A grande estrangeira: sobre literatura – FOUCAULT (A)

FOUCAULT, Michel. A grande estrangeira: sobre literatura. Tradução Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016. Resenha de: LIMA,Wallas Jefferson de. Antítese, v. 10, n. 20, p. 1115-1119, jul./dez., 2017.

Além da multiplicidade de releituras, acredita-se que o mais impressionante na obra de Michel Foucault é sua pluralidade de interesses, temas e objetos de estudos, a aplicação que ele fez de sua habilidade de escrita e pensamento a tantos campos de pesquisa, indo da Filosofia e da História a ensaios acerca do poder, da loucura, da sexualidade, da penalidade, da linguagem e da estética, sem esquecer os registros de suas aulas, as entrevistas concedidas e sua atuação direta nos acontecimentos da França de 1968. Teria sido tudo isso um acaso? Alguns afirmam que essa variedade simbiótica entre teoria e prática foucaultiana deve ser aclamada como riqueza axiomática do filósofo. Outros problematizam que tal escrita, apesar de abastada, tem sido pouco compreendida em sua profundidade. Como é possível que um homem tenha conseguido escrever acerca de tantas temáticas a partir de diferentes aportes teóricos (às vezes contraditórios e discordantes entre si) e sob óticas tão heterogêneas? Qual é o segredo da escrita de Foucault? Tais questões, aparentemente irrelevantes, são suficientes para explicar os motivos da paralisia crítica presente atualmente nas Ciências Sociais em relação ao autor de História da Loucura. Ocorre que se tem esbarrado, quase sempre, na espantosa complexidade dessa escrita polivalente, ainda hoje não assimilada em sua totalidade. E poderia ser diferente?  Entretanto, dentre tantos livros já escritos acerca de Foucault, talvez pouco tenha sido dito em relação ao complexo vínculo estabelecido entre ele e a Literatura. O que um tem a dizer a respeito do outro? Em A grande estrangeira, tais questões são problematizadas e demonstram que até mesmo os labirintos da escrita se tornaram um problema para esse filósofo. Essa inquietação com o literário, é verdade, não é algo novo em Foucault. Mas, constata-se que nessa obra ela ganhou novas perspectivas analíticas: o que está em jogo é uma investigação que toma como problema filosófico a polivalência das formas, as estratégias, os usos, as modalidades, as enunciações, os procedimentos e a construção das narrativas dentro do campo literário.

Formulada assim, é possível asseverar que o elo entre Foucault e a Literatura abarca múltiplos desdobramentos. A presente edição sustenta-se referencialmente em transcrições datilografadas de pronunciamentos públicos feitos pelo próprio Michel Foucault – seja em programas radiofônicos ou em conferências. É o caso do primeiro capítulo, A linguagem da loucura, em que o filósofo analisa as diferentes formas de linguagens patológicas por meio de duas transmissões radiofônicas no programa L’Usage de la Parole, veiculados pela RTF France III National e dirigido por Jean Doat. Foucault analisa a figura do louco a partir de releituras de Cervantes, Shakespeare, Corneille, Gérard de Nerval, Raymond Roussel, Mario Ruspoli, Michel Leiris, Jean-Pierre Brisset e Henri Michaux. Lendo citações de textos literários, o pensador francês explica como a cultura ocidental silenciou a loucura e, paralelamente a esse fenômeno, criou a ideia de que os loucos possuem uma linguagem peculiar caracterizada pela sobrecarga, por signos e por “delírios epistemológicos” (FOUCAULT, 2016, p. 63). Se analisada mais de perto, é possível afirmar que a Literatura ora buscou afastar a loucura de sua visão, ora lançou-lhe um olhar distante, tomando-a pelo seu lado cômico, irônico e melancólico. É o que pode ser percebido por exemplo, na figura de Dom Quixote. O estudo da Literatura, sob o ângulo dessa tensão entre loucura e linguagem, ainda está por ser feito, mas isso não significa, reconhece Foucault, que “toda linguagem de loucura tenha uma significação literária” (FOUCAULT, 2016, p.70). Há, naturalmente, problemas epistemológicos intricados a serem resolvidos, o que torna o discurso do louco um problema a ser examinado pela estética literária.

O capítulo dois, Linguagem e Literatura, é a transcrição de uma conferência realizada em 1964, na Facultés Universitaires Saint-Louis, em Bruxelas. Foucault inicia sua fala questionando o que é a Literatura, considerada como um objeto estranho. Para ele, antes de responder a essa pergunta, é necessário distinguir três coisas: a linguagem, as obras e, por fim, a Literatura. Chamada de “vértice de um triângulo”, a Literatura pode ser entendida como um “texto feito de palavras (…) escolhidas e arranjadas” (FOUCAULT, 2016, p. 81) que constrói em seu interior duas figuras importantes: a figura da transgressão e a figura da morte. A complexidade implicada pelo estudo dessas duas figuras demonstra o quanto a escrita do Marquês de Sade simboliza essa palavra transgressiva, interdita, profana e de morte.

