Raça, genética, identidades e saúde / História, Ciências, Saúde – Manguinhos / 2005

Este número de História, Ciências, Saúde — Manguinhos é um dos mais densos que já produzimos. Além dos artigos submetidos à publicação, contém um interessante dossiê, na verdade dois: um sobre raça e genômica, organizado pelo sociólogo Marcos Chor Maio e pelo antropólogo Ricardo Ventura Santos, e outro, que alojamos na seção Debate, orquestrado por Luisa Massarani, tendo por tema a ciência, a tecnologia e os diálogos com os cidadãos.

Relembro um fato recente, dos mais controvertidos, que não deve ter passado desapercebido aos leitores: em junho, a imprensa noticiou a liberação, pela Food and Drug Administration (FDA), nos Estados Unidos, de um medicamento contra a insuficiência cardíaca (BiDil) para ser usado por negros, ou ‘afro-descendentes’. Na história da medicina e farmácia, é o primeiro destinado especificamente a uma raça, com base no pressuposto de que seus indivíduos têm quantidades menores de óxido nítrico no organismo (“EUA estudam liberar droga só para negros”, Jornal da Ciência, 14.6.2005; “EUA aprovam droga específica para negros”, O Globo, 25.6.2005).

No cerne do dossiê apresentado neste número de História, Ciências, Saúde – Manguinhos estão as supostas relações entre raça e saúde, cada vez mais debatidas mundo afora e Brasil adentro – veja-se, por exemplo, o programa do Seminário Internacional sobre Raça, Sexualidade e Saúde realizado no Rio de Janeiro, em novembro de 2004 (disponível em www.clam.org.br).

Em “Razões para banir o conceito de raça da medicina brasileira”, Sergio D. J. Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais, demonstra que a reduzida variabilidade genética da espécie humana é incompatível com a existência de raças como entidades biológicas e, portanto, cor ou ancestralidade geográfica pouco ou nada contribuem para a prática médica. A anemia falciforme, doença hereditária com maior prevalência na população negra, é analisada tanto por Pena como por Peter H. Fry, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, autor de “O significado da anemia falciforme no contexto da ‘política racial’ do governo brasileiro (1995-2004)”. Para o primeiro autor, esta e outras doenças supostamente ‘raciais’ são, na verdade, produtos de estratégias evolucionárias de populações expostas a agentes infecciosos específicos. Fry mostra que a anemia falciforme é objeto, no Brasil, de um discurso que conta com destacada participação de ativistas negros, e que constitui poderoso catalisador da naturalização da ‘raça negra’, em oposição à ‘raça branca’, num país que até recentemente se via como mestiço, biológica e culturalmente.

Josué Laguardia, médico epidemiologista, estuda a hipertensão arterial, outro caso em que se atribui papel causal tanto a fatores genéticos como à raça. O autor analisa os pressupostos que embasam os argumentos racializadores desta patologia, as hipóteses alternativas presentes na literatura científica e os aspectos éticos nela implicados.

A partir de pesquisa etnográfica com usuárias e profissionais envolvidos com as novas tecnologias reprodutivas, que permitem a procriação sem relação sexual, Naara Luna, antropóloga da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, discute as concepções de natureza humana implicadas na biologização e genetização do parentesco.

Dois estudos abrangentes e complementares de pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz encerram o dossiê deste número de Manguinhos. No primeiro, Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos analisam os debates motivados por estudos sobre o perfil genético da população brasileira, cuja interpretação mobiliza biólogos, sociólogos, movimentos sociais e outros atores. Além de mostrar as confluências entre antropologia, genética e sociedade no mundo atual, os autores examinam como o híbrido de novas tecnologias biológicas com velhas configurações ideológicas influencia as interpretações da realidade brasileira contemporânea. Em “Tempos de racialização”, Maio e Simone Monteiro detêm-se na ‘saúde da população negra’, campo de reflexão e intervenção política que se firmou entre 1996 e 2004: a postura ambivalente do governo Fernando Henrique Cardoso deu lugar, na presidência de Luiz Inácio Lula da Silva, à expansão das políticas compensatórias, inclusive no âmbito da saúde pública, inflexão que os autores relacionam à Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, promovida pela ONU em Durban, África do Sul, em setembro de 2001.

