Relações de Gênero, Sexualidade & Cinema | ArtCultura | 2015

Ensaiar a explicação de uma obra é, sobretudo, saber e confessar o quanto ela nos atravessou, quanto ela nos ajuda a reconhecermo-nos através dela.

Octávio Paz

Este dossiê, idealizado e concebido a seis mãos, é fruto de uma paixão e uma fantasia partilhada. Um paixão pela magia embriagante do cinema, pelas ilusões diegéticas da narrativa e sua visualidade, pelas multidimensões sensoriais de sua operacionalidade maquínica no seio de diversas e diferentes culturas visuais, pela potencialidade de intervenção crítica no seio das práticas culturais das cidades, das mais distintas localidades, do modo fugidio como as imagens escapam das fronteiras pré-estabelecidas dos gêneros (cinematográficos), dos limites das produções (censuras, verbas, gramática, tecnologias), da forma dramática como os vários modos de se produzir um filme (dos clássicos à videoarte) marcam imaginários e imaginações.

A fantasia, nos termos como bem a colocou Joan Scott1 , é de transformar este conjunto de textos num amálgama de leituras que extrapolem a crítica por si mesma e invista no elo entre o saber e a confissão (conforme Octávio Paz), ou seja, o ato poético de entender e tensionar obras e práticas filmográficas, de diferentes idiomas e gramáticas, naquilo que elas têm de táteis, isto é, no seu poder de nos tocar ainda que tenham sido parte de um passado do qual jamais faremos parte. O ontem que vive hoje como aprendizado estético e político, mas também como estopim para autodescentramento e autodistanciamento, que nos faça ver nosso hoje com a alteridade crítica que ele requer. Nesse sentido, a fantasia de ir a diferentes países (Índia, Nicarágua, Guiné, Estados Unidos, México, Inglaterra), trespassando, interligando vozes (femininas, feministas, queer) que ousem dialogar ao mesmo tempo com formas de ver e entender dos que criam a maquinaria artística e a engrenagem da indústria cinematográfica e dos que se dispuseram e se dispõem a pensar os impactos e as atuações, enfim, os efeitos subjetivos e microfísicos desta usina de produções de sentidos, significados, emoções e racionalidades.

Não é preciso recorrer a Freud ou à psicanálise para entender que toda fantasia tem uma dimensão concreta. A concretude deste dossiê reside na inquietação quanto ao lugar central que as relações de gênero e as sexualidades, hegemônicas e periféricas, ocupam na constituição das estéticas e das políticas (áudio)visuais, desde o cinema pornográfico da era muda, aos clássicos holly e bollywoodianos, na videoarte e cinema experimental queer e na pós-pornografia feminista do século XXI.

Erotismo, poiesis, militância, glamour… como também aromas, cores, sons. Multifuncionalidade atravessa os sentidos do ver/ouvir, transbordando em emoções, tensões, ansiedades, vividas sob o jogo luz/sombra, que realçam ou ocultam deliberadamente um ato cênico, um objeto, um gesto, um protagonismo, uma ideologia, uma fantasia, muitas obsessões. Os artigos aqui reunidos não possuem em comum uma metodologia, visto que propõem leituras transdisciplinares ou mesmo indisciplinadas, mas partilham de um engajamento na construção de uma leitura que não se subsuma na interpretação ou decifração dos códigos de uma arte/obra, mas promove conexões, interliga contextos e sensibilidades em suas historicidades locais e transnacionais, dialoga com o campo dado à visão e o extracampo subentendido no próprio ato de sua produção.

Assim sendo, abrimos as portas com a sedução hollywoodiana da queer-queen Greta Garbo, dos anos 30, e o requinte das práticas – propagandísticas, jornalísticas, cinematográficas, literárias – que diversificaram e difundiram o star system. Ao trazer a atriz, as personagens, os cenários e os enredos as autoras Spini e Miucci também trazem as cidades, a economia do consumo, problematizam “o cinema como espaço de mediação e de negociação de valores, discursos e comportamentos”. Nem Garbo, nem o star system são novidades para os iniciados nos estudos fílmicos; por isso mesmo, o artigo traça uma bibliografia internacional sobre o tema e recria a trama histórica entre revistas, fotos, cartazes, códigos de censura, enfim, movimentam um olhar arquivista e crítico que redimensiona a agência de Garbo em relação à sua própria carreira e o espaço político que a mesma adquire no cenário hollywoodiano do momento. Não bastasse isso, as des – crições dos filmes analisados aguçam a sensibilidade de possíveis jovens leitores (que ainda desconhecem essa história do cinema e de sua crítica), e de leitores da maior e melhor idade, que possuem ali a deixa para se (re) apaixonarem por ela, a Garbo de ontem e de hoje, com as camadas mo – vediças que sua iconicidade mobiliza em relação ao corpo, sensualidade, desejo e prazeres que não dizem respeito apenas à condição feminina das mulheres.

Em segundo lugar, direto da região de Mangali, na Índia, Preeti Kumar analisa a filmografia produzida em Kerala. São filmes populares que frequentaram as salas dos cinemas locais e tiveram grande sucesso de bilheteria. Sua questão central é o modo como esses filmes, ambos dentro do gênero comédia, reatualizam e legitimam valores e ideais masculinos normativos. Seu olhar parte da condição feminina, no interior de uma estrutura de castas ainda vigente em grande parte da Índia. Mesmo quan – do se trata de reinventar o “novo homem”, dadas as variações sociais, ao trazer o protagonismo do homem proletarizado, as tensões nas relações de gênero e a violência nela implícita são incitadas, os filmes centram-se em enredos nos quais valoriza-se a hipermasculinidade do herói, propagando imagens de violência e agressão nas relações de gênero. Kumar sugere o vinculo entre humor e práticas neo-conservadoras em filmes que seriam tidos como uma aposta alternativa à primazia da estética bollywoodiana nas zonas interioranas da Índia do terceiro milênio.

