Vila Rica em sátiras: produção e circulação de pasquins em Minas Gerais, 1732 – ROMEIRO (RBH)

O trabalho de interpretação documental é sempre um desafio para historiadores competentes, ainda mais quando envolve formas textuais e mídias peculiares. Adriana Romeiro está entre os mais talentosos pesquisadores dedicados à cultura política no Brasil da Época Moderna, com grande potencial de argumentação associado a uma bela escrita. Nesse livro que conta com a colaboração valorosa de Tiago C. P. dos Reis Miranda, a historiadora se lança ao estudo de peças de perfil satírico produzidas sobre o governo de Lourenço de Almeida na capitania de Minas Gerais, de 1721 a 1732. Leia Mais

Corrupção e poder Uma história, séculos XVI a XVIII – ROMEIRO (RH-USP)

ROMEIRO, Adriana. Corrupção e poder. Uma história, séculos XVI a XVIII. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. 397p. Resenha de: SILVEIRA, Marco Antonio. Corromper repúblicas, espoliar conquistas. Revista de História (São Paulo) n.176 São Paulo  2017.

Instigante e enriquecedor é o livro que Adriana Romeiro acaba de apresentar aos leitores sob o nome de Corrupção e poder. Uma história, séculos XVI a XVIII. O atual momento vivido pelo Brasil – em que a investigação de práticas corruptas articula-se ora a iniciativas bem recebidas por quem deseja aprofundar a democracia no país, ora a objetivos políticos nada nobres, que põem em evidência a instrumentalização antidemocrática dos poderes da República, inclusive do Judiciário – pode nos levar a crer que a autora aproveitou a oportunidade. Tal avaliação, contudo, mostra-se equivocada quando o referido trabalho é inserido no conjunto mais amplo que constitui suas reflexões, especialmente aquelas expressas em livros anteriores. Uma vez que Adriana Romeiro sempre se preocupou em entender a dinâmica da administração portuguesa tanto em ambiente de corte quanto no cotidiano turbulento da região que se transformaria na capitania de Minas Gerais, o estudo das práticas ilícitas das autoridades régias nas extensas áreas do império luso apresenta-se como um desdobramento esperado, tratado pela autora com o cuidado devido.

É possível que o título – que destaca termos chamativos para um público mais amplo, secundarizando a informação sobre seu recorte histórico – tenha resultado de sugestão editorial. Porém, ainda assim cumpre bem o papel de explicitar logo de início duas questões historiográficas relevantes. A primeira, infelizmente apenas referida pela autora em nota, diz respeito ao uso da palavra Brasil no lugar de América portuguesa, termo hoje mais amplamente aceito pela historiografia por supostamente escapar ao anacronismo. Em certa medida, esta última expressão ganhou crédito quando contraposta ao uso bastante corrente há algumas décadas de Brasil colônia, composição vocabular de potencial teleológico por sugerir que a colônia era o Brasil em formação. No entanto, América portuguesa não é ter mo desprovido de problemas teóricos e metodológicos. É curioso observar que seu prestígio consolidou-se justamente na ocasião em que os historia dores passaram a perguntar-se incessantemente se as áreas coloniais não eram versões específicas do Antigo Regime. Apesar das preocupações com o anacronismo, certo etnocentrismo permanece: seria adequado supor que os historiadores denominam a América portuguesa como tal porque, apesar dos avanços, ainda pouco conhecem da variedade e da complexidade das sociedades indígenas e africanas? Ademais, como lembra Romeiro, a expres são é pouco encontrada na documentação de época, na qual se encontram comumente os nomes Brasil e Brasis.

A segunda questão, tratada amplamente na primeira parte do livro – intitulada “A corrupção na história: conceitos e desafios metodológicos” – refere-se à adequação do uso do conceito de corrupção para o período que cobre os séculos XVI a XVIII. A resposta da autora é afirmativa, mas segue acompanhada da ressalva de que a palavra tinha um sentido diferente do atual. Em linhas gerais, podemos dizer que Adriana Romeiro, com base na análise da literatura teológico-política típica do Portugal da época – cujos elementos aparecem constantemente nos documentos oficiais – é bem-su cedida ao esclarecer uma diferença histórica crucial: enquanto no mundo contemporâneo a corrupção é identificada a práticas desviantes contrárias à distinção liberal entre o público e o privado, nas sociedades de Antigo Re gime, em que as relações pessoais atravessavam todas as estruturas sociais, inclusive as administrativas, o que se corrompia através de delitos e ações ilícitas era o corpo místico da res publica.

