O universo do indistinto: estado e sociedade nas Minas setecentistas (1735-1808) – SILVEIRA (VH)

SILVEIRA, Marco Antônio. O universo do indistinto: estado e sociedade nas Minas setecentistas (1735-1808). São Paulo: Hucitec, 1997. Resenha de: ROMEIRO, Adriana. Varia História, Belo Horizonte, v.16, n.22, p. 207-211, jan., 2000.

Muitos foram os autores que se debruçaram sobre os caracteres específicos do sociedade mineira do século XVIII, em busca dos processos e da dinâmica social responsáveis por uma feição tão peculiar. Como, por exemplo, explicar a fluidez e a instabilidade- características apontadas por Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Laura de Mello e Souza, entre outros – sem incorrer no lugar-comum ultrapassado de uma sociedade menos rígida e por isto mais democrática?

É neste domínio que se situa o livro “O universo do indistinto: estado e sociedade nas Minas setecentistas”, de autoria de Marco Antonio Silveira. A questão que o autor se propõe a responder é: de que modo os códigos e a simbologia da sociedade patrimonialista e estamental foram reinterpretados e reinventados no contexto da mineração e do aluvionismo social?

O pano de fundo do livro é o contexto europeu da segunda metade do século XVII, quando aparecem uma nova sensibilidade e uma nova sociabilidade, atrelado às transformações em curso do capitalismo industrial. Gestos e hábitos considerados até então como naturais e corriqueiros passam a ser execrados em nome das boas maneiras e do refinamento – cada vez mais necessários numa sociedade que se caracteriza pelo convívio prolongado, pelas relações de dependência entre os indivíduos. Toda uma nova ética do comportamento individual e social é construída em torno destes novos valores ditos civilizados. É por esta trilha, explorada por Norbert Elias, Peter Burke, Keith Thomas e Mikhail Bakhtine – este último, a partir de uma perspectiva muito diferente- que Marco Silveira se envereda para pensar a sociedade mineira do século XVIII. Mas, familiarizado com a já não tão mais recente historiografia sobre as relações entre cultura popular e cultura erudita na Europa da Época Moderna, ele formula o seu problema de forma diferente: como vislumbrar formas de contestação e resistência a estes modelos civilizadores forjados a partir das novas exigências do capitalismo industrial ? Como articular, teoricamente, o problema da releitura e da reinterpretação de significados e códigos culturais? O autor responde: ” em toda abordagem cotidiana do fim da época moderna devem-se considerar as inúmeras reconstruções de valores e comportamentos difundidos pela sociedade. Ao mesmo tempo em que os grupos dominantes buscavam distinguir-se, suas formas de distinção eram reprocessadas na vida cotidiana. O estudo da cultura desse período é, portanto, também o estudo do fundo comum capaz de fornecer lógica no interior de um processo caracterizado por heranças culturais diferentes e em constante movimento” (p. 40). Para fortalecer seu ponto de vista, recorre a Goethe e a defesa da virtude em oposição ao cerimonial empolado e artificial. Em fins do século XVIII, as primeiras lufadas do romantismo já anunciariam as fissuras deste processo civilizatório. É assim que as Minas vão encarnar, em sua análise, o lugar por excelência de resistência a este processo civilizatório, desafiando o aparato simbólico das sociedades estamentais do Antigo Regime.