Analisando escritos de Dostoiévski, Proust, Diderot e Joyce, Michel Foucault explica que a Literatura é uma espécie de jogo que coloca em seu meio o simulacro, o irreal, o fantasioso em que o tempo é encerrado, longínquo e irrecuperável. Nessa perspectiva, não é um acaso que Proust tenha intitulado sua obra mais famosa de Em busca do tempo perdido. O tempo da escrita literária é, para Foucault, fragmentado, despedaçado e disperso. Essa preocupação com o tempo não é, aliás, característica apenas da escrita proustiana; ela também é encontrada em Ulisses, de James Joyce. Nessa obra, o tempo e o espaço constituem configuração essencialmente circular: todo o livro passa-se em um único dia, em uma única cidade; o círculo temporal vai da manhã à noite e o personagem dá voltas, passeia, caminha por esse espaço virtual, vivenciando as ruas, as multidões e os ambientes diversos.

É no interior dessa relação entre tempo e espaço que Foucault estuda, ainda, a linguagem literária. Esta experiência representa uma espécie de releitura acerca dessa linguagem, caracterizada por seus redobramentos, suas reduplicações e repetições. Em síntese: a literatura é uma linguagem ao infinito. O filósofo francês dedica-se a estudar as noções de metalinguagem e esoterismo estrutural a partir de releituras do linguista russo Roman Jakobson. A ideia central é analisar as formas da linguagem, seus códigos e suas formas para compreender como a Palavra literária (com P maiúsculo) faz-se presente de forma soberana ao leitor. Trata-se de uma espécie de decodificação do discurso que objetiva compreender como a palavra literária – um simples texto de palavras – se metamorfoseia e transforma-se em palavra deificada, glorificada, sublimada, enaltecida. Por que ela é respeitada? Por que a palavra do literário extasia, fascina, deslumbra? Como se dá essa mudança? A partir de que meios isso acontece e sob que condições? Essas são, ao que tudo indica, as preocupações principais de Foucault. Do ponto de vista da literatura, ele levanta e deixa em suspenso problemas interessantes: como se pode analisar essa linguagem? Como esboçar uma teoria que leve em consideração a estrutura de repetição dessa linguagem?  Para responder a tais questões, seria preciso, segundo Foucault, levar adiante uma análise semiológica que estabelecesse qual é o “sistema de signos” (FOUCAULT, 2016, p. 118) que funciona no interior de uma obra literária. Isso é importante, uma vez que a Literatura não se realiza com beleza e sentimentos, mas com ideias e linguagem. Foucault faz o leitor pensar o literário a partir de uma combinação de signos verbais à maneira de Saussure. Que signos seriam esses? São, antes de tudo, signos de escrita aqui entendidos como “certas palavras ditas nobres” (FOUCAULT, 2016, p. 119), constituindo-se, também, em espécies de estruturas linguísticas caracterizadas por certa configuração e por uma narrativa literária que lhe são próprias. São esses signos e estruturas significantes que ajudam o crítico literário a diferenciar Proust de Balzac, por exemplo. Em outras palavras, os signos dão uma identidade à obra literária. Capitalizam as mobilidades léxicas. Restauram heranças verbais. Exprimem um pensamento individual. A Literatura nasce, enfim, dessas misturas heterogêneas e complexas.

O terceiro capítulo, Conferência sobre Sade, contém duas sessões de uma palestra proferida por Foucault na Universidade do Estado de Nova Iorque, em Buffalo. A primeira sessão examina a relação entre desejo e verdade na obra do Marquês de Sade. Tendo como mote La Nouvelle Justine, Foucault envereda-se pela escrita labiríntica sadiana e, percorrendo-a, explica que ela se situa do início ao fim sob o “signo da verdade” (FOUCAULT, 2016, p. 141). A verdade, na Literatura francesa do século XVIII, era uma tradição usada como procedimento de autenticação da história narrada. Mas, que tipo de verdade é essa?  Essa verdade, segundo o filósofo, “não pode absolutamente ser tomada ao pé da letra” (FOUCAULT, 2016, p. 144). A realidade ontológica da escrita sadiana está posta no centro do debate. Difícil saber o quanto Foucault terá tentado seguir o conselho de Georges Bataille, pensador da transgressão e do erotismo1. O fato, entretanto, é que para discutir a função da verdade sadiana, noção repleta de problemas epistemológicos, foi-lhe necessário não apenas mergulhar no pensamento de Bataille, a quem admirava2, mas também atravessar sua análise com referências implícitas ao autor de Histoire de l’oeil. Para Foucault, a função da ‘verdade” em Sade é sobrecarregar o texto, redobrá-lo e exasperá-lo ou, em outras palavras, “fazer aparecer no exercício da dominação, da selvageria e do assassinato alguma coisa que seja uma verdade” (FOUCAULT, 2016, p. 145). Entretanto, pelo caráter essencial que preside essa verdade, a escrita de Sade está, desde já, destinada a auxiliar o erotismo, a sexualidade e a fantasmagoria individual. Ocorre, dentro desse contexto, uma espécie de junção entre imaginação e escrita que confere aos personagens seu caráter de degradação. Ora, onde reside essa verdade? Na técnica de escrita do libertino que Foucault passa a analisar. Como esquema geral, pode-se afirmar que essa escrita atua como “elemento intermediário entre o imaginário e o real” (FOUCAULT, 2016, p. 153). Somente quando posta no papel é que a imaginação ganha ares de realidade. Tal escrita é, portanto, um procedimento que conduz ao real, na medida em que repele a imaginação do escritor. Ela comporta regras específicas. Faz sua historicidade específica. Produz sua unidade a partir do pensamento. Essa situação se redobra em uma outra, que dela é indissociável para o leitor: que papel desempenha essa escrita? Para Foucault, a escrita sadiana possui quatro funções: afastar a porosa fronteira entre realidade e imaginação; apagar os limites do tempo no intuito de liberar a repetição; permitir à imaginação superar seus limites; e, por fim, colocar o escritor em uma espécie de singularidade na qual as fantasias, os limites, o tempo, as normas e os costumes não mais exercerão influência em seu corpo.