Da Hollywood glamorosa e sedutora e da hipermasculinidade conservadora indiana dos filmes de sucesso de público passamos a uma sessão de artigos que se voltaram para práticas experimentais, video-arte e cinema das margens, com um propósito de inventariar uma produção que não logrou os grandes circuitos de divulgação, nem mesmo tiveram grandes apoios financeiros para sua produção, configurando assim uma filmografia independente, feminist – como nos artigos de Tania Romero, Mariana Baltar e Erica Sarmet – e queer nas análises de Karla Bessa, Rosalind Galt e Karl Schoonover.

Tania Romero, nos convida ao “cinema imperfeito” , categoria que ela define ao longo do texto, produzido na Nicarágua, partindo de uma compreensão poética do que seja o filme, como sendo um “diálogo cons – tante entre a intuição e a aprendizagem”. Tal definição, totalmente alheia às regras da indústria cinematográfica, investe em um tipo de arranjo es – tético que pouco se detém na celebração dos resultados, que se produz no espírito crítico, participativo, transformador. É com essa prerrogativa em mente que Romero, sensivelmente analisa a recente produção de cineastas mulheres, feministas, nicaraguenses.

A partir de um ato de dobrar-se sobre sua própria trajetória de leituras e formação no vocabulário e metodologias dos estudos de gênero dos anos 90, Karla Bessa encara os desafios e limites de conjugar uma perspectiva queer e feminista a uma filmografia produzida no seio da radicalidade lésbica da década de 70 nos Estados Unidos. Os filmes escolhidos para uma análise mais detalhada são documentários produzidos por duas brasileiras que estavam em Nova Iorque no boom da produção e divulgação de um novo meio de produção – a videoarte. O estudo dessas narrativas e da visualidade ali em cheque reflete, simultaneamente, sobre os pressupostos feministas no trato com a questão da sexualidade/corporalidade lésbica, a radicalidade de algumas das protagonistas e a retomada do projeto crítico do new queer cinema.

A partir dos anos 1990, há um crescimento significativo da visibilidade queer pelo mundo, incluindo países árabes com maioria muçulmana, países africanos, e os países com forte moralismo, como as recentes repú – blicas da Sérvia e Croácia. Karl Shoonover e Rosalind Galt posicionam sua reflexão sobre o cinema queer, independente e ativista, exatamente nesta região bélica de conflitos que envolvem tanto o campo do simbólico quanto a destruição física de cinemas e agressões contra produtores e consumidores desses filmes. Ao reverem leituras datadas sobre eles, como o primeiro filme gay da África Subsaariana, Dakan (Guiné, 1999), os autores deslocam uma visão eurocêntrica das relações entre cinema e mundo, constitutiva tanto dos estudos filmicos tal qual institucionalizados nas universidades europeias, quanto questionam os valores estéticos e políticos de organizadores de festivais de cinema situados na Europa. Nesse (des)encontro entre Europa e “mundo”, dá-se o que os autores denominaram de “novos mundos do cinema queer”.

No espírito da estética experimental do cinema queer feminista dos anos 70, e dos cinemas latino-americanos e africanos do final dos anos 90, segue o artigo de Mariana Baltar e Erica Sarmet, trazem para a cena o protagonismo da produção feminista do cinema pós-pornográfico, com um olhar dirigido para a inserção da personagem La fulminante, criada pela videoperformer colombiana Nadia Granado. O uso estético da pornografia (e dos exageros) como uma nova política feminista do corpo e da sexualidade feminina sempre alimentou um debate tenso na seara feminista. No decorrer do artigo, as autoras levantam os prós/contras desse debate, apostando na mirada artística e criativa de um tipo de ci – nema pornográfico que ao “contrário de reivindicar a censura, tensiona a pornografia como lugar privilegiado de produção de sentido sobre o corpo, sexualidades, desejo”.

Nossa fantasia, construída numa ménage à trois figurativa, é de que nossxs leitorxs possam unir as pontas de críticas aqui ensaiadas, que jamais tiveram a pretensão de esgotar ou perpassar toda a dimensão da temática, num corpo maior de inquietações e paixões próprias que levem o saber confesso a outros extremos ainda não explorados.

Nota

1 SCOTT, Joan. The fantasy of feminist history. Durham: Duke University Press, 2011.


Organizadores

Karla Bessa – Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu e Professora do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais. E-mail: [email protected]

Ana Paula Spini – Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professora do Instituto de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). anapaula. E-mail: [email protected]

Carla Miucci Ferraresi – Barros Doutora em História pela Universidade de São Paulo (USP). Professora do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Coorganizadora, entre outros livros, de História em projetos. Velhos mundos e mundos novos: encontros e desencontros – do século XVI ao XVIII. 7. ano. 2. ed. São Paulo: Ática, 2011. E-mail: carla. [email protected]


Referências desta apresentação

BESSA, Karla; SPINI, Ana Paula; BARROS, Carla Miucci Ferraresi. Histórias do cinema e dos ativismos audiovisuais sob uma ótica feminina/feminista. ArtCultura. Uberlândia, v. 17, n. 30, p. 7-10, jan./jun. 2015. Acessar publicação original [DR]

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