O Estado em Portugal (séculos XII-XVI). Modernidades medievais | Judite A. Gonçalves de Freitas

Esta obra de Judite de Freitas constitui no atual universo historiográfico, cheio de histórias monográficas, um estudo de síntese. Somente por este aspecto, já mereceria atenção. Mas, soma-se a essa ‘dissonância’ a proposta de escrever sobre o Estado (com maiúscula, segundo sua opção) na Idade Média, em Portugal, numa perspectiva que cruza o histórico com o historiográfico. Para aqueles que acompanham a “biografia póstuma” do estado medieval, principalmente a partir dos anos sessenta do século passado, perturbada e transformada por uma plêiade de fenômenos interpretativos, desde as inspirações foucauldianas, passando pela virada linguística, pelas desconstruções da pós-modernidade, pelos olhares da nova história política conjugada à cultura (cultura política) e que reforça – outra vez! – os laços com a sociologia (redes sociais), o livro de Judite de Freitas é um desafio.

“O Estado em Portugal (séculos XII-XVI)” insere-se numa bibliografia publicada anteriormente pela autora, que versa sobre temas ligados à história do estado, das instituições centrais, das sociedades políticas e do poder régio. Destacam-se, por entre artigos e livros, “A Burocracia do “Eloquente” (1433-1438): os textos, as normas, as gentes”, de 1996, “Teemos por bem e mandamos. A Burocracia Régia e os seus oficiais em meados de Quatrocentos (1439-1460)”, de 2001, e “D. Branca de Vilhena: patrimônio e redes sociais de uma nobre senhora no século XV”, de 2008. Portanto, trata-se do resultado de um percurso intelectual dedicado a pensar os meandros do estado medieval e as formas pelas quais as instituições centrais se apresentam, se representam e agem.

A intenção do livro, tal como anunciado pela autora na introdução, é somar-se aos esforços intelectuais europeus que se dedicam à discussão das origens do estado moderno nessa geografia. Mais precisamente, a direção é dada pelos modelos que Jean-Philippe Genet e Wim Blockmans desenvolveram em suas propostas, respectivamente, no CNRS1 e na Fundação Europeia de Ciência. A estas referências-chave, Judite Freitas esclarece que são também importantes as contribuições espanholas de José Manuel Nieto Soria, Miguel Ángel Ladero Quesada, Miguel Artola, Salustiano de Dios, José María Monsalvo Antón e, na historiografia portuguesa, Armando Luís de Carvalho Homem, Martim de Albuquerque, José Mattoso, Maria Helena da Cruz Coelho, Luís Miguel Duarte, Rita Costa Gomes e Oliveira Marques. De forma coerente à escolha da orientação historiográfica, são esses nomes e suas obras que permitem à autora afirmar que: “os reis medievais foram os impulsores da construção do Estado moderno” (p. 10). Ainda nessa linha de abordagem, são estabelecidos na introdução os recortes temáticos que explicarão e fundamentarão ao longo de todo o livro a dinâmica desse processo histórico. Em seus

principais traços evolutivos, adoptando como correlativos, o processo criativo dos ofícios palatinos (órgãos da governação), o caráter ideológico do poder da realeza medieval, as concepções de “realeza, “monarquia”, “serviço” ou “ofício”, a transformação das estruturas da administração central – incluindo o laicismo dos serviços burocráticos superiores -, a organização do território e os instrumentos legislativos, judiciais e administrativos de que o rei dispunha para fazer exercer o poder soberano, por meio dos quais, paulatinamente, se vai transitando do Estado feudal ao Estado moderno”(p.11).

A autora estabelece de forma clara que seus pressupostos conceituais sobre o estado assentam-se na Idade Moderna e na dupla fundamentação da administração e da lei. Como consequência lógica, a própria obra divide-se em quatro eixos temáticos – e não em reinados. São eles: realeza, governo e poder dinástico; monarquia, parlamento e direito; estado, poder e administração; estruturas do poder político: a monarquia renovada.

