O Belo Perigo | Michel Foucalt

Uma pergunta sempre me intrigou ao tratar de Foucault em qualquer ocasião que eu tivesse a oportunidade: como rotular um autor como este dentro de caixas de conhecimento tão fechadas em si? Do que eu deveria chamar Michel Foucault? Historiador? Filósofo? Pensador?

Esta não é uma questão das mais fundamentais, mas é uma dessas questões que intriga alguém que mergulha sem medo na obra, na vida e no estilo de um determinado autor. Fica, inegavelmente, a curiosidade.

Os volumes recém-lançados de Michel Foucault, “O Belo Perigo” e “A Grande Estrangeira” não servem para saciar toda a curiosidade de quem acompanha o autor em qualquer nível de entendimento, mas ajudam em certas perguntas que antes ficavam sem respostas. E, como não deveria deixar de ser, geram outras.

Esta resenha se concentra inicialmente no primeiro dos textos, o mais curto da caixa, “O Belo Perigo”. É um texto conciso, resultado de uma entrevista que Foucault concedera para o jornalista Claude Bonnefoy, então na revista Arts. O objetivo geral desta entrevista não era criar um novo registro acerca da trama conceitual desenvolvida por Foucault até aquele momento. Estamos em 1968, ano cabalístico para toda a luta que se constitui ainda nos dias de hoje, e que Foucault é uma inspiração direta, por sua teoria e ação prática.

O objetivo era buscar o Foucault escrevente – há aqui uma tradução tributária da diferenciação de Roland Barthes entre escritor e escrevente. É algo que não se vê comumente nos estudos sobre o autor francês, e que se descortina de forma a trazer uma nova atenção à sua obra. Alguns dados biográficos são apresentados, mas sempre na intenção de sustentar a maneira pela qual Foucault escreve, define seus instrumentos metodológicos, sua estratégia de argumentação.

Há um ponto central em todo este registro: a interferência do ofício da medicina em toda sua vida. Como já é conhecido, Michel Foucault nasce em uma família tradicional de médicos. Seu pai mesmo, com quem se atribui ter uma relação conflituosa, era médico cirurgião e professor em Poitiers, sua cidade natal. Muitas descrições de sua vida, muitas biografias, dão conta desta relação com o pai como sendo um gatilho para o seu comportamento geral, a militância cultural, a reluta em seguir o caminho tradicional da medicina. Há, então, um conflito até aqui, que passa a não se sustentar mais em “O Belo Perigo”.

Foucault atribui ao seu ofício de escritor uma surpreendente, porém adequada, associação com o ofício de seu pai, a medicina.

Diz Foucault: “Se tivessem me dado uma liberdade de resposta tão grande quanto a que você me oferece hoje, acho que teria respondido com toda brutalidade: […] sou médico, digamos que sou um diagnosticador.”

Sua estratégia de argumentação e estilo de escrita e investigação científica se aproximaria do ofício do médico, de fazer renascer algo já morto. A caneta seria seu bisturi, e a morte significa a afirmação. Portanto, se faz necessário abrir o corpo, destrinchar a afirmação, dissecar o discurso, e fazer dele surgir a origem patológica daquela condição. O acaso da vida seria a morte, e a morte inerte precisa ser desdobrada, reinventada.

Se a escrita é uma arte, para Foucault, é a literatura sua expressão mais macabra, mais suja. É sujar-se com a verdade, imbricar onde ninguém deseja ir, ver a realidade de onde ninguém quer observá-la. É ir ao manicômio, ver o louco, e trazê-lo à vida. É ir à prisão, ver o isolamento, e trazê-lo à luz. É ver o enforcado e ressuscitar o enforcado.

A verdade não é algo singular em Foucault. Ser médico da condição humana rejeitada sempre o motivou, e não há “fase” de sua obra em que isto não esteja presente. Normalmente, se diz que a fase da arqueologia e da genealogia são diferentes.

Como médico, Foucault está além destes dois métodos de pesquisa, e se aproxima mais da antropologia, uma área do conhecimento onde ainda faltam estudos sobre a sua importância. Em uma escrita muitas vezes soturna, difícil, os olhos precisam estar bem abertos para se entender a profundidade do que está escrito. Não é fácil reconduzir discursos mortos à vida, não é fácil entender Foucault e suas motivações.

Trata-se menos, portanto, de uma escrita ornamentada, estilizada, industrial, repetido por muitas vezes como uma fôrma. É como dar prova de vida, provar que não está morto, deslocar-se do seu conforto e ir até um espaço onde a burocracia continua a predominar e demonstrar que está vivo. É certidão morta, documento morto, escrita falecida, mas está vivo, ativo, e permanece, por isso é difícil ler Foucault. Deve ser terrivelmente difícil escrever como Foucault, algo que ninguém provavelmente vai repetir.