A segunda sessão analisa o significado da alternância entre discursos teóricos e cenas eróticas presentes na obra de Sade. Essa alternância é uma verdadeira obsessão ou, para ser mais exato, uma espécie de “regularidade mecânica” (FOUCAULT, 2016, p. 163) na qual cada cena de sexo é precedida de um discurso teórico. Que conclusão tirar daí? Seguindo a pista dada por Foucault, isso seria consequência de um desejo de representar teatralmente e justificar o que será encenado. Esse discurso não objetiva, como muitos tendem a acreditar, explicar o que é a sexualidade. Na verdade, para Foucault, os discursos de Sade “não falam da sexualidade” (FOUCAULT, 2016, p. 164); discorrem acerca de Deus, do contrato social, do conceito de crime, da natureza humana, da transgressão. A segunda consequência que se pode tirar é que o discurso serve para “construir o teatro onde a cena se desenrolará” (FOUCAULT, 2016, p. 165). Inteiramente ligado à trama, o discurso teórico de Sade possui uma ligação com a excitação sexual. Ele estreita as ligações entre os parceiros sexuais, atua frequentemente como elemento estimulante e, por essa via, ajuda no desenvolvimento da encenação. As palavras são, portanto, o motor do desejo, seu princípio, sua mecânica e seu eixo. É uma espécie de escrita que altera o corpo ao mesmo tempo em que edifica o discurso. Os termos dessa equação se equivalem e, portanto, se reiteram. Por isso, discurso e desejo se encadeiam um no outro.

Comparado a um poliedro de quatro faces, o discurso sadiano possui em sua base quatro teses de inexistência: primeiro, constata-se que Deus não existe, uma vez que ele é contraditório, impotente e mau; segundo, afirma-se que a alma não existe porque, estando submetida ao corpo, é material, sendo, portanto, perecível; terceiro, depreende-se que onde “não há lei, não há crime” (FOUCAULT, 2016, p. 168), uma vez que se uma lei não proíbe algo esse “algo” não existe enquanto ato criminoso; por fim, nota-se que a natureza não existe ou, se existe, é apenas sob o signo da destruição, o que significa afirmar que é a natureza que destrói a si mesma. Que tipo de indivíduo assimila esse tipo de discurso? O libertino, sujeito que não está ligado a nenhuma eternidade, que não reconhece nenhuma soberania acima dele (Deus, alma, lei, natureza, etc.), que não reconhece nenhuma norma e que possui existência irregular.

Foucault se questiona para que servem esses discursos. Que função exercem no texto? Afirma o filósofo que, em primeiro lugar, elas objetivam aniquilar todos os limites que o desejo talvez possa encontrar, posto que o homem nunca pode renunciar a seus desejos, ainda que, para isso, tenha que sacrificar o desejo do outro. Esse discurso tende a opor-se ao discurso religioso e teológico que é, em relação à escrita sadiana, um “discurso castrador” (FOUCAULT, 2016, p. 170), que visa à renúncia, à negação e à ordem. A segunda função é servir de brasão, ou seja, de signo de reconhecimento, uma vez que a escrita de Sade busca, em sua essência, distinguir os libertinos e as vítimas, duas categorias de indivíduos completamente opostas. Os primeiros encontram-se no interior do discurso e são eles que aceitam as quatro teses da inexistência, tomando seus corpos enquanto objetos usados para o prazer. Os segundos encontram-se no exterior do discurso e são eles que morrem, são torturados, estuprados e violados ao longo da trama. A terceira função refere-se ao que Foucault chama de “função de destinação” (FOUCAULT, 2016, p. 180). Caracterizada pela ideia de que Deus não existe, Sade constantemente afirma em seus escritos que a alma, a natureza e o Divino são quimeras e, portanto, “a inexistência de Deus se consuma a cada instante no discurso e no desejo” (FOUCAULT, 2016, p. 188). A quarta função refere-se à rivalidade: a escrita faz surgir uma pluralidade de sistemas que versa acerca das relações entre os homens, das obrigações, das sanções e do contrato social. Destacam-se, portanto, as noções de desigualdade e violência além do caráter destrutivo da natureza. A escrita sadiana deseja acima de tudo destacar a irregularidade dos indivíduos dentro desse sistema que favorece apenas os libertinos. A última função: “expor o libertino à morte” (FOUCAULT, 2016, p. 193). Todavia, esta morte é algo maravilhoso, uma vez que, para o libertino, a alma não é imortal, Deus não existe e não há crime verdadeiro. Assim, por que o libertino teria medo da morte? Foucault consegue compreender a base da escrita de Sade. São essas funções que, vistas de forma panorâmica, conseguem explicar o edifício completo das obras sadianas.

