Os 100 Livros que mais influenciaram a humanidade: a história do pensamento dos tempos antigos à atualidade | Martin Seymour-Smith

Este livro é um bom exemplo de uma excelente idéia mal executada. Não me refiro a inadequações editoriais meramente, como o Sefiroth impropriamente impresso no comentário acerca dos Anais de Tácito (p. 152), que, suponho, não é um texto cabalístico (o Sefiroth aparece depois novamente, mas em lugar adequado, na p. 206), mas erros do autor na tentativa de executar a idéia proposta pela editora. Não se pode questionar a validade da idéia. Eu mesmo muitas vezes tive a iniciativa de listar os livros mais importantes de alguma área ou sobre algum assunto. Importa, no entanto, avaliar a execução da idéia, e é aí que os problemas começam a surgir.

Seymour-Smith privilegia obras da tradição filosófica, em detrimento de outras áreas como a literatura e as ciências humanas. Seu livro chega às vezes a se parecer com um compêndio de filosofia qualquer, até porque o autor, cometendo um erro grave, “força a barra” e considera, por exemplo, as obras completas de Aristóteles como um único livro, e depois faz o mesmo em relação a Leibniz. Assim, a dificuldade de escolher as cem obras mais influentes se esvazia inteiramente, e caminha-se em direção da escolha dos cem autores mais influentes, o que é outro projeto, bem mais comum e mais fácil, diga-se de passagem.

A grande inadequação na execução do projeto por Seymour-Smith, porém, está na maneira como o autor comenta as obras. Tendo de se limitar a uma média de sete páginas por obra, o autor acaba por enveredar-se em meio a curiosidades biográficas, esquecendo-se de que sua obrigação é explicar o conteúdo das obras selecionadas e o porquê de sua tão grande influência na história do pensamento ocidental, um exercício interessante que raramente ocorre ao bem intencionado comentarista. Para o especialista em qualquer uma das obras citadas por Seymour-Smith (como é meu caso em relação a três ou quatro das obras selecionadas, sem contar as dezenas de obras selecionadas no compêndio as quais li cuidadosamente), o texto passa a ser irritantemente superficial e equivocado. Fica-se com a nítida impressão de que Seymour-Smith está falando de obras que, no máximo, folheou, o que é imperdoável num livro dessa natureza. Se na obra que conheço bem o autor não se mostra confiável no que diz, como poderei confiar no que diz acerca de uma obra que não conheço tão bem? Corre-se o risco até mesmo de se deixar enganar, de desenvolver alguma forma de preconceito, o que faz do livro de Seymour-Smith, mais do que ruim, uma obra perniciosa.

A justificativa básica desta resenha está no fato de Seymour-Smith ter selecionado, entre seus cem livros, várias obras importantes na história das idéias religiosas: o I Ching, o Velho Testamento (faz sentido descrevê-lo como um só livro, quando é, na verdade, uma antologia de textos composta do que de melhor produziu toda uma cultura? E que dizer de tratá-lo pelo seu nome cristão, que é preconceituoso, em vez de chamá-lo de Bíblia Hebraica ou Tanach?), os Upanishads, o Tao-te Ching, o Avesta, o Dhammapada, o Novo Testamento (de novo, um só livro?), entre outros. O autor chega a algumas conclusões peculiares sobre essas obras, e outras, que qualquer estudioso sério da história das idéias religiosas verificará que são de difícil defesa, e provenientes da pena de alguém que não tem familiaridade com o assunto em questão.

Seymour-Smith conta-nos como o texto da Bíblia hebraica chegou até nós, comenta as traduções da Bíblia para a língua inglesa, e não chega nunca a discutir o conteúdo do texto. O mesmo acontece no comentário acerca do Novo Testamento, quando o autor fala de Irineu, de Justino Mártir, de Valentino, de Adolf Von Harnack, mas não discute o conteúdo do texto. O autor, aliás, demonstra ter preconceitos contra o cristianismo, cuja tradição menospreza frontalmente, enquanto busca exaltar outras tradições religiosas. Essa prática tem se tornado bastante comum hoje em dia. Os livros da hoje popular Karen Armstrong cometem a mesma injustiça.

Uma das características mais marcantes dos fracos comentários do autor acerca de obras religiosas está a sua constante referência ao que ele denomina “gnosticismo” ou “tradição gnóstica” que, para Seymour-Smith, é a única coisa decente que a história das idéias religiosas já produziu. Ele parece não perceber que está a dizer uma tolice, seja quando diz que as coisas de que gosta, como a Cabala, são gnósticas, seja quando descarta o Novo Testamento, por exemplo, como desinteressante e primário. Aliás, segundo Seymour-Smith, muito superior ao Novo testamento é o gnóstico Evangelho da verdade, que o autor diz datar do primeiro século da era cristã, o que é improvável, e que ele considera importantíssimo e de enorme influência, apesar de só ter sido recuperado há poucos anos em uma escavação arqueológica. “O evangelho aqui significa apenas boas novas”, diz o autor (ou o tradutor), seja lá o que isso queira dizer, uma vez que a palavra grega evangelion sempre quer dizer “boas novas”. Ao referir-se à Cabala, o autor mostra-se tão entusiasmado que chega a afirmar, irracionalmente, que “a cosmologia contida nos símbolos do sefiroth e no Tzimtzum de Luria antecipa todas as descobertas dos físicos modernos e o que mais há por vir”. Não fica claro como o autor pode ter tanta certeza disso no que se refere ao “que há mais por vir”. Trata-se de um genuíno salto de fé no imponderável.