É esta matriz teórica- que privilegia os embates e conflitos culturais em detrimento do conceito de mentalités- que fundamenta a empreitada do autor pelas Minas do século XVIII. Em que medida a feição peculiar e original da sociedade mineira aponta para uma reinvenção igualmente original dos códigos, valores e normas que pautavam a sociedade européia do Antigo Regime? Apresentada a estrutura teórica e metodológica da investigação, o autor persegue, no capítulo 2, “Império e civilização”, as evidências de que nos trópicos reinava a mais absoluta barbárie, em contraposição aos apelos insistentes da Coroa, preocupada em levar o verniz da polidez, da etiqueta e da civilidade aos confins do sertão, porque, segundo o autor, ser civilizado passou a significar “bom vassalo”. É isto que vai permitir ao autor detectar nas velhas e repetidas ladainhas sobre o bom vassalo o propósito determinado da Coroa em lustrar seus mais rústicos vassalos – e mais importante – proceder a uma leitura da refração aos códigos de bom-tom como o sinal inequívoco de uma aclimatação da sociabilidade refinada: corrupção, troca de favores, desvios morais e religiosos. Diante de quadro tão assustador, só resta ao reformismo setecentista formular a utopia de uma nova sociedade, assentada sob as bases da civilização.

No capítulo 3, As Minas cadávericas e os “habitantes do universo”, o autor detecta na crítica dos administradores, governadores, religiosos e viajantes sobre a natureza indómita das gentes das Minas uma preocupação com a rusticidade e a grosseria dos mineiros. A começar pela paisagem urbana irregular e tortuosa e dela passando à gente da capitania, espécie de “monstruosidade indómita”, avessa ao modelo do bom vassalo e ignorante dos princípios religiosos e políticos- cuja expressão mais brilhante é de autoria do Conde de Assumar. Contra este estado de coisas vai se bater o discurso reformista, propugnador de uma sociedade fundamentada sobre o espírito público e na reforma dos costumes e comportamentos.

A parte 11, As bocas deste mundo, divide-se em dois capítulos. No primeiro deles, “Aiuvionismo social”, o que está em jogo são os sistemas de valor que se debatem numa economia complexa como a das Minas setecentistas: diante de uma realidade adversa, a ética da honra e da palavra, próprios da sociedade estamental, sucumbem diante de uma outra ética, a do dinheiro e da circulação, mais apropriados a uma sociedade fluida e aluvionista. Aqui estamos diante de mais um daqueles rearranjos que se forjaram nas Minas, resultantes de uma adaptação, para a realidade da mineração, do universo normativo do Antigo Regime. No capítulo 2, “Escravidão como valor”, o autor desenvolve a tese de que as Minas teriam conhecido uma variante peculiar do escravismo moderno: “a própria experiência cotidiana, entretanto, criou também as condições para que a escravidão fosse vivida como um valor. Dessa forma, embora a fluidez e a mobilidade convidassem à desagregação final do espaço público, persistiam elementos morais capazes de conferir certa legitimidade ao mundo mineiro. Em meio às reconstruções diárias, os cativos e forros buscaram, muitas vezes. formas peculiares de ‘ascensão’, mediante alforrias, quartações, empréstimos, escritos e outros métodos aptos a simbolizar a identidade”(p. 185).

No capítulo 1, “Justiça e criminal idade” que compõe a parte 111, A outra legislação, é analisada a estrutura ineficiente, morosa e venal do aparelho de justiça, responsável pela criação de novos expedientes, capazes de funcionar como uma legislação paralela, mais imediata e eficaz. Novamente aqui, o autor retoma a tese da multiplicidade dos rearranjos cotidianos. No capítulo 2, “A vontade da distinção” o autor discute a obsessão pela honra e pela distinção numa sociedade fluida, flexível e aluvionista. De que modo a simbologia e a ritualística que no universo estratificado e estamental têm por objetivo conferir visibilidade aos lugares sociais poderiam funcionar aí ? O final do século XVIII foi marcado pela integração dos mulatos aos postos civis e militares, abrindo virtualmente a possibilidade de ascensão das demais camadas sociais, dominadas pelo desejo de distinção. Daí o paradoxo da dinâmica social nas Minas: se a distinção visava marcar os lugares sociais, numa sociedade caracterizada pela instabilidade e pela fluidez, a busca desenfreada pela fidalguia e pelos símbolos estamentários conduzia à indistinção e à banalização de tal simbologia.

