Relações entre crime e gênero: um balanço | História (Unesp) | 2019

O presente dossiê reúne artigos que discutem crime e gênero em diferentes perspectivas, espaços e temporalidades. Recentemente, estudos que buscam problematizar as questões de gênero nas pesquisas históricas com fontes criminais têm ganhado destaque, significando a retomada de trabalhos que foram pioneiros na década de 80 do século XX. A importância de análises sobre os delitos femininos no cotidiano dos grupos populares, os papéis femininos, a constituição das masculinidades e o controle por parte das instituições estatais foram temas que ganharam destaque em pesquisas que hoje são consideradas referências sobre crime e gênero.

Nesse sentido, um dos primeiros trabalhos que pensou a relação entre tais temas através das fontes criminais foi o de Martha de Abreu Esteves (1989), Meninas Perdidas. Este estudo, bastante inovador na utilização das fontes criminais, analisa os padrões normatizadores da conduta sexual sugeridos por juristas e médicos, bem como os valores e normas presentes no cotidiano das relações amorosas dos grupos populares no Rio de Janeiro do início do século XX. Além do citado livro, destacam-se também, no campo da história e antropologia, os estudos de Raquel Soihet, Sidney Chalhoub, Magali Gouveia Engel, Sueann Caulfield e Marisa Corrêa. Todos eles já indicavam para a participação das mulheres nas ocorrências criminais, centrando a análise nas situações de controle da sexualidade, uma vez que apareciam com mais frequência em fontes desta natureza. Soihet (1989), no clássico Condição feminina e formas de violência, aborda as mulheres pobres e a questão da ordem urbana nas primeiras décadas da República. Com uma proposta inovadora para a época, a autora buscou analisar os aspectos variados do cotidiano das mulheres trabalhadoras, prostitutas, homossexuais e criminosas, questionando os estereótipos e apontando novas dimensões do comportamento das mesmas. Para além de apenas apresentar as vítimas enquanto objeto de controle e dominação, Soihet aponta para o exercício de poder feminino, suas perspectivas e resistências cotidianas, colocando em xeque os conhecimentos “científicos” sobre as mulheres e “desmitificando” representações universais acerca da passividade, docilidade, dependência e a natureza maternal das mesmas.

Com um estudo pioneiro, Corrêa (1983) analisa as representações jurídicas dos papéis sexuais por meio dos crimes de homicídios entre homens e mulheres ocorridos em Campinas (SP), na segunda metade do século XX. Dialogando com a mencionada autora, Engel (2000) parte dos crimes passionais atribuídos aos indivíduos de ambos os sexos para discutir, neste caso, as relações entre os modelos ideais presentes nos discursos sobre os papéis do homem e da mulher, a existência de outras variáveis e a maior complexidade acerca dos códigos morais que orientavam as condutas. Para além dos discursos normatizadores e homogeneizadores sobre as pessoas que se tornavam alvo da ação dos juristas e médicos, existiam profundas diferenças sociais, raciais e de gênero que marcavam tais experiências, sendo essas identificadas nas justificativas daqueles que buscavam enquadrar e disciplinar os comportamentos.

A reprodução pura e simples das ideias e valores difundidos pelos grupos dominantes aos populares, bem como o peso das questões raciais e sociais nos conflitos cotidianos entre os trabalhadores pobres, é algo também destacado por Chalhoub (2001), no livro Trabalho, lar e botequim. Outro trabalho que trata do Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XX é o de Caulfield (2000) intitulado Em defesa da honra, que analisa as concepções sobre honestidade sexual dos juristas, advogados, juízes, os envolvidos em crimes sexuais de desonra e seus parentes. A autora traz as visões conflitantes sobre a moralidade, discutindo especialmente a ideia de que a defesa da honra das famílias era papel do Estado. Por meio dos crimes sexuais, é constatado que as noções de honra sexual eram interpretadas pelas distinções de cor e classe, sendo elas também “um instrumento que permitia aos juízes abraçar a [ideia de] democracia racial e, ao mesmo tempo, praticar a discriminação”. A questão da cor aparece como um aspecto importante para as pessoas que recorriam à justiça, sendo percebida como algo que conferia honra e também status social. Nesse sentido, ocorreu influência entre as percepções das autoridades judiciais e os grupos populares, sendo certo que as experiências dos trabalhadores com a “justiça reforçaram a consciência da desvantagem de ser negro no Brasil” (CAULFIELD, 2000, p. 315-16).

