O Brasil e os dias: estado-nação, modernismo e rotina intelectual | André Botelho

O modernismo no Brasil tem atraído a atenção de diversos estudiosos, preocupados com a pormenorização (no espaço e no tempo), a delimitação (de autores e obras) e, principalmente, a revisão (conceitual, teórico-metodológica e historiográfica) do tema, desde o final dos anos de 1980.

A pesquisa de André Botelho, originalmente apresentada como tese de doutorado de Sociologia em 2002 na Unicamp, com o título Um ceticismo interessado: a obra de Ronald de Carvalho dos anos 20, sob a orientação da professora Élide Rugai Bastos, além de se inserir nesse amplo e diversificado movimento de renovação dos estudos sobre o modernismo (a modernidade e a modernização) brasileiro, traz, ele próprio, uma bela contribuição para os debates.

Não foi apenas o título da obra que foi alterado com a publicação do livro, três anos após a defesa da tese. O texto foi inteiramente revisto pelo autor, incorporando parte das discussões teóricas e historiográficas sobre o tema, entre os capítulos que discutem diretamente a trajetória de Ronald de Carvalho. A retirada de capítulos, com um teor mais teórico presentes na versão original, decorreu em função da divulgação da pesquisa para um público mais amplo, tornando-o mais fluente a narrativa, ao eximir parte das exposições teóricas e metodológicas (fundamentais na apresentação de uma tese, mas, quase sempre, desnecessárias para as versões impressas). Na versão ora publicada, o autor também avança em sua discussão sobre a compreensão e a interpretação que se fazia e se faz sobre o Estado-nação, a cidadania e o modernismo.

Já no prefácio da obra, assinado pela professora Gláucia Villas Boas (que fez parte da banca examinadora da tese em maio de 2002), preocupou-se com o esclarecimento das principais contribuições do texto. Para ela, tem o mérito de mostrar, por meio da “trajetória de Ronald de Carvalho, a disposição da intelectualidade brasileira para intervir nos ‘negócios do mundo’, buscando moldálo de acordo com seus interesses e vontade”. Uma vez que:

Se recusarmos a crença de que as mudanças sociais e políticas se fazem por determinação de uma essência histórica ou simplesmente pela imposição única de política dos ‘grandes centros’ europeus e norteamericanos sobre a periferia latino-americana, há de se convir que os intelectuais no Brasil, talvez mais apaixonados que prudentes, vêm insistindo com regularidade na construção do Estado, da nação e da sociedade moderna.[2]

Nesse sentido, o “livro ressalta justamente a decisão do escritor e poeta carioca Ronald de Carvalho em intervir no curso dos acontecimentos através da ação, da reflexão e da escrita”. Por isso, diz Villas Boas, “contribui de modo especial para uma história dos intelectuais brasileiros uma vez que não os condena pela crença de se julgarem portadores de uma missão nem os acusa de se deixarem cooptar pelos desígnios da construção de um estado nacional”. Ressalta ainda que percorreu as “idéias de Ronald de Carvalho para saber de seus efeitos na criação de laços de coesão que possibilitassem a existência de um Estado forte e centralizador”. Para atingir esses objetivos o autor teve de analisar a atuação de Ronald de Carvalho no Itamaraty “restabelecendo o lugar daquela instituição nos anos 20 e 30, cuja atuação se igualava em importância a de outros órgãos do Estado como o Ministério da Educação e da Cultura” e “selecionou os escritos políticos e os escritos sobre a literatura e a cultura brasileira, fazendo uma análise arguta do sentido político-doutrinário das idéias do modernista carioca”[3].

