Encantarias e encantados no Brasil: pluralidade conceitual e diversidade regional/Escritas/2022

O dossiê “Encantarias e encantados no Brasil: pluralidade conceitual e diversidade regional” teve como objetivo reunir pesquisas realizadas em todo o Brasil que tivessem como temática o universo religioso afro-indígena denominado como Encantaria e/ou seus habitantes, os Encantados. Diversas religiões afro-brasileiras e outras manifestações religiosas trazem em seus rituais e panteões entidades e localidades com a nomenclatura aqui apresentada. Os textos aqui reunidos contribuem com as pesquisas mais recentes que têm apontado a existência de uma pluralidade na concepção do que vem a ser um encantado, do que é e onde se localiza a encantaria, de como trabalhar com essa categoria de entidades etc. Leia Mais

Lenguaje y política. Conceptos claves en el Río de la Plata (1780-1870) | Noemí Goldman

En diálogo con su labor sobre la historia conceptual rioplatense en el marco del proyecto Iberconceptos, que ha resultado central para los estudios comparados del siglo XIX hispanoamericano, el equipo de investigación dirigido por Noemí Goldman ha publicado recientemente Lenguaje y Política. Conceptos claves en el Río de la Plata (1780-1870). Esta compilación profundiza el trabajo que el grupo realizó sobre un conjunto de conceptos centrales en la vida pública del Río de la Plata en ese periodo en Lenguaje y Revolución (también editado por Prometeo en 2008). A través del análisis del uso de esa serie de conceptos y el contexto en que se ubicaban, las dos obras han revisado la tradicional dicotomía tradición/modernidad, evidenciando la apropiación selectiva por los actores de los términos coexistentes de naturaleza diversa. Leia Mais

Escrituras de la historia. Experiencias y conceptos | Luis Gerardo Morales Moreno, Laurence Coudart

El libro coordinado por Luis Gerardo Morales Moreno y Laurence Coudart se inscribe en el marco de las reflexiones historiográficas. La obra recoge entrevistas con diferentes académicos tales como Roger Chartier, Guillermo Zermeño, Francisco Ortega, Jaime Borja, Anne-Christine Taylor y Ricardo Pérez. Todos ellos pertenecientes a generaciones distintas y provenientes de Francia, México, Colombia y Estados Unidos. Lo novedoso del libro es la asignación de un protagonismo inusual a la historiografia de América Latina, especialmente a la mexicana y a la colombiana, hasta el día de hoy subvalorada en el contexto internacional. La preocupación general del libro es la historia cultural, la memoria, la comunicación, la mediación, la representaciones, las apropiaciones y las prácticas; por momentos también, la historia conceptual, aunque de forma desigual. Todos los entrevistados se refieren de manera directa o indirecta a estos ejes, sin negar las particularidades de cada uno de los investigadores y sin generar un cuadro homogéneo, por inexistente, de tal vertiente historiográfica. Leia Mais

O Belo Perigo | Michel Foucalt

Uma pergunta sempre me intrigou ao tratar de Foucault em qualquer ocasião que eu tivesse a oportunidade: como rotular um autor como este dentro de caixas de conhecimento tão fechadas em si? Do que eu deveria chamar Michel Foucault? Historiador? Filósofo? Pensador?

Esta não é uma questão das mais fundamentais, mas é uma dessas questões que intriga alguém que mergulha sem medo na obra, na vida e no estilo de um determinado autor. Fica, inegavelmente, a curiosidade. Leia Mais

A invenção da terra | Franco Farinelli

Em capítulos curtos, de forma poética, o geógrafo Franco Farinelli discorre sobre os principais conceitos da ciência geográfica: a forma da Terra, suas medidas, sua representação cartográfica, a paisagem, a economia, a globalização dos territórios e das nacionalidades, o espaço e as redes. O que mais chama a atenção é a forma como realiza essa construção, acompanhando as diversas aproximações humanas e seus discursos a respeito da realidade: mitos, narrativas, literatura de viagens vão sucedendo-se nos diversos momentos da História da Humanidade e, em cada um deles, o conhecimento do real suplanta a necessidade de metáforas para justificar o que não se sabe, chegando-se, com Kant, ao conhecimento científico. Leia Mais

A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845) – ARAUJO (RBH)

ARAUJO, Valdei Lopes de. A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845). São Paulo: Hucitec, 2008. 204p. Resenha de: CALDAS, Pedro Spinola Pereira. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.30, n.59, jun. 2010.