A utilização de fontes criminais é uma das características comuns que aproxima os estudos acima mencionados, somando-se, assim, aos vários temas que perpassam os trabalhos. Os crimes sexuais, as questões de honra, o controle sobre a sexualidade feminina, os papéis de gênero, a participação ativa das mulheres em determinados tipos de violências, a busca por entender os modos de viver e pensar dos grupos populares, com especial atenção para a atuação das mulheres que apareciam nas fontes criminais na condição de vítimas e rés, são assuntos que, apesar de já passados trinta anos dos primeiros trabalhos, ainda continuam sendo bastante explorados. Apesar disso, não há um balanço dessa produção ou iniciativas que busquem agregar trabalhados sob o eixo do crime e gênero. Este dossiê busca agregar trabalhos sobre o tema, estimulando a pesquisa através de diferentes abordagens e métodos, e buscando uma variedade de períodos e regiões, que possíveis unidades podem ser conquistadas através do estudo do crime e do gênero?1

Quanto à apresentação, buscou-se distribuir os artigos segundo uma ordem cronológica e por proximidade de assuntos, iniciando pelo texto que analisa fontes inquisitoriais produzidas em Lima, no início do século XVIII; outros que têm como enfoque a realidade Argentina do século XX; e, ainda, os que abordam realidades urbanas ou rurais de diferentes locais do território brasileiro entre os séculos XIX e XXI. A análise de crimes específicos e a trajetória das mulheres é tomada como um método para levantar questões sobre assuntos diversos, especialmente a maneira como se manifestam as relações de poder e controle pautadas na perspectiva de gênero2. Os delitos praticados pelas mulheres e contra elas devem ser analisados através das compreensões que existem sobre o feminino e seus papéis. Nesse sentido, os trabalhos que compõem este dossiê vêm suprir também uma lacuna que existe sobre os estudos brasileiros a respeito de crimes, violências e perspectiva de gênero, através de um recorte que seja também social e étnico.

As fontes criminais e jornalísticas são os documentos que mais se destacam nos artigos que serão apresentados. De um modo geral, pode-se perceber que os registros documentais são bastante diversos, e que o cruzamento das informações de fontes de tipologias diferentes pode trazer resultados significativos para o avanço nas pesquisas sobre o tema da criminalidade. Se já há algum tempo os pobres dos centros urbanos são estudados por meio de processos-crime, os resultados se devem a metodologias que buscam apreender as racionalidades das pessoas comuns, seus modos de viver, se relacionar, e as estratégias que acionam no cotidiano. A análise de trajetórias e casos particulares é utilizada como um caminho metodológico para acessar contextos diversos, bem como para perceber os modos como os indivíduos ou grupos irão não apenas reagir aos diferentes controles locais e mais amplos, mas também acionar recursos para garantir proteção e domínio sobre as decisões tomadas. O papel ativo de mulheres e homens – trabalhadores urbanos e camponeses – na constituição das redes de apoio, de punição e controle, como também as práticas de justiças e usos que irão fazer do recurso da justiça oficial do Estado têm propiciado pensar novos problemas de pesquisas.