Vazado numa linguagem elegante e fluente, o livro de Marco Antonio Silveira revela uma pesquisa documental rica e minuciosa, e aqui e ali afloram casos e histórias interessantes, que, nas mãos do autor, transformam-se em exemplos fulcrais da complexidade da dinâmica social das Minas setecentistas. Atento ao detalhe e ao particular, Silveira os interpreta à luz de suas preocupações teóricas, captando-os no contexto mais amplo do universo colonial.

Talvez seja este olhar voltado ao particular que compromete, em vários momentos, a clareza e o entendimento dos objetivos mais gerais perseguidos pelo autor. Mesmo a introdução, cuja finalidade é introduzir o tema de estudo, falha ao restringir-se a uma discussão metodológica pouco relevante, que bem poderia ser substituída por uma apresentação da natureza das questões a serem desenvolvidas ao longo do livro. Além disso, os capítulos não evidenciam de forma explícita a unidade e a coerência dos temas nele analisados, parecendo muitas vezes pouco amarrados entre si. Fica por explicar a escolha dos temas da escravidão e da justiça para enfocar a natureza da sociedade mineira. Por que estes e não outros ? Por outro lado, alguns pressupostos teóricos não convencem totalmente: refiro-me à tese de que a Coroa portuguesa teria tentado implantar nos trópicos uma sociabilidade marcada pelo refinamento e pela polidez, identificando nela o ideal do bom vassalo. Se é inegável que um topos recorrente na documentação relativa às Minas é precisamente a condenação do mineiro, visto como sinônimo de rebelde e indômito, resta, no entanto, problematizar até que ponto tal topos não se constituiu numa peça de retórica, manipulada pelas autoridades administrativas segundo interesses bastante definidos. Ademais, raramente a estigmatização do mineiro como mau vassalo parece ter uma relação direta com a sua impermeabilidade às normas de civilidade e boas maneiras. Vale indagar até que ponto é legítimo afirmar que fazia parte do projeto político da Coroa portuguesa aplicar o verniz da civilidade nos seus colonos rústicos incrustados nos sertões do Novo Mundo. Que políticas o Estado português implantou na capitania com o objetivo de civilizar seus vassalos?

Cumpre notar que, ainda que o autor esteja atento para o fato de que a troca de favores, o tráfico de influência, o apadrinhamento e mesmo o desvio de dinheiro fossem práticas aceitas e correntes nas sociedades do Antigo Regime, em várias passagens do texto ele parece tender a considerá-las como exemplos de corrupção.

Um outro ponto a ser destacado diz respeito às fontes teóricas do autor. Eclético, ele se inspira em Thompson, Stuart Clark, Carlo Ginzburg, Norbert Elias, Huizinga, Peter Burke, Keith Thomas, entre outros, para pensar os mecanismos de distinção social em Minas. Na verdade, a estrutura teórica do trabalho é mais condizente com uma abordagem cultural do que uma abordagem da mecânica social – à exceção de Thompson e Elias, este último aliás incorporado sem uma crítica consistente de suas posições evolucionistas. E o problema a ser enfrentado é ainda o da dinâmica específica de uma economia mineradora no contexto colonial, pois não se trata aqui de pensar numa resistência concebida como reinvenção e reinterpretação. Cabe notar, além disso, que esta imagem de uma outra sociedade, em tudo diferente à européia, mais sensível ao dinheiro que à honra, foi amplamente manipulada tanto pela Coroa quanto pelas próprias autoridades locais.

Finalmente, podemos indagar se este padrão estamental, civilizador e ordenado, instaurador de uma nova sensibilidade, não teria desencadeado também na Europa da Época moderna as suas próprias reinterpretações, à luz de outros valores culturais, obrigando-nos a relativizar a força do modelo e por consequência a originalidade do mundo construído nas Minas …

Adriana Romeiro – Departamento de História/UFMG.

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[DR]

 

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