Dessa forma, literatura, loucura e desejo formam o tripé de A grande estrangeira. Para Foucault, era importante dedicar-se aos volteios da linguagem que – insistente e sutil – tece considerações de ordem existencial, exerce sua influência no cotidiano, produz heróis, relativiza a morte, fornece modelos, cria sistemas e projeta ideais. A literatura é, para Foucault, essa “estrangeira”, esse enigma que precisa de decifração. Seguindo evoluções definidas por novas configurações, a escrita foucaultiana é atravessada por alusões aos sistemas, aos códigos, aos esquemas perceptivos e às técnicas da literatura. Trata-se de um aprofundamento das ideias defendidas em As palavras e as coisas. O estudo dessa tensão entre escrita e vontade, entre palavra e desejo vai habitar toda a extensão dessa obra que se preocupa, quase sempre, em apoderar-se da literatura enquanto estratégia de análise. O leitor, seduzido por esse emaranhado de releituras, se vê perplexo diante dessas problemáticas. Acompanhar a complexidade teórica de Foucault, pleitear sua leitura e avaliar suas análises são procedimentos que, ainda hoje, se continua a fazer. E, ao que tudo indica, essas dificuldades analíticas ainda vão perdurar por muito tempo.

Referências

BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. Tradução Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

FOUCAULT, Michel. Presentation. In: BATAILLE, Georges. Oeuvres completes. Paris: Gallimard, 1970.

_____. A grande estrangeira: sobre literatura. Tradução Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.

Notas 1 Bataille afirmava que nada seria mais vão que ler a obra de Sade “ao pé da letra” (BATAILLE, 2015. p. 105).

2 Michel Foucault descreveu Bataille como “um dos mais importantes escritores do nosso século”, uma vez que “a ele devemos em grande parte o momento onde estamos”. (FOUCAULT, 1970. p. 5).

Wallas Jefferson de Lima – Doutorando em História pela Universidade Federal do Paraná – UFPR, vinculado a linha de Pesquisa “Espaço e Sociabilidades“.

Gênese e estrutura da antropologia de Kant – FOUCAULT (Ph)

FOUCAULT, Michel. Gênese e estrutura da antropologia de Kant. São Paulo: Edições Loyola, 2011.Resenha de: SOLER, Rodrigo Diaz de Vivar y. Foucault e antropologia Kantiana: morte do homem e analítica da finitude. Philósophos, Goiânia, v. 22, n. 1, p.265-273, jan./jun., 2017.

A construção de um ensaio intitulado Gênese e Estrutura da Antropologia de Kant (FOUCAULT, 2011) seguido da tradução de Antropologia de um Ponto de Vista Pragmático (KANT, 2006) constitui a tese complementar escrita por Foucault em paralelo com a sua consagrada leitura sobre a história da loucura. Texto menor, sem sombra de dúvida, porém de extrema relevância já que é nele que podemos encontrar todo um conjunto de problematizações que se farão presentes em outros momentos de sua trajetória intelectual.1 Em linhas gerais, pode-se afirmar que o projeto longitudinal dessa interpretação, por parte de Foucault (2011) consiste em demarcar como todo pensamento moderno, desde o século XVIII, encontra-se assombrado pelo espectro da antropologia, uma vez que, para Foucault (2011) a emergência da crítica como categoria fundamental do pensamento opera como uma espécie de emblema de passagem do sujeito do cogito em Descartes para a complexa maquinaria do duplo empírico-transcendental.

Entretanto, antes que se prossiga é necessário nos perguntarmos: quais seriam as condições de possibilidade responsáveis por fazer da antropologia o grande sistema epistemológico de nossa modernidade? Inicialmente é necessário afirmar que a antropologia corresponde a toda categoria de pensamento que procura responder a infame pergunta: o que é o homem? Questionamento este que recebera um tratamento crítico desde a publicação de As Palavras e as Coisas até A Arqueologia do Saber (FOUCAULT, 2006, 2007) no que se refere a uma problematização sobre o homem como categoria fundamental dos saberes modernos. Mas, é necessário ressaltar que, correlativo a esse projeto, encontra-se a tese de Foucault (2011) de que no horizonte prescrito pela antropologia kantiana vislumbra-se a analítica da finitude como ferramenta para se pensar o tempo presente.

Logo nas primeiras páginas de Gênese e Estrutura da Antropologia de Kant Foucault (2011) constrói duas problematizações imprescindíveis a esse respeito. A primeira consiste na denúncia de que toda racionalidade ocidental encontra-se atrelada aos problemas desenvolvidos por Kant. A segunda refere-se a imagem concreta do homem como categoria inventada. Habituamo-nos a compreender que foram os homens que criaram o pensamento científico.

A leitura foucaultiana acaba por indicar que foi a ciência quem criou o homem baseada nas contribuições elaboradas por Kant, lançando em torno dessa figura uma série de discursividades que remontam à emergência da modernidade. Para Foucault (2011, p.36)

A Antropologia é pragmática no sentido de que não vê o homem enquanto pertencente à cidade moral dos espíritos (ela seria chamada de prática), nem à sociedade civil dos sujeitos de direito (ela seria então jurídica); considera-o “cidadão do mundo”, isto é, pertencente ao domínio universal concreto, no qual o sujeito de direito, determinado pelas regras jurídicas e submetidos a elas, é ao mesmo tempo uma pessoa humana que traz, em sua liberdade, a lei moral universal (Foucault 2011, p.36).

Ou seja, a importância da antropologia consiste no fato de que ela consiste em ser um livro prescritivo sobre as bases do problema do agir. Ela não está, portanto, interessada em fixar os limites da experiência ética ou descrever as condições de possibilidade de uma doutrina jurídica e política, mas sim demonstrar quais seriam, precisamente, os motivos pelos quais o homem, na modernidade, age em sua liberdade a partir da aplicabilidade de uma lei universal.