Com relação à primeira temática, o livro vai ao encontro de outras estratégias explicativas que, para a Idade Média, apontam a estabilidade nas regras de sucessão ao trono, como pedra angular para o fortalecimento do estado. Portanto, a formação e legitimação de dinastias estariam na base do edifício político que viria a ser o estado moderno. Somente desta forma, seria possível controlar a concorrência entre os grandes, fossem laicos ou eclesiásticos. Assim, é com a consolidação dessa ‘tecnologia’ política que as outras dimensões da representação das ordens sociais ganham corpo, como as cortes e a organização municipal. Da mesma forma, os conceitos rei, reino, reinado, e a própria ideia de comunidade nacional transformar-se-ão de maneira profunda. O primeiro século da história de Portugal, de acordo com a historiografia seguida pela autora, constitui uma espécie de laboratório, com experiências de organização e de projetos políticos que na maior parte das vezes se frustram devido à incapacidade dos atores envolvidos no processo para levar adiante a tarefa. Entretanto, a segunda metade do século XIV apresentaria um panorama de maior especialização administrativa que incide, sobretudo, nas divisões de tarefas no interior da burocracia do estado. Este seria um aspecto importante a levar em conta no que tange às origens desse estado moderno. Mas ao longo de todo o capítulo, Judite de Freitas não deixa de apontar as dificuldades que os monarcas, mesmo os dos séculos XIV e XV, tiveram para lidar com as práticas dos privilégios, e mesmo com a impossibilidade de uniformizar as leis e de exercer autoridade sobre todo o reino. “Muito embora o rei tenha vindo a reforçar as suas competências político-administrativas e as estruturas políticas do Estado tenham conhecido uma organização e eficácia superior, o rei não detinha o monopólio do poder” (p. 78).

No segundo capítulo, dedicado à interligação entre monarquia, parlamento e direito, a autora, apoiando-se na bibliografia escolhida, entende ser necessário estabelecer a diferença conceitual entre estado moderno e monarquia moderna por um lado e estado feudal e monarquia feudal por outro. Para sustentar a diferença, recorre uma vez mais à proposta de Jean-Philippe Genet que, superando os entraves da tipologia classificatória proposta no início dos anos 1970 por Joseph Strayer1 , insiste sobre quatro aspectos basilares desse estado moderno: a formação de uma rede fiscal pública, um corpo complexo de oficiais e de uma burocracia, a afirmação e reconhecimento da soberania sobre o território, o monopólio da justiça e da guerra. Desta maneira, há uma preocupação em mostrar como os aspectos referidos vão ganhando forma ao longo dos séculos medievais em Portugal. A forma como o capítulo está organizado permite ao leitor uma visão bastante interessante sobre os “becos sem saída” da historiografia dos últimos tempos, no que concerne, principalmente, ao papel do direito na sociedade portuguesa medieval. Embora sem poder afirmar que era justamente essa a intenção da autora, o fato é que sem que os historiadores se coloquem a pergunta sugerida já há muito tempo por Aaron Gurevich2, “qual era a expectativa do homem medieval diante da lei?”, fica difícil entender o aparato legal que a realeza produz no final da Idade Média. Enfim, é o caráter “medieval” que Judite de Freitas sublinha ao final do capítulo, quando lembra que todo o esforço legislativo, mesmo do início do século XVI, recuperava os costumes e o propósito ordenador dialogava intimamente não com a modernidade, mas com a tradição.

Com relação à temática estado, poder e administração, o enfoque recai sobre a vitória que determinada historiografia reconhece no século XIII de uma nova realidade política que se define por meio da associação entre reino, república e coroa. Para tanto, há que somar tudo o que foi apontado nos capítulos anteriores, cujo resultado seria a elevação da monarquia sobre os demais poderes em concorrência. Em termos políticos, ter-se-ia operado uma autonomização do poder monárquico, acompanhado de um desejo explícito que se reflete no discurso e nas ações de que o rei e a corte sejam reconhecidos como o centro político. Mas, segundo as considerações da autora, as dificuldades para implementar os dispositivos administrativos e, sobretudo, controlar o aparelho burocrático são imensas, para além da pluralidade das percepções políticas e jurídicas que formam o reino.