A publicação de A experiência do tempo, de Valdei Lopes de Araujo, deve ser vivamente aproveitada. Trata-se de um livro rico, digno de se encontrar nas estantes dos interessados em história política e intelectual do Brasil no século XIX, mas também nas bibliotecas dos estudiosos da história da historiografia e – por que não? – da filosofia da história. Melhor ainda: pode despertar no estudioso de vocação empírica o interesse pelas questões filosóficas mais abstratas, bem como mostrar à mente mais especulativa e reflexiva que os conceitos podem encontrar correspondência na realidade histórica mutável.

Valdei Lopes de Araujo é professor na Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), onde integra o Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade (NEHM). O livro é fruto de sua tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura da PUC-Rio, resultante de pesquisa orientada por Luiz Costa Lima. A refinada abordagem feita por Valdei Araujo se explica, sem nenhum demérito para a originalidade da obra, em parte pela formação obtida sob orientação de um intelectual que sempre estimulou a reflexão teórica e foi um dos responsáveis pela difusão da hermenêutica literária no Brasil, e que resulta na grande contribuição do livro de Valdei Araujo para o debate teórico e historiográfico. Seu mérito, portanto, consiste na sofisticada incorporação de discussões teóricas desenvolvidas na Alemanha na segunda metade do século XX, sobretudo aquelas herdeiras e críticas da hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer, autor que influenciaria tanto o historiador Reinhart Koselleck como um teórico e crítico literário do porte de Hans-Ulrich Gumbrecht. Sente-se a influência de Koselleck e Gumbrecht no texto de Valdei Araujo: do primeiro, a preocupação com a história conceitual, gênero no qual o autor se sai extremamente bem, dando bom exemplo de como os conceitos não são reflexos polidos da vida histórica, mas a própria forma pela qual esta se torna inteligível. Destarte, o conceito é lugar de experiência, e não de distanciada e desinteressada cognição por parte de intelectuais diletantes. Nada melhor que uma boa obra de história dos conceitos para que o estudioso da história do Brasil e da historiografia brasileira tenha a chance de manchar a imagem homogênea do intelectual brasileiro retórico e desocupado, que se preocupava com o mundo das letras somente por distração e ornamento. Mas o conceito – e aqui se percebe a influência de Gumbrecht – é também fruto de uma radical presença histórica, situada circunstancialmente. O livro, portanto, é profundamente feliz em se apropriar de textos teóricos como os de Koselleck e Gumbrecht sem, em momento algum, cair no erro de fazer de sua pesquisa uma exposição de conceitos importados, uma aplicação que viria meramente a confirmar o já sabido. Assim, embora a obra lide com fontes em grande parte já analisadas por outros historiadores, a maneira de lidar com elas é bastante original e criativa.

O livro inicia-se com uma questão fundamental para se pensar não somente a independência do Brasil, mas o que ela representa categorialmente como experiência moderna. Como diz Valdei Araujo em suas considerações finais: “A relação com o tempo e com o passado estava ainda condicionada, de um lado, por elementos clássicos da imitação e do exemplo e, de outro, por um entendimento geral do universo como a repetição de leis eternas e eventos cíclicos” (p.185).

