Paulistas e Emboabas no coração das Minas. Idéias, práticas e imaginário político no século XVIII | Adriana Romeiro

Em instigante artigo, António Manuel Hespanha rebate e discorre sobre algumas críticas desferidas ao emprego conceitual de “Antigo Regime” na historiografia luso-brasileira, e apresenta a proposta de substituição dos debates de uma referência geográfica, a separação oceânica e cultural entre colônias e metrópole, por uma questão essencialmente política: “Antigo Regime e Regime Colonial podem coexistir?”2 . Ao propor esta reflexão, o historiador do Direito explicita o cerne dos debates travados entre os pesquisadores que confrontam estes dois “modelos explicativos”. Não devemos avaliar uma realidade histórica problematizando-a unicamente como atrelada a um sistema de acúmulo de riquezas em centros hegemônicos, transferindo recursos para setores decadentes e parasitários. Tampouco, sujeitar e vincular as trajetórias coloniais a uma subordinação e perpetuação do domínio metropolitano. Assim como não podemos privilegiar as economias vinculadas ao mercado externo em detrimento das que não tangenciaram esta órbita. Todavia, não podemos pensar em um estatuto político equitativo entre os colonizados e colonizadores; concebendo um arquétipo sócio-cultural e simbólico característico do Antigo Regime compartilhado pelos indivíduos neste inseridos. Valer-se de uma tática de submissão, amor e serviço incondicional ao rei como um instrumento analítico, reduz o campo de reflexões e possibilidades históricas. Outrossim, tais aspectos se relacionavam a uma lógica e etiqueta empregada para o peticionar, constituindo um artifício retórico acionado para cunhar representações sociais. Neste sentido, refletimos que estes aspectos analíticos não podem prescindir e antever aos fatos empíricos. Tais pressupostos teóricos não devem ser impostos aos procedimentos e produtos do fabrico histórico, uma vez que sua aplicabilidade, tenacidade e essência devem estar em consonância e comunhão.

Estes questionamentos que traçamos são os principais problemas que desfilam aos olhos do historiador na análise do passado colonial. Adriana Romeiro, ao estudar os paulistas e os forasteiros nos desentendimentos que promoveram o conflito denominado de “Guerra dos Emboabas”, ilumina algumas destas questões teóricas que sinalizamos, problematizando sua aplicação na pesquisa documental. A obra é fruto de longos anos de pesquisa acerca da conquista territorial e formação do aparato político-administrativo nas Minas. O texto representa parte de seu robusto estudo pós-doutoral desenvolvido na Universidade de São Paulo, sob a supervisão de Laura de Melo e Souza. Uma parte considerável do trabalho, que avalia as redes de poder do potentado Manuel Nunes Viana, foi extirpada para atender os ditames do mercado editorial.

Adriana Romeiro desnudou o levante dos forasteiros contra os paulistas de interpretações que enfocaram os nexos entre o passado colonial e a história nacional e de uma abordagem atrelada a um caráter essencialmente local. O contexto regional e a história de um evento são inseridos e conectados às dinâmicas políticas dos domínios lusitanos. A historiadora venceu os obstáculos da escassez documental, restaurando as redes e as esferas de atuação dos poderes locais, perscrutando com grande desenvoltura as tessituras imperiais. Os meandros da conformação do poder nos domínios lusitanos são descolados de um enfoque estritamente conceitual, com o objetivo de caracterizá-los pela trajetória de sujeitos, ou seja, de personagens que nestes nichos governaram e viveram. Em sua interpretação, a instalação do aparato político e institucional é solapada pelos poderes e potentados locais.

A interpretação destes processos de conquistas nos sertão do ouro nos fornece importantes subsídios para avaliarmos a aplicabilidade da existência de uma “economia política de privilégios” e de uma relação clientelar pautada na “lógica moral do dom”. Segundo Adriana Romeiro, em fins do século XVII, a “legenda negra” dos homens de São Paulo enraizou-se no imaginário das populações da América Portuguesa3. Para a pesquisadora, se em um primeiro momento a legenda negra enfatizou o “caráter bárbaro e herético” dos paulistas, passaram a enfocar a natureza política destes homens, que se tornaram avessos e livres das normas políticas do Antigo Regime. Urgiu um ímpeto autonomista paulista essencialmente atrelado ao pagamento de tributos em troca do domínio das terras. Desta maneira, as relações entre rei e súditos paulistas foram apartadas do contexto político considerado comum ao sistema corporativo de poder.