Alguns colegas de ofício talvez não se satisfaçam com a explicação fornecida, argumentando que sua força seria, na verdade, sua fraqueza. Ora, se nas sociedades modernas não havia distinção clara entre público e privado, a apropriação particular de bens e postos administrativos constituiria parte da própria natureza das relações sociais. Romeiro em nenhum momento descarta essa dimensão – o que não significa, porém, ceder ao argumento simplista de que a corrupção não podia ser concebida na época. Se era difícil distinguir o público do privado, isto ocorria justamente porque havia alguma noção dos limites que circunscreviam ambas as esferas. Para a autora, a tendência da historiografia atual de esvaziar o conceito de Estado, de sobrevalorizar a política de mercês e de compreender a dinâmica administrativa como imersa em redes dispersas, quando levada ao extremo, apaga o caráter fundamentalmente ambíguo, conflituoso e contraditório de fenômenos diversos.

Não é despropositado dizer que, hoje, alguns historiadores, em vez de se perguntarem sobre as contradições e especificidades do Estado moderno, preferem negar sua existência; em vez de questionarem como os agentes lidavam com as ambiguidades deixadas pelas doutrinas escolásticas, consideram mais adequado ignorá-las. Adriana Romeiro não adota essa saída, tão fácil quanto incoerente. Reconhecendo que atitudes ilícitas eram implicitamente aceitas quando adotadas por governadores e vice -reis – seu principal alvo de análise -, propõe-se também a mostrar que a Coroa soube rejeitar e punir excessos tidos como atentatórios em rela ção aos interesses régios. E se a utilização de regimentos, ordens régias, devassas, residências e outros instrumentos oficiais e mais padronizados nem sempre gerava resultados constrangedores, podendo ser instrumentalizados nos diversos níveis de poder – até mesmo pela própria Coroa -, a aplicação do ostracismo como forma de punir autoridades mais escandalosas produzia efeitos tangíveis. Uma investigação sem resultados com prometedores pouco valia se, de volta ao reino, o governador ou vice-rei recebesse a notícia de que não seria recebido pelo monarca no beija-mão. Residências recheadas de elogios, muitas vezes obtidas à custa da manipulação de quem testemunhava, nem sempre impediam que nobres se vis sem afastados do serviço régio e da possibilidade de obter graças e mercês.

Ao avançar por essas questões no segundo capítulo – “A tirania da distância e o governo das conquistas” -, a autora não perde de vista um proble ma de fundo, explicitamente formulado e abordado na parte anterior: as deficiências de análises que procuram explicar os impérios modernos segundo a ideia de negociação. Mencionemos, antes de tudo, que Adriana Romeiro recorre à ampla bibliografia concernente ao Império espanhol porque não encontra reflexão consolidada sobre a corrupção no período tratado entre historiadores luso-brasileiros. A explicação para tal defasagem parece-lhe achar-se, pelo menos em parte, na predominância de determinadas perspectivas analíticas, como mencionado acima. À medida que vai discutindo o tema em relação ao Império português, em que constata a ocorrência de práticas ilícitas generalizadas, ratifica o argumento de que o enfoque centra do na ideia de negociação afasta da abordagem historiográfica o problema da dominação política, e isto em prol de uma visão excessivamente con ensual. Mais ainda, um dos pontos altos do livro encontra-se na afirmação de que tal perspectiva privilegia em demasia as articulações e os acordos travados pelas elites nos diversos níveis de poder – entre o centro e as periferias, portanto -, secundarizando outros grupos sociais que constituíam tanto o universo ibérico quanto o colonial. Uma crítica desse tipo não pode passar despercebida para os que se acostumaram a ouvir que o viés outrora predominante na historiografia brasileira era “circulacionista”, desprezando, como tal, as estruturas produtivas e as formações sociais específicas às sociedades coloniais. O olhar arguto da autora, assim, nos faz pensar que talvez um novo “circulacionismo” tenha surgido: aquele que procura expli car a colonização recorrendo a redes de trocas, negociações e mercês que articulariam, embora de modo menos sistematizado, o centro e as periferias – redes entendidas agora como marcadamente pessoais e familiares. E, para falar com palavras antigas, eis que um suposto determinismo infraestrutural é substituído por outro, de caráter superestrutural.