Nesse contexto, é a liberdade do ponto de vista pragmático isto é, as razões que nos levam a agir de acordo com aquilo que a sociedade espera de nós sem perder, contudo, a capacidade de exercer o argumento crítico em relação as nossas ações públicas e privadas. Na realidade, o objetivo de Kant seria o de propor um valor universal mediado pela experiência do pensamento e, o que as convenções sociais compreender como correto a partir da constatação, ou melhor, da formulação do problema de que o homem faz, pode e deve fazer constituir-se como ser livre da ação.

Justamente por conta desses aspectos que Kant (2006) desenvolverá ao longo de toda sua antropologia um conjunto de prescrições práticas sobre as ações humanas como as recomendações elencadas em torno da saúde. Uma saúde que se produz no bom uso da liberdade. Observa-se nesse caso como Kant (2006) enfatiza nesse ensaio não a categorização dos grandes sistemas metafísicos, mas as questões concretas que contribuem para tornar a vida humana possível a partir do exercício de uma ética voltada para as possibilidades manifestadas de maneira empírica. A verdadeira antropologia é aquela responsável por fundamentar um conhecimento prático sobre o homem característica fundamental de toda a modernidade. Na realidade, Foucault (2011) parece se interessar muito em apresentar a antropologia de Kant como uma espécie de correlação entre a ciência da época e sua própria experiência filosófica para fazer emergir uma espécie de estética cotidiana do agir. Não por acaso que Kant (2006) irá considerar o prolongamento da existência como uma arte. Contudo, mesmo a minúcia desse prolongamento não é capaz de garantir a vitória do homem contra a morte sendo necessário ao homem gerir as relações entre a ética do agir e as adversidades experimentadas ao longo da existência.

O que ilustra a antropologia como texto prescritivo e daí a riqueza do pensamento kantiano é que ela inaugura um novo estatuto ontológico baseando sua analítica em torno de uma questão que circula sobre as condições de uma época a qual parece emergir uma compreensão prática sobre o homem e sua finitude através da dimensão técnica do trabalho de compreensão em torno da objetivação do sujeito. Em suma, o problema a ser colocado consiste em pensar: o homem é sujeito de liberdade da ação, mas como se pode defini-lo? Esse problema coloca a antropologia diante de alguns desafios. O primeiro consiste em perceber o conhecimento como algo pragmático já que se faz uso dele de um modo generalizado na nossa sociedade. Embora, isso não significa que ele seja algo utilitário convertido em um universal.

Foucault (2011) designa que esse aspecto responsável pela correlação entre antropologia e conhecimento é a junção do que Kant compreende como Können poder e Sollen – dever a partir do desdobramento das práticas sociais cotidianas.

Mas, isso não significa que Kant (2006) pretenda constituir uma espécie de psicologia. A primeira vista Foucault (2011) trata de deixar claro que os projetos que consolidaram a psicologia como ciência referem-se a um projeto radicalmente diferente do formulado por Kant (2006) na sua antropologia, pois para o filósofo alemão os motivos pelos quais o homem apresenta determinados modelos de conduta aceitáveis seriam aqueles pensados sob o ângulo de certo contexto social. A questão seria a explorar o Gemüt natureza2isto é, a maneira pela qual o homem, por meio de suas experiências, constitui-se a partir de sua relação com o mundo e com as coisas. Percebe-se, portanto, como a antropologia acaba por fixar as bases de que é o labor das ideias que se manifestam no campo da experiência, princípio pelo qual deve-se perceber a analítica kantiana não somente como um pressuposto epistemológico mas sim como uma dialética desdialetizada uma vez que ela destina-se a compreender a experiência no próprio jogo dos fenômenos. Nesse sentido Foucault (2011) inclina-se a pensar Kant deslocando seu campo da filosofia da ciência para relacioná-lo dentro de um contexto mais amplo, no caso, os jogos provenientes dos enunciados e da ordem do discurso.

O fato emblemático é que Foucault (2011) considera a antropologia como superação do próprio empirismo científico uma vez que ela sinaliza o conhecimento como um princípio vivificante. Crítica empreendia por parte de Kant dos próprios limites do empirismo compreendido como uma mera fisiologia. De fato, um dos maiores problemas elencados por Kant (2006) foi o de tentar estabelecer todo um esforço para pensar os contornos de sua antropologia a partir de uma nova relação do conhecimento com o problema da experiência.

Uma vez que a antropologia não deve ser lida como uma mera continuidade das teses presentes na teoria do conhecimento, o que está em questão seria a necessidade de um deslocamento que se manifesta na categoria do homem como objeto de estudo a partir da constatação de que a antropologia do Gemüt dedica-se a pensar a condição de possibilidade da experiência no campo da finitude humana.

Não que o Gemüt não esteja presente no contexto da filosofia crítica, mas especificamente na antropologia essa ideia surge como um desafio a ser superado pelo empírico-transcendental.

Se a antropologia inaugura a questão moderna sobre o que é homem já não se trata mais de uma questão que deve ser sustentada somente pela perspectiva do ceticismo filosófico dirigido pelo tribunal orquestrado pela filosofia crítica, mas pelos contornos os quais toda forma de conhecer está inegavelmente sujeita desde a metafísica, até a moral, desde a própria política até a religião. Em torno dessa questão que todo o pensamento moderno encontra-se delimitado.