Tomar como ponto de partida um caso específico ou uma experiência permite acessar contextos sociais e culturais que não podem ser apreendidos por uma perspectiva mais ampla. A utilização do método da microanálise e o cruzamento do quantitativo e do qualitativo têm apresentando resultados bastante interessantes nos trabalhos que utilizam as fontes criminais para pensar as diferentes percepções sobre a justiça e seus usos, a violência e criminalidade em diferentes realidades (VENDRAME, 2016; CARNEIRO, 2019). Desse modo, entendemos que a mencionada metodologia pode ser bastante útil para auxiliar na elaboração de novos questionamentos a fim se pensar sobre aspectos gerais das sociedades do passado e do presente, como, por exemplo, aquele da relação entre as mulheres, a violência e a criminalidade. Crimes que não são tão frequentes na documentação trabalhada, que se apresentam como excepcionais, podem ser reveladores de lógicas e práticas significativas e recorrentes da realidade social onde ocorrem. Ressaltamos essa questão por entender que carecemos de pesquisas que busquem olhar para os crimes cometidos pelas mulheres, o envolvimento destas na defesa da honra individual e familiar e os ritos de violência física e simbólica nos quais aparecem como autoras. É necessário lutar contra os silenciamentos das fontes, como os processos-crime, para se alcançar as escolhas, os comportamentos e as percepções femininas, heterogêneas e conflitantes, nos espaços privados e públicos. Mais do que apenas dar vozes às mulheres por intermédio das fontes criminais, entendemos que buscar escutá-las, levando em conta as suas diferentes especificidades, é uma maneira de trazer maior equilíbrio e complexidade às realidades sociais.

Os artigos que compõem o presente dossiê indicam de que maneira o corpo e o comportamento das mulheres, marcados por estigmas raciais e diferenças de gênero, são alvos de controle sempre que suas condutas ameaçam as percepções dominantes e as estruturas de poder nas sociedades patriarcais. Pensando as compreensões acerca do feminino e suas experiências, Natalia Urra Jacques, no artigo María Josefa De La Encarnación. Posesa, Endemoniada y Loca Frente a los Inquisidores de Lima, 1714-1719, analisa, por meio de um processo inquisitorial, a trajetória de uma mulher condenada pelo Santo Ofício. A protagonista do trabalho era pobre, mulata e donzela, que defendia seu vínculo celestial e espiritual com Deus, afirmando presenciar aparições místicas da virgem, bem como ser alvo das tentações do demônio. Segundo a autora, essas visões refletiam as pressões sociais, proibições e controles de uma sociedade mestiça, desigual e patriarcal, sendo seu comportamento e alegações reconhecidos como típicas transgressões femininas. Por meio da maneira como a personagem vivenciou e manipulou certas situações, buscando escapar do controle e da disciplina sobre o “sexo frágil”, Jacques levanta questionamentos sobre as transgressões religiosas e místicas das mulheres no Antigo Regime. Alegava que recebia favores de Jesus Cristo, que os santos apareciam em sonhos e recebia também castigos do demônio. María Josefa, durante o período de cinco anos, foi interrogada pelos inquisidores e, apesar de não ser descartada a hipótese de ela estar em “estado de loucura”, as experiências místicas foram compreendidas como consequência das articulações femininas. María Josefa foi acusada de ser “mentirosa”, “embusteira” e “idólatra”, o que indica para o controle clerical/inquisitorial exercido sobre os comportamentos femininos, e práticas da religiosidade popular que careciam de disciplinamento e ajustamento frente à mentalidade racional que predominava no século XVIII. Nesse sentido, as escolhas da personagem analisada são como uma amostra da realidade desigual em que viviam as mulheres, indicando as decisões possíveis de serem tomadas no cotidiano para torná-lo mais suportável.

