O que pode a biografia | Alexandre de Sá Avelar e Benito Bisso Schmidt

Benito Bisso Schmidt é professor no Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Nessa instituição, graduou-se e realizou o Mestrado e concluiu o Doutorado em 2002, pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Durante a sua formação, Schmidt estudou temas referentes à Biografia e à História Social do Trabalho, como também passou a se debruçar sobre os Estudos Queer. Alexandre de Sá Avelar é docente no Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Graduou-se e tornou-se, em 2001, mestre pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e, posteriormente, cursou o Doutorado na Universidade Federal Fluminense (UFF). Avelar trabalhou com temas ligados aos campos da História Política, da Biografia, da Teoria da História e da Historiografia.

Organizada por esses historiadores, a coletânea intitulada O que pode a biografia apresenta a narrativa como eixo principal de análise e os capítulos divididos em duas sessões. A primeira, Horizontes Teórico-Metodológicos, está relacionada aos processos constitutivos da biografia (indivíduo, tempo, narrativa e escalas) e a sua inserção no debate público. A segunda, Experiências de Pesquisa e Leitura, apresenta as trajetórias de pesquisadores, que contribuíram para a coletânea da obra, e os parâmetros usados na elaboração de suas pesquisas.

No primeiro capítulo, Contar vidas em uma época presentista, Benito Schmidt narra como a biografia se tornou pauta de discussão no Supremo Tribunal Federal, que debateu a exigência de prévia autorização do biografado ou, em caso de falecido, de familiares para a publicação de biografias. Em todo o processo, buscou-se defender a liberdade de expressão prevista no Código Civil Brasileiro. Partindo daquele caso, o historiador propõe analisar como diferentes regimes de historicidade2 aparecem na compreensão e na defesa da escrita de biografias, refletindo, assim, sobre o impacto do tempo presente no aumento da produção de obras biográficas. Para concluir o ensaio, Schmidt defende a pesquisa em História no Brasil e ressalta a importância das questões que esta traz à tona, muitas das quais levantadas pelos estudos de trajetórias de vida.

No segundo capítulo, Os usos da biografia pela micro-história italiana, Deivy Ferreira Carneiro trata do ressurgimento do sujeito na História a partir da proposta da micro-história. O autor propõe que o sujeito estaria interconectado à sociedade a partir da network analysis, uma espécie de teia na qual o indivíduo constrói relações interdependentes. Ao final, Carneiro realiza um estudo de caso sobre os usos da biografia.

No terceiro capítulo, Maria da Glória de Oliveira aborda o poder da narrativa na construção de biografias. Ela destaca a etimologia do termo narrativa, sinalizando a importância desta (e das identidades pessoais) na análise de uma trajetória individual. A autora descreve esse processo como sendo composto de “intrigas, capaz de configurar eventos, caracteres e histórias heterogêneas em um todo dotado de coesão e sentido” (p. 66). Ela também introduz o conceito de identidade narrativa, a qual diz respeito às diferentes fases de vida atribuídas a um mesmo nome. O responsável por ser o cerne da biografia é, portanto, o indivíduo. O entrecruzamento desses fatos é responsável por apresentar jornadas com um olhar voltado, muitas vezes, à ficção.

Em Biografia, Biografados, Mary del Priore trata de questões apreensivas para o uso das biografias. Partindo disso, ela questiona se o historiador-biógrafo estaria disposto a exercer seu papel social ao se aproximar do leitor comum. O capítulo percorre Heródoto e Tucídides, passa pelas escolas historiográficas e chega a Hayden White para mostrar que a biografia voltou às mãos dos historiadores nas décadas de 1970 e 1980. Por fim, Priore debate o fato de muitos historiadores ainda verem o gênero biográfico como um tabu, apesar de outros profissionais seguirem escrevendo sobre trajetórias de vida.