Na seção Debate, a jornalista Luisa Massarani, do Centro de Estudos do Museu da Vida (Fiocruz), pôs, lado a lado, profissionais de grande competência a discutir a importância de se ampliar a participação do público não-especializado nas decisões concernentes a temas de ciência e tecnologia com impacto na sociedade. As experiências do Canadá, Chile, Reino Unido, – Argentina e Dinamarca – modelo internacional no tocante a mecanismos participativos nessa área – são dissecadas na entrevista com Lars Klüver, diretor do Conselho de Tecnologia da Dinamarca, e Edna F. Einsiedel, da University of Calgary, no Canadá, assim como nos textos de Tom Shakespeare, do Policy, Ethics and Life Sciences Research Institute; Alberto Pellegrini Filho, da Organização Pan-americana da Saúde (OPAS); Ricardo Ferraro, da Universidad de Buenos Aires, Adriana J. Bacciadonne, do International Doorway to Education & Athletics e, ainda, Alberto Díaz, da Universidad Nacional de Quilmes (Argentina).

Outros materiais enfeixados neste número de História, Ciências, Saúde — Manguinhos chegaram a nós de forma espontânea, formando, naturalmente, um leque mais díspar de temas. Sergio Alarcon, da Secretaria Estadual de Ação Social do Rio de Janeiro, identifica distintas linhagens teóricas e práticas no âmbito da reforma psiquiátrica, e propõe um debate sobre as mudanças de estratégia para evitar que sofra retrocessos. Ricardo Waizbort, pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz, analisa dois novos campos de conhecimento que integram ciências biológicas e sociais: a psicologia evolutiva procura compreender a mente humana como produto de processos biológicos e evolutivos, e a ainda incipiente memética trata as informações culturais e as tradições como complexos de idéias que usam os cérebros humanos para se reproduzir. Rita de Cássia Ramos Louzada, da Universidade Federal do Espírito Santo, e João Ferreira da Silva, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, investigam a relação entre pós-graduação e trabalho através de observação participante e relatos de doutorandos de um curso de excelência na área de ciências da saúde. Por fim, Marcos Henrique Fernandes, Vera Maria da Rocha e Djanira Brasilino de Souza, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, investigam a concepção dos docentes do ensino fundamental sobre a saúde do escolar, bem como a formação desses profissionais no que se refere a esta temática.

As seções Fontes e Imagens reúnem materiais que se complementam: de um lado, o renomado “Chernoviz” e outros manuais de medicina popular no Império, trabalho de Maria Regina Cotrim Guimarães, da Universidade Federal Fluminense; de outro, Theodoro Peckolt, naturalista e farmacêutico alemão que deu contribuições decisivas para o desenvolvimento da fitoquímica no Brasil, como mostra o cuidadoso levantamento elaborado por Nadja Paraense dos Santos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Além de diversas resenhas de livros que certamente despertam o seu interesse, este número da revista traz ainda duas Notas de Pesquisa, o que nos alegra muito, porque essa é uma seção subutilizada, não obstante seu potencial como indutora ou valorizadora de projetos de pesquisa em andamento. Amílcar Davyt, Bernardo Borkenztain, Fernando Ferreira e Patrick Moyna, da Universidad de la República de Uruguay, nos falam sobre o desenvolvimento da química naquele país, a partir de um quadro de grande projeção neste campo do conhecimento, Giovanni Battista Marini Bettolo. Daniela Barros mostra como surgiram os estudos sobre imagem corporal e analisa as implicações fisiológicas e sociais desse conceito.

— “Raios me partam! Dentro em pouco vão me faltar forças para erguer tão polpudos volumes” — diz o leitor, de si para si. Eu próprio reconheço que me vejo em apuros para fazer caber tanta matéria na carta de editor, que já está longa demais.

Tranqüilize-se, leitor amigo. A partir de 2006, História, Ciências, Saúde — Manguinhos será trimestral e, assim, recuperará a elegância de formas que tinha à época em que as colaborações eram mais escassas.

Jaime L. Benchimol – Editor.


BENCHIMOL, Jaime Larry. Carta do Editor. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.12, n.1, jan./abr, 2005. Acessar publicação original [DR].

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