A primeira parte de A experiência do tempo, denominada “A História do Sistema”, basicamente descreve e analisa a trajetória um tanto trágica de José Bonifácio de Andrada e Silva, o qual, tomando por base ainda uma visão cíclica de história, concebia o sentido da história do Brasil a partir da regeneração. Regeneração é possível somente se for entendida como a etapa subsequente à decadência, termo fundamental para a compreensão morfológica das ciências naturais. A propósito, é instigante perceber a semelhança do debate intelectual brasileiro sobre a modernização com a discussão travada no espaço alemão no último quarto do século XVIII, como demonstram as pesquisas de Peter Hans Reill.1 Porém, “regeneração”, para Bonifácio, se implicava a recuperação da essência de ser português, ainda que transplantada para o Brasil, não significava um retorno. Para usar os termos do autor, ao “espelhar” a história de Portugal, a história do Brasil abria uma possibilidade em sua busca de consciência, a de ser “uma outra história que já não podia mais ser de Portugal” (p.63). É esta a dialética delineada por Valdei Araujo, a do “tempo como repetição” (título do primeiro capítulo) para o “tempo como problema” (título do segundo capítulo). A tentativa da natural superação da decadência abria, portanto, a fresta para o projeto moderno. Afinal, a regeneração dar-se-ia em uma natureza virgem, pura, plenamente visível em seus princípios criadores, a qual teria sua potencialidade moldada pela ciência.2 O dilema da singularidade da história brasileira, posto pelo autor desde Bonifácio, é detidamente desdobrado no exame da possibilidade da existência histórica da língua e da literatura brasileiras, que deveriam ser construídas tendo por base o eixo clássico greco-latino, mas sem fazer dessa base um modelo a ser meramente copiado.

A segunda parte do livro (“O Sistema da História”), que compreende um excurso e dois capítulos adicionais, trata justamente da maneira pela qual os intelectuais brasileiros enfrentaram o incômodo gerado pela necessidade incontornável de se afirmar a singularidade nacional. Incômodo? Necessidade? Sim. O autor afirma-os muito precisamente: “As teorias disponíveis que poderiam explicar a constituição de novas formas, sejam animais, sejam políticas, estavam muitas vezes fundadas na ideia de degeneração” (p.126), e conclui, demonstrando a dimensão do problema, que, sendo verdadeiro o modelo organicista, “a mudança só poderia ser entendida como aperfeiçoamento, regeneração ou degeneração. O mesmo não seria válido então para as nações? Como entender o surgimento de uma nova nação?” (p.126).

Valdei Araujo apresenta, então, os esforços dos intelectuais envolvidos com a revista Nitheroy (como Domingos José Gonçalves de Magalhães) e com a própria fundação do IHGB. Se na primeira se percebia a tonalidade romântica com a qual se coloriria a singularidade nacional em fase de afirmação (mas na qual a história pertencia a um grupo amplo das “letras”), no documento fundador do IHGB, de 16 de agosto de 1838, percebe-se a presença de traços marcantes daquilo que – lembra muito bem o autor – Arnaldo Momigliano considerou fundamental para a caracterização da historiografia moderna, a saber, a conjunção da tradição antiquária e erudita, a preocupação com o sentido filosófico da história, e, por fim, a narrativa. Para Valdei Araujo, o primeiro traço é muito mais visível que os dois subsequentes, principalmente o terceiro, ainda muito discreto.

Outra faceta da modernidade ressaltada pelo autor, tão importante quanto o estabelecimento das bases da pesquisa histórica (mas dela decorrente), reside na abertura da possibilidade da experiência no lugar da imitação. O fato, assim, não é a recapitulação de um exemplo já feito, registrado, ensinado e conhecido, mas, sobretudo, a expressão da individualidade de uma época. O fato, portanto, é impensável dentro do modelo cosmológico ou exemplar, mas torna-se cognoscível em sua assimilação pela pesquisa antiquária e erudita no escopo da tentativa de afirmação da singularidade nacional.