No quinto capítulo, Rose Silveira aponta os caminhos traçados por uma jornalista investigativa que utilizou dos parâmetros da pesquisa historiográfica. Nesse sentido, a autora reforça que os profissionais da comunicação também falam de um lugar social e a partir de métodos próprios. Ao concluir seu artigo, Silveira apresenta casos que referenciam as investigações do seu campo e se assemelham muito ao ofício do historiador.

Na segunda parte do livro, encontramos o sexto capítulo. O autor, Alexandre de Sá Avelar, questiona o caráter problemático da biografia na História. Partindo dessas reflexões, ele mostra como surgiu o interesse em estudar a vida do General Edmundo de Macedo Soares. Após defender o seu Doutorado, Avelar voltou a se debruçar sobre a tese que escreveu e notou como a releitura e a reescrita podem levar uma biografia a caminhos distintos, mostrando, assim, que é possível encontrar novas reflexões para os debates do presente.

O sétimo capítulo trata da trajetória de pesquisa de Francisco Martinho. Estudar a vida de Marcelo Caetano, figura central na ditadura portuguesa (1932 – 1974), foi um desafio para Martinho, pois, apesar de ter acesso ao acervo pessoal de Caetano, num primeiro momento, foi impedido de estudá-lo por um erro administrativo. Assim, teve de traçar outros caminhos para escrever a biografia do ex-primeiro-ministro português, o que ocasionou o acúmulo de um volume maior de documentação. Martinho utiliza-se desse exemplo para dizer que a biografia histórica não está isenta de imprevistos, cabendo ao pesquisador traçar outras rotas de acordo com as necessidades que se apresentam e daquilo que lhe é possível naquele momento.

No oitavo ensaio, o historiador brasilianista James Green narra a história de vida de Herbert Daniel, militante de esquerda e gay. No decorrer da pesquisa, um dos desafios que Green enfrentou foi iluminar os não-ditos da trajetória de Herbert e, por isso, utilizou-se de um leque variado de fontes para contemplar a voz do biografado. Ao final da pesquisa, ele constatou não só dados relevantes sobre a trajetória do biografado – como que tinha o nome de Herbert Eustáquio de Carvalho e que Herbert Daniel era um codinome adotado na época da Luta Armada –, mas também que a vida de um indivíduo está fadada a ser parcial e incompleta nas mãos de um biógrafo. Por fim, mostra como ter desenvolvido uma relação com a mãe do militante foi essencial para o desenvolvimento da pesquisa, pois contribuiu para a produção de um ponto de vista ético e não apenas analítico sobre a vida de Herbert.

No ensaio seguinte, Jorge Ferreira apresenta os passos que o levaram a encontrar seu objeto de pesquisa. Partindo de preocupações sobre o trabalhismo, Ferreira se deparou com João Goulart e questionou o que sabia sobre aquele ex-presidente. Ao optar pela biografia para compreendê-lo, Ferreira trabalhou com uma vasta documentação escrita e realizou entrevistas para compor o seu compêndio documental, o que lhe permitiu contemplar olhares mais próximos sobre Goulart. Entre o seu trabalho acadêmico e o livro publicado em 2011, ele narra os questionamentos que o fizeram se distanciar do seu objeto de pesquisa e mostra que teve a possibilidade de narrar não apenas a vida de Jango, mas também a trajetória daqueles que tiveram contato com este.

No capítulo seguinte, Laura de Mello e Souza narra o seu encontro com um livro de Vitório Alfieri no tempo em que esteve na Universidade de Turim. Ela escreve que esse autor possuía um olhar testemunhal sobre o momento em que viveu, vindo a estabelecer um parâmetro entre os reis da Europa. A historiadora afirma que tal livro conta mais sobre esse período do que muitos livros de História, Literatura e Política e que tal maneira de escrever é o traço da obra de Alfieri. Concluindo, Souza revela que a autobiografia é útil para analisar as contradições e os conflitos de uma época, sendo objeto profícuo para outros trabalhos.

