Os dentes falsos de George Washington: um guia não convencional para o século XVIII | Robert Darnton

Na verdade, tudo o que se refere ao século XVIII é estranho, quando examinado em detalhe (DARNTON, 2005: 8).

Para Robert Darnton, o século XVIII é bem mais estranho do que imaginamos corriqueiramente. Seus personagens, e suas formas de agir e pensar, conforme argumenta, nos fariam ter uma sensação de estranhamento abissal. Após publicar um grande número de livros sobre o século XVIII, em parte já traduzidos no Brasil, como: Boemia literária e revolução (1987), O lado oculto da revolução (1988), O grande massacre de gatos e outros ensaios (1988), O beijo de Lamourette (1990), Edição e sedição (1992), O Iluminismo como negócio (1996), Os best-sellers proibidos da França pré-revolucionária (1998) e Democracia (2001), o autor apresenta um guia, segundo ele nada convencional, para se entender o século XVIII, ou melhor, parte dele e de seus temas.

Neste livro, Os dentes falsos de George Washington (2005), em suas palavras, procurou oferecer um guia “para o século XVIII, não para todo esse período (o que exigiria um tratado em vários volumes), mas para alguns de seus recantos mais curiosos e singulares, e também para seu tema mais importante, o processo do Iluminismo” (DARNTON, 2005: 9). Para tanto, o autor expos relatos de campo, de parte de suas pesquisas, embora não dando um mapa completo do século XVIII, mas se concentrando em alguns de seus temas, como: “conexões franco-americanas, a vida na República das Letras, modos de comunicação e, por fim, formas de pensamento peculiares ao Iluminismo francês” (DARNTON, 2005: 10). Neste percurso sua tese “não é de que o século XVIII era estranho em si mesmo […] mas de que é, sim, estranho para nós”, em função das profundas transformações históricas que se deram do passado ao presente e, nesse sentido, preocupou-se em “abrir linhas de comunicação com o século XVIII e, ao segui-las até suas origens, compreender o século ‘como ele realmente era’, em toda a sua estranheza” (DARNTON, 2005: 14).

Com base em personagens e episódios célebres do século XVIII, Europeu e Americano, destacando-se as figuras de George Washington, Rousseau, Brissot, Voltaire, Condorcet e Jefferson, o autor descortina a ideia de ‘grandes vultos’, ao dar ênfase as situações do cotidiano que passaram cada um deles. Das dores de dente de Washington e do profissional, conhecido a distância, que eram os cirurgiões dentistas, das dívidas bancárias, especulações na bolsa de valores e o sentimento mesquinho de Brissot, aos ideais de busca da felicidade destacados por Voltaire e Jefferson, e ao entusiasmo pelo progresso na América destacados por Condorcet, o leitor terá uma ótima oportunidade para visualizar as condições, em que aqueles homens aparecem em ‘carne e osso’, com suas virtudes e com seus problemas. Há que se notar ainda, que mediando em todas, ou quase todas, essas situações as conexões entre o pensamento francês e norte americano, o autor ainda capta como aquelas sociedades se utilizavam dos meios de comunicação, não apenas para adquirir informações, mas ainda para conformarem um circuito de ‘fofocas’ e ‘suposições’, por meio de cartas e panfletos (na maioria dos casos anônimos), sobre a ‘sociedade de corte’ e a ‘monarquia francesa’, em especial, os reis e rainhas em suas relações afetivas.

Com isso, o autor faz uso de um repertório de fontes, de origem variada, mas basicamente produzidas pelas ‘camadas subalternas’. Entre elas: livros clandestinos, canções populares, cartas, memórias apócrifas de relatórios de polícia, panfletos anônimos, estatíticas de compra e venda de livros, além das obras dos autores apontados acima – mas que apareceram apenas circunstancialmente no decorrer de sua exposição.

Acompanhar essa variedade de fontes e compor uma interpretação coerente sobre elas, como o autor destacará no último ensaio do livro, ao demonstrar os vários olhares que foi construindo sobre Brissot, em mais de trinta anos de pesquisas, permite que se visualize as dificuldade, inconvenientes e dilemas que a pesquisa histórica vai produzindo em sua execução – lenta e, quase sempre, artesanal. Por isso, não sem razão, em muitos pontos, o autor se questiona sobre:

O que estou fazendo? O que todo historiador faz: brincando de ser Deus. […] O historiador certamente cria vida. Ele insufla vida no barro que escava dos arquivos. Também julga os mortos. Não pode fazer de outro modo. […] O historiador sabe, mas imperfeitamente, por meio de documentos obscuros, e com a ajuda da insolência, brincando de ser Deus [o que só Ele sabe, ressaltará ironicamente sobre o ofício] (DARNTON, 2005: 199-200).

Não será por acaso também, que volte sua atenção para as transformações da ‘escrita da história’ no século XX, descartando, em parte, o formalismo, e fazendo uso do ‘eu’ na exposição dos dados. E revendo críticas que, segundo ele, são frágeis e ineficazes para descaracterizar a propriedade e a importância da pesquisa história, produzidas, a partir da década de 1960, pelo ‘estruturalismo’, pelo ‘pós-estruturalismo’ e pela ‘virada linguística’.