A singularidade, de alguma forma, operava uma interessante transformação semântica: a degeneração deixava lugar para a consciência da finitude, para a consciência de uma experiência tipicamente moderna – a sensação da transitoriedade de todas as experiências. O projeto inicial do IHGB era, mostra muito bem Valdei Araujo, marcado por uma ambiguidade essencial: distante do organicismo que animara um José Bonifácio, o mundo letrado que girava em torno ao Instituto não respirava ainda o ar do pensamento evolucionista, naquele momento o único capaz de, para me apropriar de uma expressão de Henry James, ser o fio capaz de unir todas as pérolas. Como diferenciar as épocas da história do Brasil? Como organizar os fatos?

O livro de Valdei Araujo cumpre papel importante no ambiente atual de discussões teóricas e historiográficas, bastante marcadas pelo embate entre o ceticismo quase cínico dos ditos “pós-modernos” e os racionalistas. Afinal, Experiência do tempo mostra que a historiografia brasileira dá uma guinada fundamental em um momento de crise de orientação – para usar um termo de Jörn Rüsen. Portanto, não há problema algum em se escrever história em tempos de incerteza. De alguma maneira, sempre foi assim e esse foi o desafio sempre respondido, ainda que de muitas maneiras diferentes, pelos historiadores.

Notas

1 Cf. REILL, Peter Hans. Vitalizing nature in the Enlightenment. Berkeley: University of California Press, 2005;         [ Links ] ______. Die Historisierung von Natur und Mensch. Der Zusammenhang von Naturwissenschaften und historischem Denken im Entstehungsprozess der modernen Naturwissenschaften. In: KÜTTLER, Wolfgang; RÜSEN, Jörn; SCHULIN, Ernst. Geschichtsdiskurs Band 2: Anfänge modernen historischen Denkens. Frankfurt am Main: Fischer, 1994.         [ Links ]

2 Nesse sentido, permito-me uma comparação. José Bonifácio lembra muito o Goethe que viaja pela Itália. Na península, encontra a serenidade juvenil e a naturalidade de cuja falta tanto se ressentia em Weimar, onde já era um grande nome intelectual, sufocado pelas formalidades cortesãs. Vale lembrar que ambos – Bonifácio e Goethe – dedicavam-se largamente à ciência natural. Para uma visão da concepção de natureza em Goethe, ver MOLDER, Maria Filomena. O Pensamento morfológico de Goethe. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1995.         [ Links ]

Pedro Spinola Pereira Caldas – Professor Adjunto II do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia, Campus Santa Mônica. Av. João Naves de Ávila, 2121, Bloco H, sala 1H42. 38400-902. Uberlândia – MG – Brasil. E-mail: [email protected].

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O que os netos dos vaqueiros me contaram: o domínio oligárquico no Vale do Parnaíba – DOMINGOS NETO (HO)

DOMINGOS NETO, Manuel. O que os netos dos vaqueiros me contaram: o domínio oligárquico no Vale do Parnaíba.  São Paulo: Annablume, 2010. Resenha de: JUCÁ, Gisafran Nazareno Mota. Revelações da memória: uma nova trilha nos caminhos da tradicional história política regional e dos consagrados conceitos que a definiram. História Oral, v. 13, n. 1, p. 153-158, jan.-jun. 2010.

O título da obra em apreço espelha um roteiro metodológico plural. À pri­meira vista, ele pode figurar como um tema restrito aos que se sentem atra­ídos pela riqueza metodológica da história oral e/ou pela definição de um velho tema da história política regional.  Entretanto, após uma leitura atenta da introdução e uma observação perspicaz dos cinco capítulos, percebe-se que o autor almeja ir além dessa proposição metodológica e temática, pois remete o leitor a outras áreas de análise acadêmica. Refiro-me à busca de estabelecer uma contínua conexão entre o histórico, o sociológico, o político e o econômico, traço marcante do legado marxista, na busca de uma totalidade histórica, legado ainda perceptí­vel nos novos temas e novas abordagens daqueles que se conscientizaram do valor da interdisciplinaridade.