Os processos de negociação entre paulistas e a Coroa possuem tom acintoso e caráter explícito de venda de seus préstimos. Estas negociatas se configuraram dissociadas dos valores do Antigo Regime, desprovida dos eufemismos típicos de sua etiqueta, adquirindo sentido em uma relação entre pólos iguais. Para os sertanistas paulistas, a retribuição por seus serviços era pensada como uma obrigatoriedade, possuindo caráter essencialmente contratualista. Contudo, os paulistas acumularam, em fins do século XVII, um histórico de inúmeros malogros em suas negociações. Dentre estes insucessos, podemos enumerar o não cumprimento dos contratos para as investidas contra Palmares e nas guerras do Açú. Segundo Adriana Romeiro, estes eventos representavam sinais da ingratidão régia, impregnando na memória dos paulistas forte ressentimento. Os paulistas somente se manifestaram acerca dos descobertos do ouro após inúmeras negociações com a Coroa, que configuraram recuos e avanços de ambas as partes. O monarca não atendeu as requisições dos paulistas, embora estes exigissem monopólio na concessão de postos e cargos, visto que pelo direito de conquista eram os descobridores das minas.

Neste sentido, por detrás das rusgas que envolveram o episódio da não devolução da espingarda tomada por empréstimo de um paulista, Jerônimo Pedroso, a um forasteiro, envolveu-se o imbricar de diferentes concepções de conquista, territórios de mando, ressentimentos e cobiça. Na abordagem de Romeiro depreendemos o redimensionamento do direito de conquista, que enquanto imaginário e prática política figurou amplamente na tradição institucional portuguesa, transformou-se em elemento determinante nas relações políticas dos esquemas locais. A noção de direito de conquista nos conflitos da formação das Minas prescindiu de uma temporalidade específica, dividida entre os que primeiramente aportaram na região descobrindo-a e conquistando-a ao gentio, aos adventícios e forasteiros. A historiadora emprega o conceito de um direito costumeiro que solapa os ditames da política imperial na dinâmica dos conflitos entre os primeiros exploradores. Avalia o corolário de insurgências vividas pelos paulistas, no século XVI, contra a escassez no abastecimento de gêneros e gestão dos poderes locais.

O domínio dos forasteiros no comércio e contratos de carnes constituiu um importante elemento na determinação dos conflitos nos arraiais mineradores, mas não representava o motivo principal. Conforme explicita Romeiro, a guerra dos emboabas encontrou o seu desfecho no campo das representações políticas e não nas batalhas armadas. Os emboabas empregaram o mito do nomadismo e rebeldia paulista vangloriando-se da capacidade de melhor colonizarem as Minas. No discurso dos forasteiros o paulista era o mau vassalo, contrário às políticas da Coroa. Neste sentido, a rebelião emboaba adquiriu legitimidade. A sublevação comungava com o corolário de idéias da Segunda Escolástica, uma revolta empreendida contra o mau governo, contra o poder tirânico; os paulistas seriam considerados anti-lusitanos. Os forasteiros deslocaram seu conflito para o campo ideológico, exibindo capacidade de se locomover entre valores e concepções políticas que presidiam as relações entre vassalos e rei, portanto, privilegiaram o conceito de fidelidade ao monarca. A obra empreendida pelos emboabas adquiriu significado de uma “restauração”, “pacificação das minas”.

Na exposição dos argumentos e na concatenação do aporte documental, evidenciamos que os arrogos de conquista insuflaram os ânimos dos exploradores do ouro, controvertendo as propaladas teorias corporativas de poder. Nesta publicação de Romeiro decantamos uma concepção de Império pautada não somente na idéia de um pacto político, que constituiu o principal elemento dos códigos jurídicos da Monarquia e dos discursos das autoridades ultramarinas, mas na urdidura da realidade colonial, na qual os homens coloniais delinearam suas estratégias de ação em consonância com diferentes determinações sócio-econômicas, tradições e práticas políticas. A interface das abordagens teóricas da história política e da história cultural promove o desvencilhar de uma análise anacrônica, de um apego a fonte documental e ao evento, porque a pesquisadora situa seu objeto no campo das tradições político-culturais. Os acontecimentos do levante concernido entre os anos de 1708 e 1709, situados em uma curta duração, articulam-se com elementos de longa duração, tais como: as vivências dos paulistas nas suas Vilas, povoações e sertões; a tradição de motins contra os governos mal geridos localmente; os ataques de guerrilhas nas conquistas de índios bravios e ataques a quilombolas; as tradições da restauração portuguesa; cultura popular e as práticas arraigadas na fonte política e jurídica da monarquia ibérica, como as redes de clientela e concepção orgânica do império. Romeiro emprega em suas análises o conceito operatório de imaginário. A contribuição fundamental desta obra para a historiografia não consiste no emprego desta categoria, mas nas diferentes apropriações e recepções efetuadas pelos sujeitos históricos em suas trajetórias. A historiadora efetua neste estudo uma abordagem cultural de um campo político, portanto, traça uma interpretação pioneira4.