Adriana Romeiro, porém, ao referir-se constantemente a periferias, não perde de vista o problema intrincado da exploração colonial. Outro aspecto decisivo do livro consiste no fato de recuperar a noção de spoils system, outrora proposta por Charles R. Boxer, e inseri-la num quadro em que a riqueza produzida pelo trabalho compulsório é duramente disputada por colonos e administradores. Observações irritadas e moralizadoras sobre esse ponto aparecem em personagens de épocas diferentes, como, nos séculos XVI e XVII, Diogo do Couto, autor do Soldado prático; o anônimo que escreveu Primor e honra da vida soldadesca; Francisco Rodrigues Silveira, de Reformação da milícia e governo do estado da Índia oriental; o jesuíta Manuel da Costa, de Arte de furtar; o famoso padre Antônio Vieira; e, já na segunda metade do XVIII, Tomás Antônio Gonzaga, com suas Cartas chilenas. Nas páginas em que Romeiro descreve as opiniões desses autores vão emergindo diversas tópicas, dentre as quais se destacam a da cobiça desenfreada, a da distância que facilita o roubo, a do governador-esponja que suga os pobres e os colonos, e a da temível decadência.

Esta última, comumente amparada em referências feitas a Roma antiga, alerta que os desvios, em última análise, corrompem a República e arruínam o Estado – e aqui o leitor sente falta de um olhar que, observando certas nuanças da literatura neoescolástica, diferencie ambos os termos, república e estado, atinentes, respectivamente, ao governo e à dominação, à prudência propriamente dita e à prudência política. A despeito disso, o esquadrinha mento das tópicas realizado por Romeiro diz muito sobre a colonização. Para ficarmos em apenas um exemplo, a recorrente menção ao tema da distância parece implicar um modo particular de conceber, durante a época moderna, as relações entre centro e periferias. Quando aparece associada à concepção cíclica do tempo – aquela que explica o vínculo entre corrupção e decadência – surgem as condições para que os historiadores vejam criticamente seus próprios modelos explicativos. O autor de Primor e honra explica: “República é corpo místico, e as suas colônias e conquistas membros dela; e assim se devem ajudar reservando e reparando suas fortunas e conveniências” (p. 170). Mas é da subversão dessa noção de império que falam todas as tópicas; do medo de que a cobiça sem controle, especialmente na distância das periferias, esgote as conquistas e extinga as formas pelas quais a decadência do Estado e do Império pode ser evitada.

Ao iniciar seu terceiro capítulo – “Ladrão, régulo e tirano: queixas contra governadores ultramarinos, entre os séculos XVI e XVIII” -, a autora vai estabelecendo firmemente a hipótese de que a exploração colonial não se dava apenas através dos circuitos mercantis oficiais, até porque o contrabando era estrutural e contava com a participação ativa de autoridades, produtores e negociantes de todas as partes do Atlântico, interna e externamente. A saraivada de casos descritos por Romeiro não somente indica como as tópicas literárias eram apropriadas nos embates travados nas várias partes do Brasil – a região colonial que, desde a segunda metade dos Seiscentos, havia desbancado a Índia como foco privilegiado de queixas -, como também aponta para o vínculo existente entre, de um lado, a captação lícita e ilícita de recursos coloniais efetuada pela nobreza governante e, de outro, os objetivos relacionados à constituição, ao desempenho ou ao engrandecimento de suas casas. A documentação trazida pela autora se refere a uma das facetas pelas quais a colonização se tornava constitutiva da sociedade portuguesa. De fato, aquilo que espelhos de príncipe classificavam como concupiscência dizia também respeito ao esforço de sobrevivência da nobreza num contexto em que a competição simbólica e a necessidade de consumir o luxo ampliaram irreversivelmente o endivida mento e a dependência frente às rendas régias. Fosse o grande preocupado com a queda dos rendimentos, fosse o filho secundogênito obcecado por criar sua própria casa – e disto trata a autora no quarto e último capítulo, “A fortuna de um governador das Minas Gerais: testamento e inventário de d. Lourenço de Almeida” -, parte expressiva dos administradores tratavam de espoliar as áreas coloniais governadas para evitarem o risco de tudo perder na Corte. Andavam, portanto, no fio da navalha, equilibrando-se entre a busca de recursos e a ameaça de punição e ostracismo.