Manuel Domingos Neto foi um aluno afastado do curso de Licenciatu­ra em História, da Faculdade Estadual de Filosofia do Ceará (Fafice), na tur­bulência dos anos 1960, exilando-se na França, onde cursou o doutorado em História. Para quem o conhece e o acompanhou, na sua formação acadêmica, partilhando da alegria do seu ingresso no magistério superior, na Universida­de Federal do Ceará (UFC), na área de ciência política, a presente obra é uma prestação de contas de uma experiência histórica de “longa duração”.  O seu amadurecimento profissional e o tempo vivido, revelados atra­vés de uma trajetória interdisciplinar, licenciatura em história, doutorado em ciências sociais, professor de ciência política, na pós-graduação em ciências sociais, nos explicam a manutenção, no decurso da feitura do livro, de um elo explicativo do debate historiográfico apresentado, envolvido no viés socioló­gico, político e econômico.  Atualmente, no campo das ciências sociais, a “interdisciplinaridade” é reconhecida e recomendada, mas nem sempre demonstrada. E a questão é agravada quando se recorre a outro conceito, o de “transdisciplinaridade”, mais usado como um simples sinônimo de “disciplinaridade”. Como uma res­posta a essa questão, ao longo da leitura da obra em foco, a aplicação prática desse conceito nos parece evidente.  Nessa perspectiva, a sua preocupação constante em associar passado e futuro dos vaqueiros e dos netos de vaqueiros do Vale do Parnaíba nos faz melhor compreender as contradições do presente, um presente obtuso, en­volto em uma “história em migalhas”, que busca explicar a “era do vazio”. É a era de uma história marcada por um “hibridismo cultural”, melhor revela­do através da coleta de “memórias singulares”, imbricadas em “identidades sociais”.  E tais contradições teórico-metodológicas, agudizadas a partir da “cri­se de 1989”, abalaram a rigidez dos modelos explicativos, que pareciam in­deléveis. Contudo, nas novas versões históricas, como aquela voltada a uma “herança imaterial” (Levi, 1985), que traça a trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII, percebe-se o nexo entre o legado historiográfico marxista e as novas proposições apresentadas.  Assim, a complexidade temática é simplificada pela clareza da análise de um autor, que comenta a fragilidade de determinados conceitos, consagrados no estudo da história nordestina e, mais ainda, nos encanta pela leveza das narrativas coletadas, reveladoras dos depoimentos singulares, que prendem a atenção do leitor desde o primeiro capítulo.

O debate, inicialmente levantado em torno das limitações do conceito de modernização, sempre indicada como o anverso do tradicional, é amplia­do com a análise de outras proposições, como coronelismo e clientelismo. Percebendo as conexões e contradições, mercantilismo/escravismo colonial e muitos outros casos de persistência de arcaísmos, presentes no desenvol­vimento capitalista, fica claro que o atraso dos meios de produção também favorece determinados interesses. Por isso, “o moderno e o tradicional (ou ar­caico) sempre andam de mãos dadas, um absorvendo a seu modo, estruturas, valores, práticas e simbologias do outro” (p. 22).  A compreensão das relações de poder, no Piauí, não foi obtida apenas através dos depoimentos coletados. Livros, jornais, documentos e até poesias compuseram o acervo consultado. Na explicação da infausta trajetória do Piauí, extensiva ao Nordeste, o autor rejeita a definição de seu espaço como um espaço sem propensão para atividades consideradas mais complexas, de­dicado exclusivamente à subsistência, ocupado por resistentes à civilização.  A modernidade contraditória, onde o velho e o novo se entrelaçam e as diferenças estabelecidas entre as regiões brasileiras vão muito além de um simples produto do meio geográfico, uma vez que foi o Estado, sempre volta­do às exportações mais rentáveis, que alimentou uma desumana divisão local do trabalho e aprofundou as diversidades de oportunidade entre as regiões.  Nesse parâmetro, em busca de uma melhor compreensão das disparida­des regionais, são reavaliadas classificações consagradas, como as de Euclides da Cunha e Celso Furtado, confirmando a indicação dos indícios dessas dis­paridades, defendidos por Francisco de Oliveira e Wilson Cano.  As narrativas apresentadas pelos netos dos vaqueiros confirmam a mo­dernização sem mudança, registrada em diferentes momentos e espaços da história política regional e nacional. A linha de frente dessa modernidade combinava desenvolvimento com contradições sociais e regionais, destacan­do os coronéis e seus possíveis opositores como agentes desse processo.  Os depoimentos das velhas lideranças políticas contradizem as consa­gradas definições que lhes foram atribuídas. Outras facetas de comporta­mentos políticos, narradas pelas lideranças entrevistadas, desfazem os rígidos perfis, idealizados de forma homogênea, com datas estabelecidas de extinção dessas práticas políticas, o que atesta e contesta a fragilidade de determinados conceitos consagrados, como coronelismo e clientelismo, que o autor consi­dera mais insultuosos que definidores.