Foucault (2011) parece interessado em nos mostrar como toda episteme está imersa na antropologia kantiana não conseguindo desvencilhar-se dessa conjetura, por mais radical que posam parecer suas argumentações. Ao propor os limites e as possibilidades do que é o homem, a antropologia acaba constatando que essa figura pode apenas conhecer o fenômeno, ou seja, aquilo que se apresenta sem apreender a coisa em si. Esse modo de pensar se traduz na possibilidade de se perceber quão problemática se torna a analise sobre a questão da conduta humana. Ao tentar solucionar tal problema, a episteme moderna limita-se a descrever características limitadoras mediadas pelos fenômenos aparentes de suas ações e predicados. Por isso, jamais poder-se-á afirmar algo sobre a natureza humana descontextualizada das práticas culturais, históricas e sociais. Contudo, isso não quer dizer que não se possa caracterizar as ações do homem.

Existe nesse conjunto de constatações lançado pela antropologia a estreita relação entre verdade e liberdade. Tal problema é trabalhado por Kant, segundo Foucault (2011), no Opus Postumum: a tripartição entre Deus, o mundo e o homem. Foucault (2011) nos lembra que, para Kant, Deus configura-se como persönlichkeit a personalidade responsável por representar a liberdade em relação ao homem e ao mundo, a própria fonte absoluta. Já o mundo seria o todo, a potência da experiência que se apresenta como extensão do inoperável enquanto que, o homem apresenta-se como síntese dupla, ao mesmo tempo que se configura como aquilo que se unifica em Deus e no mundo, não sendo mais do que um de seus habitantes e um ser limitado em relação a Deus. Abre-se nessa perspectiva o fundamento da ação antropológica cujo efeito seria o de perceber a relação entre verdade e liberdade como um processo de finitude.

Nesse sentido, a interpretação foucaultiana de Kant está inscrita na tentativa de se desdobrar os limites dessa finitude a partir da problematização sobre a modernidade como idade do homem. Conforme aponta Foucault (2011), a maioria dos sistemas de pensamento que julgavam ter ultrapassado a sabedoria do grande chinês de Konninsberg não souberam, delimitar com acuidade o fato de que não se encontravam as voltas com novos problemas, mas simplesmente lidavam com as questões de filiação e de fidedignidade ao pensamento kantiano. Resta, compreender o olhar sobre a filosofia pelos critérios da intempestividade de Nietzsche. Uma empresa de coragem que ousa associar o filosofar a golpes de martelo em torno de problemas delicados sobre os quais nossa modernidade foi fundada. Se ao homem não lhe é facultado o direito de conhecer sobre sua natureza, a filosofia de Nietzsche nos mostrará, segundo argumenta Foucault (2011) que o homem não passa de uma invenção risível dentro do contexto dos grandes sistemas de enunciado, uma invenção que encontra- se em vias de desaparecimento como um rosto desenhado na orla do mar.

Referências

FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.

____. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

____. Gênese e Estrutura da Antropologia de Kant. São Paulo: Edições Loyola, 2011.

____. Foucault. In: FOUCAULT, M. Ditos e Escritos V: ética sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014, pp. 228-233.

KANT, Immanuel. Antropologia de um Ponto de Vista Pragmático. São Paulo: Iluminuras, 2006.

Notas

1 Em muitas análises do pensamento foucaultiano são reconhecidas as influências de Kant em temas relacionados à morte do homem, a ontologia histórica de nós mesmos e a problemática sobre o apriori histórico. O próprio Foucault reconheceu, sob o pseudônimo de Maurice Florence a, é certamente na tradição crítica de Kant, e seria possível nomear sua obra História Crítica do Pensamento. Ver mais detalhes em: FOUCAULT (2014, p.228).

2 Embora tenhamos traduzido a palavra Gemüt como natureza cumpre ressaltar que podemos encontrar na língua alemã outros significados igualmente relevantes como alma, mente e até mesmo sensibilidade.

Rodrigo Diaz de Vivar y Soler – Doutorando em Filosofia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), São Leopoldo, RS, Brasil. Professor do Centro Universitário Estácio Santa Catarina e do UNIBAVE. E-mail: [email protected]

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A presente resenha, prestando uma homenagem ao lançamento do curso Le Gouvernement de Soi e des Autres, de Michel Foucault, na França, em 2008 (ainda sem tradução para o português), busca, inicialmente, localizar o problema da relação entre a verdade, o governo e a constituição do sujeito nos estudos de Michel Foucault, a partir das noções básicas de arqueologia e de genealogia. Busca também acompanhar brevemente a evolução do interesse de Foucault pelo tema do sujeito e das práticas de si, sempre referidas à noção de governo e de verdade. Busca também verificar as razões, no desenrolar da obra de Foucault, e em sua relação com a filosofia crítica de Kant para, assim, justificar a escolha de Foucault pela análise de um texto de Kant na primeira e na segunda hora de aula do Le Gouvernement de Soi e des Autres, fazendo ainda uma breve exposição dos demais assuntos tratados neste curso. Leia Mais

Microfísica do Poder | Michel Foucault

Um dos mais célebres pensadores do século XX, Michel Foucault escreveu textos que são considerados tratados na área de Ciências Humanas. Suas principais temáticas versam sobre sexualidade, poder, loucura, discurso, instituições, disciplina, vigilância… Ele não pode ser enquadrado em nenhuma categoria pré-estabelecida, pois seus trabalhos transpassam as Ciências Humanas de ponta a ponta.