Apesar da diversidade de temas abordados pelo autor, visando a enfatizar as situações cotidianas de personagens ilustres e as atitudes das ‘camadas subalternas’, no que diz respeito aos atos da Monarquia e aos seus soberanos, há um destaque especial sobre o pensamento do século XVIII. Sobre esse ponto, além de efetuar uma reavaliação consistente sobre o Iluminismo francês, no que se refere aos modos como o termo foi utilizado, também demonstra a herança deste pensamento para a sociedade contemporânea e seus limites. Para ele, ao passar a ser tudo, o ‘Iluminismo’ perde a sua operacionalidade contextual e conceitual, e passa a ser nada. Com isso, o autor se volta para uma ‘deflação’, tomando o Iluminismo como um movimento datado e localizado espacialmente.

Comum aos seus anseios, os filósofos do movimento, tinham um compromisso por uma causa. Por esse motivo, “formavam também uma elite”, que a “despeito das tendências de nivelamento inerentes a sua fé na razão, eles almejavam alcançar as posições de comando da cultura e iluminar de cima para baixo” (DARNTON, 2005: 19). Foi, principalmente, na Europa do século XVIII que o movimento ganhou forma e repercutiu para outras áreas e locais. De início, não há como negar, que esteve confinado a um grupo restrito e localizado, só passando a ter maior divulgação após os eventos de 1789. Mas:

Qualquer que seja nosso êxito na redução do Iluminismo a suas verdadeiras dimensões como fenômeno do século XVIII, não podemos negar que ele produziu uma série de valores que permaneceram vivos ao longo dos séculos seguintes e que separaram algumas sociedades das outras. […] Como a maioria das fronteiras, ela provocou conflitos (DARNTON, 2005: 25-6).

Em função destes desdobramentos, o Iluminismo recebeu várias críticas no século XX, em especial, após os anos de 1960, quando ganhou maior envergadura o movimento ‘pós-modernista’. Dentre elas se destacam: “1. A pretenção do Iluminismo à universalidade [que] serviu na verdade como uma máscara para a hegemonia ocidental”; “2. […] era imperialismo cultural sob o disfarce de uma forma mais elevada de racionalidade”; “3. […] buscava o conhecimento tão fanaticamente que solapava a ética”; “4. […] tinha uma excessiva fé na razão”; “5. […] está nas origens do totalitarismo”; “6. […] é obsoleto e inadequado como perspectiva para lidar com problemas contemporâneos”. Contudo, alerta o autor, além de não elaborar alternativas consistentes, as críticas produzidas pelos ‘pós-modernos’ acaba também descartando todos os avanços e a herança ainda profícua do Iluminismo, para as sociedades contemporâneas.

Nesse sentido, descartando interpretações apressadas, sem embasamentos em ‘fontes primárias’, o autor, em cuidadosa e longa pesquisa, nos apresenta um século XVIII consideravelmente distante e estranho, mas nem por isso sem conexões com as sociedades contemporâneas. Muito pelo contrário, justamente pelas aproximações que fazemos corriqueiramente com aquele período, acabamos por desperceber os distanciamentos inevitáveis e profundos que há entre o presente e o passado. Sobre esse aspecto, o guia apresentado pelo autor “não poderia ser melhor”, até por demarcar as sutilezas e as mudanças de perspectiva entre o Iluminismo, e as suas interpretações e alcance após a Revolução Francesa. Por outro lado, também nos conduz para uma interpretação mais balizada sobre o período, definindo os contornos e os limites do pensamento do século XVIII. Mesmo considerando as mudanças sutis por que passou o próprio estilo do autor ao longo desta trajetória, principalmente em seus procedimentos de análise e suas aproximações com a Antropologia (em especial, a abordagem de C. Geertz), em função das críticas que recebeu sobre o uso da ‘descrição densa’ para a análise de personagens que viveram no passado, dos quais não há como ter um contato direto, mas apenas mediado indiretamente pelas fontes, não deixa de ser nítida as conexões destes ensaios com seus livros anteriores. Não há também como deixar de lado, que essa alteração metodológica foi sutil, e sem efetuar uma ruptura completa com os intrumentos vindos da Antropologia, aos quais o autor continua vendo sua contribuição original para os estudos históricos. Portanto, além de ser um guia para o século XVIII, este livro também é um exemplo de pesquisa histórica e rigor metodológico, amadurecido ao longo dos anos, e cujos procedimentos sempre estão articulados a análise de uma ‘massa documental’ ampla, variada e consistente – como o leitor poderá perceber facilmente entre os ensaios, principalmente, no segundo que é uma verdadeira aula de como se faz pesquisa nos arquivos, se inquire as fontes e delas se levanta hipótese e conclusões.


Resenhista

Diogo da Silva Roiz – Doutorando em História – UFPR, bolsista do CNPq Professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Campus de Amambai.


Referências desta Resenha

DARNTON, R. Os dentes falsos de George Washington: um guia não convencional para o século XVIII. Trad. José Geraldo Couto. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v. 3, n. 6, jul./dez. 2009. Acessar publicação original [DR]

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