A riqueza plural de cada uma das entrevistas realizadas abre perspectivas de análise que ultrapassariam as 400 páginas do livro. Os títulos de cada um dos cinco capítulos constituem um estímulo ao leitor.  O primeiro, “Os netos dos vaqueiros”, é uma apresentação de cada um dos entrevistados, de acordo com a seguinte subdivisão:  1) “O Coronel”, Pedro Freitas, que fez negócios e política a vida inteira. Nesse primeiro tópico, a definição de coronelismo, segundo José Murilo de Carvalho, que tem por base a opinião de Victor Nunes Leal, é contestada. Para ambos, o abalo sofrido por alguns coronéis baianos, presos em 1930, teria sido finalizado com o golpe de 1937. Entretanto, segundo Manuel Domingos Neto, o coronel entrevistado exerceu o seu poder de mando da adolescência à velhice: não manteve o seu poder apenas na República Velha, uma vez que não enfrentou um declínio econômico e o seu poder pessoal o beneficiava no trato com o eleitorado urbano.  2) “O Doutor”, José da Rocha Furtado, um conceituado médico, na classificação de uma ampla clientela, que foi nomeado pelo centralismo político de 1930, mas cujo governo foi considerado um desastre de acordo com a memória dos entrevistados.  3) “O Engenheiro”, Luís Mendes Ribeiro Gonçalves, a quem foi confiada a administração das finanças e as obras do estado, durante o governo do engenheiro João Luís Ferreira, no período 1920-1924. Esse último, quando da sua estada na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, desfrutara da amizade de Lima Barreto, nas noites boêmias ali vividas. Luís Mendes, além de senador, pela União Democrática Nacional (UDN), de 1934 a 1937 e de 1947 a 1951, foi uma das testemunhas da passagem da Coluna Prestes.  O segundo capítulo, “A herança dos netos dos vaqueiros”, é subdividi­do em cinco temáticas, desde a que trata da criação do gado, nascendo para o mercado, entendida não apenas como alternativa para o povoamento do interior, mas como uma mercadoria produzida, integrada à dinâmica inter­continental do sistema capitalista, como fica expresso nas narrativas sobre a ação dos netos dos vaqueiros na política.  A expansão do processo criatório, iniciado com seus “confrontos sangrentos” e consolidado com a utilização da mão de obra escrava nessa atividade, explica o porquê do charque, nas “oficinas” de Parnaíba, e da ação dos proprietários não ausentes de suas fazendas, beneficiários de grande ren­tabilidade da pecuária nordestina.  A inviabilização da pecuária extensiva anulou o velho argumento de que o ouro das Gerais matou as charqueadas do Norte. Ela foi marcada pelas complicadas partilhas de terras por herança e pela autolocomoção do gado, definidora do rio Parnaíba como uma via de acesso sem importância.  As “falsas promissões” foram desfeitas pelo declínio da pecuária, sobre­tudo a partir de meados do século XIX, mesmo com a mudança da capital da província, de Oeiras para Teresina. Paulatinamente, o extrativismo vegetal, incentivado pelo comércio internacional, passou a ser a atividade econômica mais promissora e, desde as primeiras décadas do século XX, as poucas opor­tunidades de emprego e os conflitos de terra explicavam os elevados gastos governamentais com “segurança” e “justiça”.  Os netos dos vaqueiros na política, em suas falas, mesmo confirmando alguns traços definidores do coronelismo, descritos por Nunes Leal, põem por terra as explicações segundo as quais os grandes proprietários usufruíam do atraso econômico, pois a projeção política dos mesmos decorria da manei­ra peculiar de assumirem a propriedade da terra.  Se nos dois primeiros capítulos do livro a escrita do autor delineia o pano de fundo da peça apresentada, nos três últimos capítulos, intitulados “A fala do Coronel”, “A fala do Doutor” e a “A fala do Engenheiro”, os atores selecionados apresentam o seu enredo básico.  Na realidade, o livro não é uma produção de um pesquisador dedicado à “história oral”, mas de um cientista político que a ela recorreu como uma técnica de pesquisa que lhe pareceu promissora. Se fosse uma opção metodo­lógica, certamente as perguntas apresentadas, nas referidas falas, teriam sido eliminadas e o conteúdo analisado seria embasado com alguns conceitos re­veladores, como “memória social”, “história e memória” e “histórias de vida”.  Mas o importante é que essa escrita do autor, explicativa da problemá­tica enunciada, concentrada em 103 páginas, deixa o leitor ansioso pelo que consideramos a segunda parte do trabalho: as três falas apresentadas, que somam mais de 300 páginas. Com certeza, não é o número de páginas que define o peso maior à validade do que foi escrito, mas a opulência de temas e comentários, presentes nos depoimentos apresentados, por esses atores se­lecionados, nos induz a uma série de indagações, que ampliam o curso das análises apresentadas.