Descrevendo cuidadosamente o caso de d. Lourenço, que governou as Minas Gerais entre 1720 e 1731, Adriana Romeiro deixa arraigada a sensação, já mencionada acima, de que as articulações políticas e o ataque à honra desempenhavam um papel geralmente mais importante do que os instrumentos formais de punição – já que, desde seu retorno a Lisboa, o ex-governador não encontrou consolo, nem acesso ao serviço régio e a mercês, assim permanecendo durante todo o período pombalino. Apesar de chegar a erigir um morgado valendo-se dos recursos amealhados e de estratégias endogâmicas de casamento, não conseguiu de fato constituir sua própria casa, sonho já totalmente dissipado na geração de sua neta. D. Lourenço de Almeida foi um exemplo claro, embora relativamente malsucedido, de governador que, metendo-se na luta renhida pela expropriação da riqueza colonial – na qual entravam também os agentes, poderes e costumes locais -, buscou acumular bens, saldar dívidas, fundar uma casa nobre e manter rendimentos que garantissem seu decente sustento. Enfim, foi, a seu modo, parte da dinâmica do que a historiografia – ou parte dela – denomina de sistema colonial.

Em nota, Romeiro não deixa escapar o desalento do famoso diploma ta d. Luís da Cunha em relação a esse tipo de consumo, que, segundo ele, empobrecia a nobreza portuguesa e causava o envio de grossas somas a Paris, “porque de lá emanam as modas” (p. 358). Observação interessante não propriamente por sugerir que parte da riqueza colonial ia parar em França, mas sim por destacar o papel crucial – utilizemos novamente palavras antigas – desempenhado por uma espécie de coerção extraeconômica: a moda. E também nesse ponto o livro de Romeiro faz pensar. Seria mesmo correto afirmar que a riqueza colonial era esterilizada por um consumo que, ao fim e ao cabo, alimentava estruturas comerciais e produtivas francesas?

Faria algum sentido estabelecer limites rígidos e deterministas entre fatores econômicos e extraeconômicos? Mas essa pergunta nos levaria a questionar aqueles que dizem saber onde começa e termina o capitalismo, embora não expliquem por que sociedades orgulhosas de serem tradicionais – ainda que de modo contraditório e conflituoso – devem ser chamadas de arcaicas. A consistência da obra de Adriana Romeiro encontra-se bem além de armadilhas desse tipo, que bem lembram as velhas, teleológicas e preconceituosas teorias da modernização.

Marco Antonio Silveira – Doutor pelo Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Professor associado do Departamento de História da Universidade Federal de Ouro Preto. Pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq. Email: [email protected].

Paulistas e emboabas no coração das Minas: idéias/práticas e imaginário político no século XVIII | Adriana Romeiro

Resenhista

Rodrigo Leonardo de Sousa Oliveira – Pós graduação em História. Doutorado em História Social da Cultura Universidade Federal de Minas Gerais.


Referências desta Resenha

ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das Minas: idéias, práticas e imaginário político no século XVIII. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. Resenha de: OLIVEIRA, Rodrigo Leonardo de Sousa. Imaginário político e a ação dos emboabas nos sertões das Minas. Escrita da História, v.1, n.1, p.144-149, abr./set. 2014. Acesso apenas pelo link original [DR]

Paulistas e Emboabas no coração das Minas. Idéias, práticas e imaginário político no século XVIII | Adriana Romeiro