Passando para contextos e épocas diferentes, os artigos Asesinas por pasión, infanticidas em Rio de Janeiro, 1841-1936 e Cómplices y verdugos: masculinidades, género y clase en los delitos de infanticidio (provincia de Buenos Aires, 1886-1921) irão abordar os delitos femininos por intermédio da análise quantitativa e qualitativa dos processos- crime de infanticídio e aborto. No primeiro artigo, Jhoana ]Prada Merchán, através de um número significativo de inquéritos policiais e processos criminais em que as mulheres aparecem como rés, discute o corpo feminino enquanto esfera de regulação dos juristas e médicos na defesa da maternidade e do sentimento maternal. As mulheres que assassinavam seus filhos não eram vistas como normais, sendo consideradas a antítese da mãe pois haviam cometido o crime em estado de alienação. O sentimento de vergonha e desonra frente a uma gravidez ilegítima era percebido como um aspecto que atenuava o peso da condenação em relação ao delito, uma vez que a defesa da honra era algo bastante valorizado. Questões de raça e classe são abordadas no trabalho, sendo que as indiciadas eram, na maior parte, mulheres jovens, pobres, solteiras, analfabetas, que viviam nos espaços rurais e urbanos do Rio de Janeiro. Apesar do infanticídio ser um tipo de crime exclusivamente feminino, cuja motivação principal era evitar a desonra da jovem mãe ou até negar a maternidade, a autora apresenta dados sobre a participação e criminalização de homens em tais delitos. Essa questão será debatida no artigo Cumplices e carrascos, de Sol Calandria. Por meio dos crimes de infanticídio, a autora realiza uma discussão sobre os significados do delito na província de Buenos Aires, durante o período de 1886 a 1921. A autora verifica que o crime, quando praticado por homens, se transforma em um ato de reafirmação da masculinidade e de domínio sobre assuntos privados e domésticos. Logo, o exercício da violência aparece como um recurso legítimo para defender a honra, sendo também um aspecto constituidor das masculinidades.

A defesa da honra por meio dos duelos entre indivíduos, que pertenciam à elite local e partilham de ideais burgueses, é um dos temas tratados por Mariana Flores da Cunha Thompson Flores e José Martinho Rodrigues Remedi no artigo Território neutro: soberanias justapostas e duelos de honra às margens dos estados nacionais sul-americanos de meados do século XIX às primeiras décadas do século XX. Foi no Brasil, na Argentina e no Uruguai, em sociedades marcadas pela modernidade, que a prática dos duelos de honra assumiu um papel fundamental na demarcação das posições sociais, reforçando as regras de reconhecimento e domínio masculino por meio dos rituais. A circularização dos códigos cavalheirescos orientava a prática do duelo entre os países fronteiriços da América Platina, indicando, assim, a importância de tal rito na reabilitação das honras ultrajadas recorrentes na cultura política da região estudada. Através da pesquisa em jornais, os autores destacam que a elite latino-americana se deslocava para além da fronteira nacional do seu país para realizar os combates de defesa da honra, uma vez que existiam soluções jurídicas diferentes em relação ao fenômeno dos duelos entre os três países analisados. É, portanto, ressaltado, que duelo e masculinidade são aspectos que não podem ser entendidos separadamente na constituição da honra, estando essa também pautada por questões nacionais, religiosas, raciais, de classe e gênero.

A honra é um capital simbólico individual e familiar. O confronto físico através do uso da violência é um aspecto para a reparação da boa reputação. Vizinhos e familiares têm papel fundamental na regulação dos conflitos e controles dos comportamentos no interior das comunidades rurais fundadas por imigrantes europeus do Rio Grande do Sul. Isso é algo que se sobressai nos artigos de Marlise Regina Meyer e Daniel Luciano Gevher, e no de Maíra Vendrame. Apesar de tratarem de épocas diferentes, as experiências femininas analisadas nos dois trabalhos permitem problematizar a relação entre condenação moral, loucura, crime e gênero. No primeiro artigo, intitulado Mas de que não é capaz uma mulher, quando sabe desenfrear as paixões dos homens, e até imprimir ao crime o selo da religião e da piedade? Gênero e narrativa na imigração alemã no Rio Grande do Sul, Meyer e Gevher analisam a narrativa produzida pelo padre jesuíta alemão Ambrósio Schupp, nos últimos anos do século XIX, sobre Jacobina Mentz Maurer, uma das lideranças do movimento messiânico dos Muckers, ocorrido na Colônia alemã de São Leopoldo, entre 1868-1874. Na obra Os Muckers, publicada no início do século XX, Schupp constrói uma imagem negativa de Jacobina, descrevendo a mesma com uma mulher pouco confiável, criminosa e culpada por uma série de delitos na região colonial. A condenação moral sobre seu comportamento, que se encontrava afastado do desempenho feminino desejado, fizeram com que Jacobina fosse descrita como louca e criminosa, não cumprindo devidamente com seu papel de mãe e esposa. Foi sobre a “fanática” Jacobina que recaiu a responsabilidade pelo fim trágico que teve o movimento messiânico, uma vez que, através de suas visões místicas e transgressões, ela personificava todas as características da debilidade feminina.