O tema das estruturas do poder político monárquico renovado constitui o último capítulo. Sem dúvida, a forma como está organizado, permite ao leitor menos familiarizado com o organograma da burocracia régia do final da Idade Média portuguesa conhecer esses meandros. Ao mesmo tempo, a autora aponta as especificidades desse tipo de estrutura e, do ponto de vista da “modernidade”, suas fragilidades. Embora não seja dito claramente, o fato é que não há como deixar de intuir a existência de redes sociais de grande vitalidade, dinamizando o tal aparato da burocracia medieval/moderna. O exercício concomitante de ofícios, a venda disfarçada dos cargos, bem como a hereditariedade e a sua patrimonialização são evidências indisfarçáveis que necessitam de uma boa reflexão.

O “balanço final” é surpreendente, embora a leitura atenta dos capítulos já deixasse adivinhar uma autora que não estava de todo convencida da própria estratégia teleológica: as origens do estado moderno. Senão, vejamos os trechos abaixo:

A construção moderna do Estado implicou um conjunto de modificações lentas, edificadas dentro dos limites do domínio territorial da monarquia. Na nossa opinião, não existiu transição entre a Monarquia feudal (séc. XI-XIII) e a Monarquia moderna (sécs. XIII-XVI), mas continuidade”[grifo da autora] (p. 202)

A história do Estado é feita deste conjunto de acertos sociais e políticos que ultrapassa, não raro, as questões relativas à determinação da origem do respectivo modelo de organização política, seja de raiz imperial romana seja do Estado-nação (p. 203).

Judite de Freitas, neste livro, retoma a historiografia portuguesa, e embora se perceba que essa narrativa também é parte de sua maneira pessoal de entender o Estado, o fato é que ela não desconhece as discussões atuais ‘estrangeiras’ e estabelece com elas um diálogo profícuo. Por outro lado, o seu profundo conhecimento da documentação régia do período permite-lhe colocar a construção do modelo monárquico/estatal (histórico e historiográfico) sob lupa. A leitura possibilita – tal como deve ser – a formulação de muitas questões sobre o modelo político da centralização do poder medieval/moderno e, mais precisamente, sobre as maneiras como a historiografia tem explicado essa experiência ao longo do tempo.3

Notas

1 Strayer insistia no caráter da impessoalidade das instituições, como condição identitária do estado moderno. Ver STRAYER, Joseph R. As origens medievais do estado moderno. Lisboa: Gradiva, 1986.

2 Ver GUREVICH, Aaron. Categories of medieval culture. London: Routledge & Kegan Paul, 1985, p.178.

3 Do ponto de vista da edição, uma palavra de protesto, que vai além do livro ora resenhado. Como leitora assídua de obras de história, editadas no Brasil e em Portugal, deixo registrada minha indignação com a falta de profissionalismo de algumas editoras que vêm ganhando destaque no cenário acadêmico, mas que ao mesmo tempo não apresentam um trabalho de revisão à altura. As editoras demitiram-se do papel de revisão e os livros publicam-se repletos de gralhas. Isso é inadmissível, sobretudo porque pretende-se passar ao próprio autor o trabalho e os custos. Assim, desejo que o livro de Judite de Freitas encontre, nas seguintes edições, um editor mais profissional.


Resenhista

Maria Filomena Coelho – Universidade de Brasília.


Referências desta Resenha

FREITAS, Judite A. Gonçalves de. O Estado em Portugal (séculos XII-XVI). Modernidades medievais. Lisboa: Alethéia, 2012. Resenha de: COELHO, Maria Filomena. Signum- Revista da ABREM, v. 13, n. 1, p.130-134, 2012. Acessar publicação original [DR]

 

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