Em instigante artigo, António Manuel Hespanha rebate e discorre sobre algumas críticas desferidas ao emprego conceitual de “Antigo Regime” na historiografia luso-brasileira, e apresenta a proposta de substituição dos debates de uma referência geográfica, a separação oceânica e cultural entre colônias e metrópole, por uma questão essencialmente política: “Antigo Regime e Regime Colonial podem coexistir?”2 . Ao propor esta reflexão, o historiador do Direito explicita o cerne dos debates travados entre os pesquisadores que confrontam estes dois “modelos explicativos”. Não devemos avaliar uma realidade histórica problematizando-a unicamente como atrelada a um sistema de acúmulo de riquezas em centros hegemônicos, transferindo recursos para setores decadentes e parasitários. Tampouco, sujeitar e vincular as trajetórias coloniais a uma subordinação e perpetuação do domínio metropolitano. Assim como não podemos privilegiar as economias vinculadas ao mercado externo em detrimento das que não tangenciaram esta órbita. Todavia, não podemos pensar em um estatuto político equitativo entre os colonizados e colonizadores; concebendo um arquétipo sócio-cultural e simbólico característico do Antigo Regime compartilhado pelos indivíduos neste inseridos. Valer-se de uma tática de submissão, amor e serviço incondicional ao rei como um instrumento analítico, reduz o campo de reflexões e possibilidades históricas. Outrossim, tais aspectos se relacionavam a uma lógica e etiqueta empregada para o peticionar, constituindo um artifício retórico acionado para cunhar representações sociais. Neste sentido, refletimos que estes aspectos analíticos não podem prescindir e antever aos fatos empíricos. Tais pressupostos teóricos não devem ser impostos aos procedimentos e produtos do fabrico histórico, uma vez que sua aplicabilidade, tenacidade e essência devem estar em consonância e comunhão. Leia Mais

Paulistas e emboabas no coração das Minas – ROMEIRO (VH)

ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das Minas: idéias, práticas e imaginário político no século XVIII. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2008, 431 p. Resenha de: STUMPF, Roberta. Varia História. Belo Horizonte, v. 27, no. 45, Jan. /Jun. 2011.

Publicado em 2008, este livro da professora Adriana Romeiro, do Departamento de História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, tem como tema a Guerra dos Emboabas, como ficou conhecido o levante ocorrido na capitania das Minas Gerais em 1708-1709. Já nas primeiras páginas retoma as análises historiográficas de um episódio que foi exaustivamente estudado até a segunda metade do século XX, perguntando-se o que de novo poderia dizer sobre a matéria. E não é preciso avançar demasiadamente na leitura para observar que apresenta uma visão claramente inovadora, ao adotar uma perspectiva analítica que privilegia a história política “à luz de uma perspectiva cultural” (p.26).

É esta mesma proposta a de seu livro anterior, publicado em 2001, Um visionário na corte de D. João V: revolta e milenarismo nas Minas Gerais,1 pelo que se pode dizer que a trajetória de investigação da autora apresenta um percurso homogêneo, não obstante a diversidade dos temas aos quais se dedica. Neste livro anterior, estuda um personagem fascinante, o português Pedro de Rates Henequim, que ao voltar ao Reino, depois de viver nas Minas, foi acusado de heresia pelo Santo Ofício e queimado em um auto de fé, em 1744. Em ambos os livros, a análise recai não tanto na história de vida dos personagens ou na descrição dos eventos, por si só interessantes ao leitor. O que lhe importa analisar são as práticas e as idéias de acentuado cunho político que coexistiram nas Minas do século XVIII e que tinham diferentes matrizes: uma portuguesa e outra, original, inovadora, mestiça, sertaneja, popular….

Sobre a última obra publicada, o que nos importa explorar é a tese principal de Romeiro, que permeia todos os capítulos, embora se apresente com maior clareza no quinto, “Idéias e práticas políticas”, o qual segundo a própria autora é “o âmago do livro”. Neste caso, não opta por seguir uma seqüência cronológica linear, comum aos historiadores mais interessados na descrição dos eventos. Antes opta por um percurso narrativo que vai da dimensão imperial ao nível local das Minas, atenta sempre às idéias e às práticas daqueles que atuaram neste contexto particularmente importante na história das Minas e de todo o Império português: a década inicial do Setecentos.

As diferentes propostas administrativas que eram gestadas para as Gerais são compreendidas mediante a análise dos imaginários políticos que coexistiram e que acabaram por explicar o confronto que teve a capitania como palco. O posicionamento da Coroa e de seus representantes é cuidadosamente analisado porque foi determinante para o sucesso ou o fracasso das estratégias adotadas por paulistas e emboabas, que irão se enfrentar ao longo das diferentes etapas que constituíram este processo de descobrimento e colonização das Gerais.