Além disso, o autor se pautou na documentação epistolar, cuja base é composta pelas correspondências, as cartas trocadas por Ronald com outros intelectuais do período. Na apresentação do livro, escrita pelo autor, novamente volta nesses pontos para ressaltar que:

Esperando poder contribuir para o alargamento das possibilidades de compreensão sociológica do modernismo brasileiro e dos seus significados e sentidos sociais e políticos, recuperei a obra desse poeta, ensaísta e diplomata carioca até então ‘esquecido’ pelos analistas e tratei das inter-relações entre o tema da renovação cultural, de que se fizeram porta-vozes os modernistas em geral, e as reflexões sobre a formação e a organização social e política desenvolvidas no âmbito do pensamento social do mesmo período. Temas cujas afinidades e convergências pareciam então igualmente ‘esquecidas’.[4]

A sua hipótese central, nesse caso, foi:

(…) que esse processo não se realiza sem que as idéias sejam submetidas à uma ‘rotinização’ mais ou menos sistemática no âmbito da vida social. Nesse sentido, autores, gêneros de cultura letrada e materiais habitualmente considerados secundários por determinadas tradições intelectuais hegemônicas, como o próprio Ronald de Carvalho e seus ensaios em relação à galeria canônica do modernismo brasileiro, podem desempenhar papéis fundamentais, e suas obras, material privilegiado para o exame daquele processo de ‘rotinização’ intelectual.[5]

Na introdução, o autor indica a importância de se estudar esse tema e porque o fez a partir da trajetória intelectual de Ronald de Carvalho, centrando-se nos textos que escreveu nas décadas de 1920 e 1930. De acordo com ele “Ronald de Carvalho participou ativamente dos embates modernistas em torno da renovação poética brasileira”. Talvez por isso mesmo, que “como na concepção de Herder, também em Ronald de Carvalho a ‘cultura’ serve de base à legitimidade de constituição de um Estado-nação, e de sua soberania, esse modernista carioca não parece mostrar-se totalmente convencido da possibilidade de que uma ‘cultura brasileira’ estivesse a espera de ser apenas desentranhada da experiência social (e em particular a dos interiores do Brasil). Antes era preciso forjá-la”[6].

O autor lembra que é necessário observar a convivência de Ronald como diplomata do Itamaraty em outros países, para se analisar com maior propriedade a forma como este escreveu sua obra política e literária. Para ele, embora “não exista, do ponto de vista temático, uma unidade nos seus ensaios, eles formam como observou Antônio Carlos Villaça (…) um tipo de ‘introdução geral ao Brasil como cultura’. Penso que a sugestão é apropriada e pode ser estendida à obra de Ronald de Carvalho como um todo, mas desde que se leve em conta dois aspectos: em primeiro lugar que a problemática central neles formulada diz respeito não à constatação da existência de uma ‘cultura brasileira’, mas sim às possibilidades de formação da mesma. Em segundo, que ‘cultura’ não aparece, em seus ensaios, dissociada da dimensão ‘política’ da vida social”[7] . Portanto, de acordo com ele: …

trata-se neste trabalho de analisar um exercício do ‘poder ideológico’ no contexto de construção do Estado-nação no Brasil nas décadas de 1920-30. Exercício cujo sentido foi a ‘rotinização’ da critica aos princípios políticos liberais e democráticos de organização social que favoreceu o assentamento de uma ideologia autoritária de Estado como formador da nação (…) trata-se de analisar a formação de uma rotina intelectual politicamente relevante cujo sentido é congruente a afirmação ideológica da superioridade dos recursos de autoridade sobre os de solidariedade social (…) Vamos, então, ao sentido sociológico dessa ‘prontidão intelectual’, mas também das idéias que pareciam querer moldar a existência não apenas de Ronald de Carvalho, como ainda, e através dele, da sociedade brasileira como Estado-nação. [8]

Para empreender essa discussão, a versão impressa do trabalho ficou dividida em cinco capítulos, dos quais, o primeiro discute “a problemática teórica e a hipótese do trabalho com vistas a contribuir para a formulação de uma metodologia geral de análise sociológica da participação dos intelectuais na construção do Estado-nação e das idéias como forças sociais reflexivas”. Já no segundo reconstitui “a trajetória intelectual desse modernista típico do Rio de Janeiro, e seus suportes sociais e institucionais fundamentais”, com destaque para o seu trabalho como diplomata no Itamaraty. Nos três capítulos seguintes o autor analisa “seus emblemáticos ensaios dos anos 1920, procurando explicitar as representações ideais sobre as relações entre Estado e nação no Brasil neles formuladas”. O que implicou que Botelho se detivesse na cultura e na solidariedade social que perfaziam parte dos dilemas da formação nacional, na forma em que (com base em seus livros O espelho de Ariel, de 1923, e de sua Pequena história da literatura brasileira, de 1919) Ronald visualizava uma renascença à brasileira; e, enfim, por meio do questionamento sobre onde estavam nossas tradições, compreender a redescoberta de uma unidade moral, a partir das elites e da constituição do Estado autoritário, que forjaria a própria nação brasileira.