O tema dos artigos, entrevistas e aulas que originaram o livro Microfísica do Poder, publicado pela primeira vez no Brasil em 1979 pela editora Graal, gira em torno da questão do poder nas sociedades capitalistas. É através da análise de dispositivos de segurança que Foucault fará o inventário da relação entre segurança, população e governo, assunto principal desta resenha.

Esse texto é uma versão da aula dada por Foucault no Collége de France em primeiro de fevereiro de 1978. O autor principia seu texto sobre governamentalidade, o último da série de XVII capítulos que constam no livro supramencionado, fazendo uma análise genealógica dos tratados sobre a arte de governar do século XVI ao século XVIII. O problema do governo havia sido remodelado no século XVI: problema do governo de si, governo das almas e das condutas, tema da pastoral católica e protestante, governo das crianças… Como governar? Como ser governado?

Esses questionamentos tiveram palco no século XVI devido a dois fatores: o movimento de concentração estatal que começava a instaurar os grandes Estados territoriais e a superar a idéia de feudalismo e, por outro lado, o movimento de dispersão e desavença religiosa encabeçado pelas Reforma e Contra-Reforma.

Foucault optou por opor a literatura emergente sobre a arte do governar a um único texto que segundo ele “do século XVI ao século XVIII, constitui um ponto de repulsão, implícito ou explícito, em relação ao qual – por oposição ou recusa – se situa a literatura governo: O Príncipe, de Maquiavel” (p. 278).

Antes de ser recusado, porém, o livro de Maquiavel foi reverenciado pelos seus contemporâneos e imediatos sucessores e retomado também ainda no início do século XIX quando desaparece a literatura da arte de governar e se coloca a questão de “como e em que condições se pode manter a soberania de um soberano sobre um Estado” (p. 278).

Nesse intervalo de tempo, porém, houve uma considerável produção de literatura anti-Maquiavel, umas claramente explícitas, outras nem tanto; livros de origem católica ou protestante. Foucault escolheu trabalhar o viés positivo dessa literatura, seus objetivos, conceitos e estratégias. Porém o aspecto negativo do pensamento de Maquiavel é o que mais salta aos olhos. Essa literatura da arte de governar vai contra um Príncipe caracterizado em Maquiavel como exterior a seu principado, transcendente, que recebe seus súditos como herança, aquisição ou conquista. Os laços que o unem aos seus súditos são de violência, de tradição; são artificiais, não existe uma ligação fundamental, jurídica, natural entre as partes. A relação, portanto, é tênue, frágil e pode ser abalada por fatores externos e internos. Nesse contexto o objetivo do exercício de poder, portanto é o de reforçar e manter os laços do príncipe com o que ele possui, com o que herdou ou adquiriu (território e súditos). É exatamente esse esquema proposto por Maquiavel que a literatura da arte do governar quer substituir.

O primeiro texto anti-Maquiavel que será analisado por Foucault é Espelho político contendo diversas maneiras de governar [minha tradução], de Guillaume de La Perrière. Foucault inicia pela análise morfológica do que La Perrière entende por governante e enfatiza que também se diz governar uma casa, um estabelecimento, uma ordem religiosa. Nessas literaturas da arte de governar, o príncipe não é o único em seu principado, como é o príncipe “maquiavélico”. A arte de governar mostra que há várias formas de governar, há várias pessoas que exercem essa função, são práticas coletivas de exercício de poder, onde o Estado é apenas mais uma modalidade. Maquiavel propõe uma singularidade transcendente do príncipe enquanto a literatura da arte de governar propõe uma pluralidade de formas de governos.

Na análise do texto seguinte de La Mothe Le Vayer, que escreveu um século depois de La Perrière, Foucault ressalta a tipologia das diferentes formas de governo que segundo Le Vayer são três: “O governo de si mesmo, que diz respeito à moral; a arte de governar adequadamente uma família, que diz respeito à economia; a ciência de bem governar o Estado, que diz respeito à política” (p. 278).

Na literatura da arte de governar há uma harmonia, uma continuidade (ascendente ou descendente) entre ética, economia e política; enquanto que na doutrina do príncipe há uma descontinuidade entre o poder do soberano e as demais formas de poder. Foucault cita, inteligentemente embasado na literatura da arte de governar, que se alguém quer governar o Estado deve antes saber governar a si, sua família, seus bens (em continuidade ascendente). E a continuidade descendente quer dizer que quando um Estado é bem governado, os pais de família sabem governar a si próprios, suas famílias, seus bens; e assim os indivíduos se comportam adequadamente. A instituição governamental que assegura a continuidade decrescente do bom governo do Estado passou a chamar-se Polícia. Inicia-se, assim, com a continuidade decrescente e a institucionalização da Polícia, uma coerção e vigilância sobre sujeitos individuais e as práticas coletivas.

O governo da família, que diz respeito à economia, é o elemento central da continuidade – seja crescente, seja decrescente. O papel essencial do governo foi mesclar em sua arte de governar a economia familiar e o exercício político, vigiando os habitantes, as riquezas e os comportamentos individuais e coletivos como um pai de família (p. 281).

Com o estudo filológico, sociológico e histórico da palavra “economia”, Foucault foi capaz de afirmar que no século XVI esse termo significava uma forma de governo, e no século XVIII será entendido como uma realidade, “um campo de intervenção do governo através de uma série de processos complexos absolutamente capitais para nossa história” (p. 282).