Na presente obra, Adriana Romeiro sinaliza que a tradição da conquista ibérica foi redimensionada pelas forças concêntricas que se conformaram no devassar do território mineiro. A dinâmica e conceitualização da conquista colonial não seriam determinadas pelas relações verticais entre metrópole e suas possessões, mas por forças e rearranjos locais de poder. As experiências colonizadoras e as tradições político-culturais foram ressignificadas pelas conjunturas dos processos de conquista. Para a pesquisadora, as “ideias e práticas políticas situavam-se na encruzilhada de múltiplas heranças culturais, que estavam longe de se esgotar nas concepções de Antigo Regime português”5. Concluímos com a análise exposta, que o protótipo esboçado para as relações políticas e sociais do Antigo Regime, não se aplicou ao universo paulista. Da mesma maneira, observamos que este constructo político e jurídico foi evocado e articulado pelos colonizadores no empreendimento de seus intentos; como procederam os emboabas que se reputaram fiéis súditos do rei. As concepções e práticas políticas na América Portuguesa foram estruturadas e desenroladas em um cotidiano sertanejo, no qual confluiu uma babel de indígenas e escravos africanos, hordas de migrantes, comboieiros e comerciantes de todas as origens. A obra analisada nos instiga a desvendar os interesses dos colonos no emprego ou no olvidar do corolário das preceptivas retóricas do Antigo Regime, a fim de subsidiar a elaboração de um discurso eivado de arrogos de conquista. A historiadora desvenda os propalados discursos de conquistadores e suas relações no esquadro dos poderes locais. Deste modo, sua interpretação não atribui à trajetória vital dos sujeitos históricos uma ânsia para angariar benesses e privilégios através das conquistas em nome do rei. Adriana Romeiro configurou uma inovadora abordagem dos modos de governo e tessituras do Império português, avaliando os contextos socioeconômicos, horizontes simbólicos e práticas políticas dos homens que formavam o “Leviatã”.

Notas

2 HESPANHA, António Manuel. “Depois do Leviathan”, Almanak Brasiliense, nº. 5, maio de 2007, p. 64.

3 Esta construção foi elaborada pelas críticas dos jesuítas espanhóis, que associaram os homens do planalto à selvageria, barbárie, próximos do “universo gentílico”, indígena, do qual conviviam e extraiam trabalho e sustento, portanto, avessos à ordem e a civilização. Difundiu-se a representação dos paulistas como apóstatas do Rei, podendo desvencilhar-se deste a qualquer momento, não lhe prestando obediência e sujeição. Imputou-se a Vila de São Paulo a imagem da povoação protestante francesa de Rochela, ou seja, terra não circunscrita no controle da coroa, governada de maneira independente pelos seus moradores. ROMEIRO, Adriana. Paulistas e Emboabas no coração das Minas: Idéias, práticas e imaginário político no século XVIII, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2008.

4 A abordagem metodológica de aproximação da história política e cultural constitui uma característica fundamental da produção intelectual da autora, que em seus estudos doutorais sinalizou as particularidades do campo político do Império Português, permeado por diferentes tradições religiosas, políticas e influenciado por aspectos sócio-econômicos. Conferir, ROMEIRO, Adriana. Um visionário na corte de D. João V: revolta e milenarismo nas Minas Gerais, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2001.

5 ROMEIRO, Adriana. Paulistas e Emboabas no coração das Minas: Idéias, práticas e imaginário político no século XVIII, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2008, p. 316.

Referências

HESPANHA, António Manuel. “Depois do Leviathan”, Almanak Brasiliense, nº. 5, maio de 2007, p. 64.

ROMEIRO, Adriana. Um visionário na corte de D. João V: revolta e milenarismo nas Minas Gerais, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2001.


Resenhista

Adriano Toledo Paiva – Professor Substituto do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutorando em História pela PPGHIS/UFMG e Bolsista FAPEMIG e do ICAM. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

ROMEIRO, Adriana. Paulistas e Emboabas no coração das Minas. Idéias, práticas e imaginário político no século XVIII. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. Resenha de: PAIVA, Adriano Toledo. Imaginários políticos nas Minas Revista Ultramares. Maceió, n.1, v.1, p. 222- 227, Jan./Jul. 2012. Acessar publicação original [DR]

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