No capítulo seguinte, Margareth Rago descreve a metodologia e os autores que a auxiliaram na realização de entrevistas com ex-militantes brasileiros de esquerda. Partindo de uma perspectiva feminista, ela percebe os diferentes modos de se tratar a (auto)biografia e mostra que a escrita das mulheres não transita na mesma órbita que a dos homens, pois estas são a todo instante pressionadas para não falarem de si. Assim, Rago diz que a História é um artifício para “deslegitimar o presente, mostrando que não somos naturais, que somos a-históricos e que, portanto, podemos ser diferentes” (p. 213). As subjetividades trazidas pela memória das biografadas auxiliaram a autora a compreender os silêncios nas entrevistas que realizou, podendo, assim, analisar como essas mulheres construíam escritas de si.

No último ensaio, Bartleby & Nulisseu, Temístocles Cezar parte de um texto elaborado por uma aluna de graduação para costurar a reflexão proposta no capítulo. Cezar percebe que a narrativa da trajetória de vida do personagem fictício Nulisseu (heterônimo utilizado pela graduanda) estaria enquadrada em uma biografia do não feito. Depois de um e-mail enviado por essa aluna, Cezar entende que existem várias histórias de vida, pois estas são plurais. Portanto, o autor interroga: é impossível realizar uma biografia de Bartleby?3 Aqui, o fazer historiográfico é questionado quando o personagem não possui elementos que o insiram no gênero biográfico. Para concluir, Cezar procura respostas para as suas indagações, deixando ao leitor um questionamento: como essas pessoas ocultas olhariam para nós? Tal pergunta ressalta o caráter subjetivo da produção historiográfica.

De acordo com os seus autores, os textos de O que pode a biografia “dialogam com a sempre escorregadia e problemática questão da narrativa” (p. 12). Caminhando entre o viés científico e o discursivo, a coletânea destaca que os pesquisadores não podem radicalizar os estudos que desenvolvem por um viés pretensiosamente técnico-imparcial e, muito menos, negar a materialidade dos fatos. Assim, o livro tem o mérito de atender a diferentes anseios e, ao mesmo tempo, não cair na ilusão de esgotar as discussões propostas (pois reconhece que não apresenta todos os pontos de vista, nem todas as possibilidades de estudo).

Em meio a tal honestidade, os organizadores da coletânea apresentam de forma didática os desafios e as potencialidades de estudar uma vida e, ao mesmo tempo, contemplar diferentes perspectivas teórico-metodológicas. Nesse sentido, Schmidt e Avelar partem da estratégia de separar os ensaios entre as reflexões teóricas e metodológicas e os relatos de pesquisa. Apesar de não serem campos totalmente apartados, essa divisão acaba por servir de guia, pois permite ao público iniciar sua leitura a partir daquilo que melhor atenda aos seus anseios e não seguir necessariamente a ordem proposta pelo livro. Para concluir, observa-se que a coletânea inspira os pesquisadores a construir textos que busquem alcançar públicos para além da academia e a estabelecer uma conexão entre História e biografia, permitindo percorrer caminhos antes inimagináveis para a operação historiográfica.

Notas

2 Conceito cunhado pelo historiador François Hartog no decorrer de suas reflexões sobre Tempo, Memória e História.

3 Personagem do livro Bartleby, o Escrivão, escrito em 1853 por Herman Melville.


Resenhistas

Carlos Thaniel Moura – Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de São Paulo, bolsista FAPESP/CAPES. E-mail: [email protected]

Roger Camacho Barrero Junior – Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestre em História pela Universidade Federal de São Paulo, bolsista CAPES. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

AVELAR, Alexandre de Sá; SCHMIDT, Benito Bisso (Orgs.). O que pode a biografia. São Paulo: Letra e Voz, 2018. Resenha de: MOURA, Carlos Thaniel; BARRERO JUNIOR, Roger Camacho. Entre teorias e práticas na biografia histórica. Ars Historica. Rio de Janeiro, v.20, p.246-250, jul./dez. 2020. Acessar publicação original [DR]

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