Longe de apresentar uma atuação uniforme, a política governamental foi determinada muitas vezes pelos interesses pessoais de governadores gerais e governadores da Repartição Sul assim como pelas diferentes percepções que dividiam as autoridades no Reino em relação à importância estratégica do ouro e das Minas para a monarquia portuguesa. As incertezas em relação aos benefícios da extração aurífera e à importância do estabelecimento de um aparato administrativo consolidado beneficiou, nos primeiros anos do século XVIII, os paulistas que encontraram naqueles sertões recém descobertos um terreno propício para agirem. A valentia destes homens, guiados por valores como a honra, que mais do que ninguém sabiam vencer os perigos de um território povoados de índios e súditos rebeldes, foi útil à empresa colonizadora nas Minas, como haviam sido, na figura de Domingos Jorge Velho, na luta contra o quilombo dos Palmares (p.197). Pelo que nos primórdios a Coroa aproveitou-se da ambição dos paulistas pelas distinções para cooptar seus serviços, provendo-os em cargos políticos importantes e beneficiando-os com o primeiro Regimento que regularizava a distribuição das datas.

É verdade que muitas autoridades não eram favoráveis a esta tendência pró-paulista, pois a outra face da “legenda negra”, associada a estes, e que eles próprios contribuíram para consolidar, prejudicava a consolidação de uma ordem nos moldes desejados pela monarquia. Quando a riqueza proveniente do ouro despertou a cobiça régia e a monarquia julgou necessário controlar a região, a imagem dos paulistas como homens inclinados à autonomia ganhou maior acolhimento. A forma particular que tinham em negociar com as instâncias políticas centrais, a adoção de uma tática de “guerra brasílica”, o sangue mestiço, ou mesmo a violência utilizada em defesa da honra, sustentavam a desconfiança, por exemplo, dos conselheiros ultramarinos que resistiam cada vez mais lhes conceder mercês.

A semelhança do que ocorria em outras paragens da América, onde os primeiros descobridores ou restauradores de um território ocupado por inimigos julgavam-se beneméritos de mercês régias, também os homens do Planalto se apropriaram da retórica do “direito da conquista” para “pleitear as mais valiosas honras e mercês” (p.38). Mas a vertente detrativa da imagem atribuída aos mesmos dificultou seus intentos favorecendo, por sua vez, os emboabas, como eram chamavam pelos paulistas aqueles que não descobriram as Minas, mas que para lá se dirigiam para tirar proveito de suas riquezas e de seus cargos ainda por ocupar. Mas se estes forasteiros não podiam se valer do fato de terem sido os primeiros a desbravar os sertões, esforçavam-se por serem vistos como fieis súditos do monarca que restaurariam o poder régio na região comandada pelos tirânicos paulistas. Trata-se de duas retóricas distintas, e igualmente legítimas para a cultura política vigente, adotadas por dois grupos que tinham estratégias diversas que visavam o mesmo fim e que traduziam, como evidencia com sucesso a autora, imaginários políticos em confronto, que terão repercussões duradouras naquele território.

É este talvez o maior contributo desta obra: o destaque dado a um conflito que não teve como principal palco o campo de batalha. Os vencedores não foram os que sabiam melhor guerrear ou os que tinham as armas bélicas mais eficazes. Mas sim aqueles que percebendo a realidade, e agiam nesta, de forma mais conveniente aos interesses régios, foram eleitos como sendo os mais dignos de receberem as recompensas, cargos ou honras, que ambos os grupos almejavam conquistar. A economia moral do dom não fora apenas um instrumento que permitiu a consolidação dos laços entre súditos e monarcas. Foi um sistema tão atrativo aos desejos de ascensão social que determinou muitas vezes que súditos envolvidos em embates na disputa de recursos e mercês utilizassem retóricas distintas e conflitantes para verem-se agraciados pelas autoridades.

