos Estados Unidos que a autora encontrou os fundamentos que iriam guiar a política externa norte-americana até os períodos mais recentes. Ela lida com dois momentos distintos: o primeiro, de 1776 a 1945, “quando os Estados Unidos eram um país normal no sistema, consolidando seu poder doméstico e depois se projetando internacionalmente”, e o segundo, de 1947 a 1999, momento contemporâneo, “marcado pela ascensão e disseminação da hegemonia” (p. 18). Leia Mais