Quanto aos reformadores, fica difícil escolher que inadequações devem ser ressaltadas. Seymour-Smith nos diz que a obra de Lutero pode ser vista como um “produto de um profundo e neurótico ódio à vida”. Do filho de Calvino aprendemos, erradamente, que morreu no instante do parto e que Calvino “era um homem cruel, buscando o poder temporal, que acabou conseguindo” (p. 256). O autor possui preconceitos claros e curiosos. Várias vezes Seymour-Smith menciona Martin Heidegger (de quem nada selecionou) como um grande enganador (p. 72). Também deixa claro que não há autor mais detestável para ele que João Calvino.

O livro está recheado de enganos. Vejamos algumas das pérolas da obra. Os manuscritos mais antigos da Ilíada e da Odisséia que foram encontrados datam de nada mais nada menos que 1700 anos antes do tempo de Homero (p. 37)! Já Lao-Tsé, que “não é propriamente uma pessoa real”, foi, todavia, “contemporâneo de Confúcio” (p. 52)! Aprendemos também que Confúcio talvez tivesse “aceitado” (sic) o “princípio do categórico imperativo de Kant” (p. 70)! Aprendemos que o que “Platão quis dizer” na República é que o céu na terra é impossível, pois todos teríamos de ser “iluminados”! Aprendemos ainda que Platão faz, na República, “excelentes defesas da poesia e das artes” e também quer “apenas dizer, ao povo o que é melhor para ele”. Só uma conclusão é possível: Seymour-Smith não conhece o texto da República de Platão. Seymour-Smith ainda nos ensina, erradamente, que Orígenes se castrou (o certo seria que se emasculou) e que isso aconteceu não quando era jovem, e sim depois da publicação dos Princípios, e que o pensador tê-lo-ia feito por causa da fúria dos cristãos contra ele devido às suas idéias.

Seymour-Smith sugere que a tradução do I Ching (que o autor sugere que poderia anteceder à própria China, seja lá o que isso queira dizer de concreto), feita por Richard Wilhelm, não é boa (p. 26), e que a tradução da Bíblia hebraica para o grego (ignorando que se trata de dois compêndios distintos e que a definição do cânon do Tanach é posterior à “tradução” em questão) chama-se “Septuagint” (sic), o que é, provavelmente, mais uma das numerosas “contribuições” do tradutor, Fausto Wolff, para com a obra, como acontece também ao traduzir “uncover” por “encobrir”, mudando inteiramente o sentido da frase (p. 91), ou na expressão que traduz o indiano Dhammapada como “versos em dharma” quando o correto, obviamente, seria “dharma em versos” (p. 117). E ainda traduz Wolff que o estudo dos anjos é a “anjologia”, em vez de “angelologia” (p. 195). Wolff ainda nos diz que Copérnico foi perseguido por ser um “tradutor” (em vez de “traidor”) da Bíblia (p. 262). A versão em português do título latino da obra-prima de Isaac Newton é, segundo Wolff, Princípios matemáticos da filosofia a natural (p. 350), o que pode ser uma insinuação de que Newton escrevia nu. Wolff também se arrisca a traduzir os versos de Alexander Pope sobre Newton, citados por Seymour Smith: Nature and Nature’s Laws lay hid in Night;/God Said: Let Newton be! And all was Light! Eis a versão de Wolff: A natureza e suas leis estavam escondidas pela noite;/Deus disse: Não importunem Newton! E tudo se fez luz! (p. 352).

Na página 223, antes de o autor nos dizer, erradamente, que Dante e o partido a que pertencia apoiavam o papado (confira o discurso de São Pedro a Dante no oitavo círculo do Paraíso, condenando o Papa como um embusteiro), encontramos as duas primeiras estrofes da Divina comédia de Dante traduzidos por Ítalo Eugênio Mauro de forma dantesca, uma violência tão horripilante que certamente os lançaria a ambos, Mauro e Wolff, no sétimo círculo do Inferno. Recuso-me a fazer a reprodução completa aqui da monstruosidade, mas, para o bem da crítica, aqui vai a primeira estrofe: A meio caminhar de nossa vida / me encontrar em uma selva escura / estava a reta minha vida perdida (sic).

O que mais me espantou foi ver que revistas e jornais brasileiros conceituados, como as revistas Veja e Super Interessante e o jornal Folha de S. Paulo, publicaram resenhas elogiosas do livro, sem fazer as observações que aqui fiz, recomendando o livro entusiasticamente. Não sei se isso acontece por causa de ignorância ou de dinheiro, ou se há alguma outra explicação qualquer, mas é, de qualquer forma, um lamentável desserviço à cultura.


Resenhista

Ricardo Quadros Gouvêa – Doutor em Estudos Históricos e Teológicos pelo Westminster Theological Seminary. Doutorando em Filosofia na Universidade de São Paulo. Professor no Programa de Mestrado em Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie.


Referências desta Resenha

SEYMOUR-SMITH, Martin. Os 100 Livros que mais influenciaram a humanidade: a história do pensamento dos tempos antigos à atualidade. Trad. Fausto Wolff do original em inglês The 100 most influential books ever written (1998). Rio de Janeiro: Difel; Bertrand Brasil, 2002. Resenha de: GOUVÊA, Ricardo Quadros. Ciências da Religião – História e Sociedade. São Paulo, v.1, n.1, p. 184-189, 2003. Acessar publicação original [DR]

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