Por vezes somos levados a pensar que Romeiro atribui à naturalidade dos vassalos um fator essencial para explicar o posicionamento régio e consequentemente o desfecho do levante, contrariando assim as análises historiográficas mais recente que insistem na pouca relevância da oposição entre naturais da América e do Reino, ao menos até o final do século XVIII. Se os paulistas possuíam uma identidade cultural que os singularizava, ou mesmo “étnica” como afirma a autora, eram reconhecidos evidentemente como sendo os naturais de São Paulo. Porém, no que compete aos em-boabas, se há indícios de que os conselheiros ultramarinos lhes atribuíam uma naturalidade reinol, provavelmente assim faziam para salientar as diferenças em relação aos paulistas, a quem faziam fortes ressalvas. A autora, no entanto, cita outros documentos coevos que comprovam o quanto a naturalidade dos emboabas era uma questão controvérsia, que tampouco deve ser resolvida. Assim, embora a dimensão paulista seja sempre enfatizada, ao mostrar que os emboabas eram tanto americanos como reinóis, a autora critica as análises que deram ao levante um cunho nativista. Se no contexto de 1708-9 a naturalidade paulista estava associada a uma postura contestadora e autonomista, no decorrer da centúria nada indica que esta associação continue a ter a mesma intensidade, ao menos é o que percebemos no teor das solicitações de mercês efetuadas pelos habitantes das Minas nas quais a naturalidade não aparece nos pareceres como um critério a legitimar ou não a justiça das súplicas.

Se o levante emboaba, como se infere no título do livro, é crucial para entender todo o século XVIII mineiro, não o é por esta razão. Seu maior legado, como afirma a autora nas conclusões, são as formulações políticas que naquele contexto eclodiram e que serão essenciais ao imaginário político da população local (p.317). Ao longo do Setecentos as idéias e as práticas políticas, que traduzem matrizes da tradição insurgente e também não insurgente, sobreviverão, muitas vezes com um conteúdo remanejado. Tanto o discurso embasado no “direito da conquista” como o “restauracionista”, defendidos respectivamente por paulistas e emboabas, legitimaram motins e sedições, entre os quais o mais importante deles ocorrido em 1788-9. Talvez fosse interessante saber, seguindo a sua própria linha de raciocínio, se ao longo desta centúria os súditos interessados em fazer valer seus direitos pelas vias consideradas legítimas, se apropriaram destes discursos para solicitar mercês ao Conselho Ultramarino.

A autora, porém, apesar de mencionar na introdução a importância de se evitar uma análise da Guerra dos Emboabas que se restrinja à curta temporalidade, ou seja, ao episódio em si, só analisará rapidamente a permanência destas retóricas nos movimentos sediciosos na última página do quinto capítulo, voltando a lhe dar destaque nas conclusões. Romeiro não despreza a importância do tema, mas não o aprofunda, quase como se estivesse a sugeri-lo para uma investigação futura, de sua autoria ou de outro historiador, disposto a aproveitar esta dica tão valiosa.

Esta obra foi bem acolhida pela historiografia brasileira, e deve continuar a sê-lo pelo que nela foi dito e exaustivamente analisado, ou pelo que foi apenas sugerido, já que a consistência das sugestões também se deve ao rigor e à originalidade da pesquisa que apresenta.

1 ROMEIRO, Adriana. Um visionário na corte de D. João V: revolta e milenarismo nas Minas Gerais. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001.

Roberta Stumpf – Pesquisadora do Centro de História de Além Mar/Universidade Nova de Lisboa Rua Berna, 26C, gabinete 2.19, Edifício DRM Lisboa, Portugal, CEP1069-061, [email protected].

 

 

 

Paulistas e emboabas no coração das Minas: Ideias, práticas e imaginário político no Século XVIII | Adriana Romeiro

A obra recente de Adriana Romeiro, professora da Universidade Federal de Minas Gerais, vem suprir uma lacuna de estudos recentes sobre o episódio da guerra dos emboabas, conflito que agitou Minas Gerais no início do século XVIII.

O levante dos emboabas é um tema clássico da história do Brasil, já abordado por autores do século XVIII, como Sebastião da Rocha Pitta, Manuel da Fonseca, Pedro Taques Leme e Cláudio Manuel da Costa. O tema foi retomado pelos primeiros historiadores que se propuseram a escrever uma história nacional, originando uma controvérsia sobre quem teria protagonizado um movimento então identificado como nativista, se os paulistas ou os emboabas. Leia Mais