Se vários são os rios que figuram no mapa do Piauí, múltiplas são as pro­posições tratadas nas entrevistas à espera de diferentes interpretações. Que outras narrativas sigam as sinuosas trilhas abertas pelo autor, que tão bem soube ouvir e comentar acerca do que os netos dos vaqueiros lhe contaram.  Referências  LEVI, G. L’eredità immateriale: carriera di um exorcista nel Piemonte del Seicento. Torino: Einaudi, 1985.

Gisafran Nazareno Mota Jucá – Professor titular de História do Brasil e do Mestrado em História (Mahis) da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e professor da Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Ceará (UFC).

nserção Internacional: formação dos conceitos brasileiros | Amado Luiz Cervo

Eis uma criativa reflexão nacional, essencial às comemorações que se aproximam do centenário da disciplina dedicada ao estudo das relações internacionais. O livro de Amado Luiz Cervo inova ao sistematizar conhecimento brasileiro essencial à formação de conceitos em relações internacionais.

O argumento central do autor é que o Brasil, ao lado de uma dezena de países, propõe conceitos próprios a essa área do conhecimento, tanto quanto próprias são as concepções dos demais centros de produção científica para o estudo das relações internacionais em outras regiões do mundo. A espinha dorsal do livro situa-se no diálogo do pensamento brasileiro com os conhecimentos disponíveis na conformação epistemológica da disciplina. Situa Cervo o Brasil como uma nação de experiência singular ao fazer “de si idéia própria do papel a desempenhar no mundo”. Utilíssimo à grande área voltada para o estudo dos vínculos entre sociedades nacionais e o meio internacional, o autor se inspira no ambiente acadêmico brasileiro e latino-americano, e também na história acumulada pela prática diplomática brasileira bem como pela trajetória do Estado nacional. Leia Mais