Foi assim, segundo ele, que movido “pelo desejo modernista de tornar o ‘Brasil’ mais familiar aos ‘brasileiros’, [que] Ronald de Carvalho procurou em seus ensaios dos anos 1920 (…) combater os tradicionais mecanismos sociais de transplante cultural e institucional” da Europa para o Brasil “e buscar uma ‘cultura brasileira’ autêntica como elemento de coesão para a sociedade enfrentar o desafio de se reconstruir modernamente como Estado-nação” [9] . E ainda:

A condição de forças sociais reflexivas das idéias, como procurou-se mostrar, permite, então, repensar o próprio estatuto dos processos ideológicos passados de uma perspectiva sociológica mais ampla, sem que isso conduza, necessariamente, à reafirmação de certezas sobre a mudança social. E se é o reconhecimento da simbiose histórica entre nação e Estado que coloca permanentemente o problema da atualização da legitimidade da ‘autoridade pública’ via processos ideológicos, não se trata, no entanto, de pensar a consolidação desse processo – seja ele autoritário ou liberal – como mera derivação ou resíduos de legados culturais. Eles serão atualizados ou não nas práticas sociais e por seus portadores sociais, ainda que o seu sentido seja em parte definido pela ‘seqüência histórica’ das escolhas coletivas feitas no passado. Um processo em aberto, com possibilidades múltiplas, mas não infinitas. E que, em suas múltiplas dimensões e possibilidades no presente, o passado talvez não seja mesmo um ‘fardo’, mas, assim como o futuro, também ele uma ‘força social’.[10]

A leitura desse livro contribui, assim, para que se possa equacionar melhor os chamados ‘ganhos’ e as ‘perdas’ que o modernismo trouxe, para que se pudesse pensar qual o tipo de Estado, nação e cidadania, almejava-se naquele momento, quanto também para o futuro. Ao esclarecer tais questões, a partir da trajetória de um intelectual engajado com os projetos do Estado na época, abre a possibilidade para que outros estudos e analises sobre o período sejam produzidas. Não há como negar que em alguns momentos Botelho se coloque como juiz do processo, e às vezes procure (até) justificar as escolhas de Ronald, mas isso não desqualifica, em nada, os méritos de sua pesquisa.

Notas

2. BOTELHO, André. O Brasil e os dias: estado-nação, modernismo e rotina intelectual. Bauru: EDUSC, 2005, p. 11.

3. BOTELHO, O Brasil…, p. 12.

4. BOTELHO, O Brasil…, p. 15.

5. BOTELHO, O Brasil…, p. 20.

6. BOTELHO, O Brasil…, p. 27.

7. BOTELHO, O Brasil…, p. 34.

8. BOTELHO, O Brasil…, p. 40-41.

9. BOTELHO, O Brasil…, p. 200.

10. BOTELHO, O Brasil…, p. 219-220.


Resenhista

Diogo da Silva Roiz – Mestre em História pela Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho – UNESP, Campus de Franca. Coordenador do Curso de História da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul – UEMS, Campus de Amambai.


Referências desta Resenha

BOTELHO, André. O Brasil e os dias: estado-nação, modernismo e rotina intelectual. Bauru: EDUSC, 2005. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Estado-Nação e modernismo no pensamento de Ronald de Carvalho (1895-1935). SÆCULUM – Revista de História. João Pessoa, n. 17, p. 167-171, jul./dez. 2007. Acessar publicação original [DR]

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