Foucault analisa os elementos que constituem o objeto de exercício de poder, ou melhor, quais são os encargos do governo. Há uma diferença de abordagens entre Guillaume de La Perrière, que vê o governo como aquele que conduz coisas a um fim conveniente, enquanto que Maquiavel entende que governar significa exercer poder sobre um território e seus habitantes. Há que ser explicado, porém, que para La Perrière “coisas” significam as relações sociais, quer seja entre homens, com as riquezas, objetos, instituições, recursos, território e fronteiras, costumes, hábitos, cultura, acidentes, desgraças, fome… Foucault exemplifica sobre governo de “coisas” falando sobre o funcionamento de um navio. Quem quer que seja o governante, ou qualquer outra determinação que o valha, terá de exercer seu poder sobre a nau, a carga, bem como prestar atenção no mar, se ocupar dos passageiros e dos marinheiros… “O essencial é portanto este conjunto de coisas e homens; o território e a propriedade são apenas variáveis” (p. 282).

Segundo a afirmação de La Perrière “governo é uma correta disposição das coisas de que se assume o encargo para conduzi-las a um fim conveniente” (p. 283). Essa passagem esclarece que a finalidade é intrínseca ao governo e é esta característica que o diferencia da soberania. A finalidade do exercício da soberania é o bem comum e a salvação. Sobre autoridade e soberania, Pufendorf, um autor do século XVII, cita: “Só lhe será conferida autoridade soberana para que ele se sirva dela para obter e manter a utilidade pública” (p. 283).

Para La Perrière, porém, a finalidade do governo não está no bem comum, mas sim na condução das coisas a um objetivo adequado a cada uma delas, portanto os seus fins são múltiplos e específicos. Para que atinja seus propósitos, a teoria do governo não estabelece leis aos homens, utiliza-se, pois, mais de táticas do que de leis, ou faz das leis, táticas. Não é, pois, através da lei que os objetivos do governo são atingidos.

É importante entender em que contexto pôde emergir a teoria da arte de governar no século XVI. Ela estava ligada ao aparelho administrativo monárquico territorial, ao conhecimento da ciência do Estado e estava intimamente relacionada com as práticas mercantis.

É no final do século XVI e início do século XVII que há uma primeira forma de cristalização da arte de governar devido à racionalização do Estado que “se governa segundo as regras que lhes são próprias” e tem sua própria racionalidade (p. 286). Pode-se entender que esta razão de Estado foi um entrave para o desenvolvimento da arte do governo que durou até o início do século XVIII.

Esta cristalização deveu-se a uma série de grandes crises do século XVII, momentos de urgências militares, políticas e econômicas que impossibilitavam a arte de governar de se expandir. A estrutura institucional e mental do século XVII também contribuiu para este bloqueio. Com a primazia do problema da soberania e suas instituições e enquanto o exercício do poder era pensado como exercício da soberania, “a arte do governo não pôde se desenvolver de modo específico e autônomo” (p. 286).

Houve, no século XVII, uma tentativa de compor a arte de governo com a teoria da soberania. Foi através dessa tentativa que se formulou a teoria do contrato: “a teoria do contrato fundador – o compromisso recíproco entre soberano e súditos – se tornará uma matriz teórica a partir de que se procurará formular os princípios gerais de uma arte de governo” (p. 286).

O desbloqueio da arte de governar, portanto o fim da cristalização que estamos comentando, se deu por vários fatores de expansão (demográfica, monetária, agrícola), mas, sobretudo, está estritamente vinculada com a “emergência do problema da população” (p. 288). Com esse novo problema posto, pode-se repensar a noção de economia não mais vinculada estritamente à família. A família estaria agora no interior da população e seria seu instrumento fundamental. Porém a população tem características próprias e produz efeitos econômicos específicos, independentes dos da família. A família, então, passa de modelo econômico da arte de governar a segmento privilegiado da população. O que permite, portanto, o desbloqueio da arte de governar é a população ter eliminado o modelo de família de constituição do governo.

O novo conceito forjado no século XVII de economia política só pôde existir devido à concepção da população como o novo objeto do governo. Bem como o a passagem da arte de governo a uma ciência política, e de um governo com técnicas e modelos da soberania para um regime de técnicas de governo, só pôde existir em torno da população, quando a idéia de família como sustentáculo econômico havia sido superada.

O conjunto configurado no século XVII entre governo, população e economia é o modelo que predomina em nossos Estados. Há ainda que se questionar sobre o que é esse Estado. Foucault diz: “o Estado não é mais do que uma realidade compositória e uma abstração mistificada, cuja importância é muito menor do que se acredita” (p. 292).

O Estado deve ser entendido, atualmente, a partir do seu modelo de governamentalidade e não de estatização. Foucault termina o texto dizendo que suas próximas aulas no Collège de France continuariam tratando desse assunto e finaliza com a afirmação de que: a “pastoral, novas técnicas diplomático-militares e finalmente a polícia” (p. 293) foram os três pilares sobre o qual se fundou a governamentalização do Estado.

Bibiana Soldera Dias – Licenciada e Bacharel em História pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestranda na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (bolsista do CNPq). E-mail:  [email protected]

FOUCAULT, Michel. A Governamentalidade. In: Microfísica do Poder. 11ª Ed. Rio de Janeiro: Graal, 1993. Resenha de: DIA, Bibiana Soldera. Aedos. Porto Alegre, v.1, n.1, p. 325-329, jun. / dez., 2008.

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