Mas é possível criação da morte? Ou, como diz Foucault (2016), quando se refere aos textos de Raymond Roussel e Antonin Artaud, poetas franceses, “como é que uma obra dessas, que vem de um indivíduo que a sociedade desclassificou – e consequentemente excluiu – como doente, pode funcionar, e funcionar de uma maneira absolutamente positiva, no interior de uma cultura?” (FOUCAULT, 2016, p. 59)

Quer dizer, há possibilidade de produção na loucura? Há possibilidade de vida naquilo que foi desclassificado, excluído, marginalizado? Há atividade na morte?

Foucault diz que o exercício do escrever é fisicamente e mentalmente exaustivo – abro parêntese aqui para dizer que no nível de produtividade que se espera de um pesquisador nos grandes centros de pesquisa do mundo e aqui no Brasil, é de um cansaço mortal. Não é exatamente simples produzir uma escrita que reavive aquilo que a sociedade conspirou para que não estivesse vivo.

Em uma sociedade onde todos podem falar e ser ouvidos, inclusive os imbecis, como diz Umberto Eco, o exercício da escrita é cada vez mais opressivo. Escrever é uma necessidade, uma compulsão, e aqueles que não escrevem, compartilham. A qualidade da escrita e a qualidade da compulsão estão intimamente ligadas.

Esta compulsão pela escrita só é satisfeita com a própria escrita. Há, na combalida produção científica no Brasil e nos grandes centros de pesquisa no planeta, uma compulsão pela escrita e pelo resultado. Foucault aproxima esta obsessão à obsessão pela comida, pelo amor, pelo sexo, pelo trabalho, o que não poderia ser mais atual. Há um retorno à influência, não da medicina, mas da tentativa de compreender como o corpo humano funciona, e como recompensá-lo em sua insatisfação permanente.

Já que estamos permanentemente insatisfeitos, uns comem compulsivamente, uns amam desesperadamente, outros trabalham como se fosse o trabalho a única saída para a própria miséria, e não é aqui, nem de longe, a miséria financeira, mas a condição humana, até porque diz o senso comum, que quanto mais se trabalha, menos se tem.

Com a escrita, diz Foucault, é semelhante. É uma angústia permanente, como quem quer externar a miséria da sua existência, e que tem na escrita, uma espécie de absolvição, uma recompensa à felicidade que nos falta. Como em todas as compulsões, logo aquilo que nos satisfaz precisa de uma dose maior. Mais sexo, mais saúde, mais adrenalina, mais trabalho. Mais trabalho.

Mais escrita. “A língua é aquilo com que se pode construir um número absolutamente infinito de frases e de enunciados.” (FOUCAULT, 2016, p. 64). A língua é o esgotamento do homem, é aquilo que lhe move que lhe faz viver. Mas língua não é o discurso, na verdade, um discurso não é a língua. Jamais se conseguirá, com um discurso, esgotar uma língua.

Tampouco se esgota a angústia definitivamente ao escrever. Mas se amaina. Se a miséria humana é grave com a escrita, sem a escrita, seria muito pior. É um espaço circunscrito onde a morte se desconstrói, a vida se desconstrói. Onde se descortina a própria personalidade, onde se esconde o próprio rosto, a própria feição. É na escrita onde a morte renasce e onde se renasce como invisível, como aquilo some, que é isolado, que morre.

Neste paradoxo, a dupla morte, o médico-escrevente Foucault se diz estar à média distância, o suficiente para entender o discurso e esgotar sua angústia. Diz:

“Ao mesmo tempo é aquilo em que essa morte vai se manifestar em sua verdade, não em sua verdade oculta e secreta, não na verdade que ela foi, mas nessa verdade que nos separa dela e que faz com que não estejamos mortos, com que eu não esteja morto no momento em que escrevo sobre estas coisas mortas.” (FOUCAULT, 2016, p. 72)

É preciso estar fora do que se escreve, não como quer Weber ou como quer Durkheim sobre a total impossibilidade de se imiscuir com o objeto. A cabeça precisa estar vazia, entretanto. Escrever com a cabeça cheia, algo que é tão exaustivo em si, seria a morte da escrita que faz viver.

A mente se dirige ao objeto, a língua lhe aponta um caminho, o discurso lhe aponta outro. Só a escrita é capaz de dar a distância correta, a satisfação passageira da angústia, o retorno da morte, a impersonalização.

Foucault ainda escreveria muita coisa a partir daquele importante ano de 1968. Renasce outro autor a partir daqui? Estes escritos acima parecem sugerir que não.


Resenhista

Danillo Avellar Bragança – E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

FOUCAULT, Michel. O Belo Perigo. Rio de Janeiro: Editora Autêntica, 2016. Resenha de: BRAGANÇA, Danillo Avellar. Outras Fronteiras. Cuiabá, v.3, n. 1, p. 239- 243, jan./jun.2016. Acessar publicação original [DR]

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