A condenação moral e o controle sobre os comportamentos femininos são o tema abordado no artigo Loucas e criminosas: crimes femininos e controle social em comunidades de colonização europeia do Rio Grande do Sul (século XX). Partindo de dois crimes de homicídios praticados por mulheres contra crianças, as criminosas, ambas camponesas descendentes de imigrantes europeus, foram encaminhadas para o Hospício São Pedro de Porto Alegre, onde permaneceram pelo período de quase dois anos sob avaliação dos médicos psiquiatras. Ambas foram descritas como loucas pelos vizinhos e familiares; porém, somente quando da ocorrência do crime é que foram afastadas da convivência familiar. Mesmo existindo diferentes percepções em relação à loucura, a associação entre crime e loucura é uma compreensão que encontra justificativa na condição de gênero.

A presença de diversos estabelecimentos estatais de regulação e controle da população no espaço urbano é analisada no artigo Prostituição e polícia: mulheres e homens na mira do policiamento moral em Belo Horizonte (c. 1920/1930), de Lucas Carvalho Soares de Aguiar Pereira. Em diferentes capitais brasileiras na primeira metade do século XX, foram fundadas delegacias de costumes e dispensários sifilíticos para inibir a prostituição e realizar o disciplinamento moral dos populares. Tais instituições devem ser entendidas num contexto de desenvolvimento político e cultural do país, bem como de medidas de regulamentação ligadas à circulação de conhecimentos e às técnicas policiais transnacionais. Levando em conta os mencionados aspectos, a análise se centra nas dinâmicas de funcionamento das delegacias de costumes no controle da prática do meretrício. É através da imprensa que o autor questiona o papel das delegacias e dos policiais na moralização dos espaços e na promoção de uma educação das meretrizes e dos homens na capital mineira, tudo isso conectado à circulação de ideias científicas que ultrapassavam as fronteiras locais, regionais e nacionais.

Na sequência, também num contexto de modernização das cidades e controle dos comportamentos e doenças, Carolina Biernat analisa a construção social do delito de contágio venéreo na Argentina por meio da autuação dos juízes, médicos e enfermo, no período da primeira metade do século XX no artigo Jueces, médicos y enfermos: Prácticas y sentidos en la construcción social del delito de contagio venéreo en la Argentina durante la primera mitad del siglo XX. Parte do entendimento de que as enfermidades de transmissão sexual foram centrais para repensar a modernização do país, incluindo ideias raciais em relação à população e identificando focos de infecções que atentavam contra a reprodução saudável dos indivíduos. As doenças venéreas, como experiência individual, eram pensadas como um sinal do atraso e da barbárie que afetava diretamente o crescimento da nação, devendo, portanto, ser tratadas como um problema coletivo. Nesse sentido, as enfermidades, enquanto problema de responsabilidade social, foram percebidas de maneiras particulares e tratadas até de forma arbitrária no interior das agências estatais por três atores sociais: os juízes, os médicos e os enfermos. Para a autora, o processo de construção do delito do contágio venéreo não foi linear, encontrando resistência entre os estratos judiciais

Não deixando de pensar os aspectos que marcavam a vida dos pobres nas primeiras décadas do século XX, os artigos do presente dossiê irão analisar casos específicos de violência de gênero e crimes praticados contra mulheres, seja por seus parceiros ou pelas próprias instituições estatais. Assim, chamando a atenção para a existência de uma “cultura do silêncio” em relação à violência contra a mulher negra no pós-abolição, o artigo Notas sobre o Estatus de Mulheres Negras no Pós-Abolição em Barbados a partir de um Femicídio, de Elaine Rocha, parte de um caso específico de assassinato ocorrido numa ilha localizada no arquipélago caribenho, em 1916. Através dele, a autora busca questionar a violência de gênero, em especial os crimes cometidos por homens contra mulheres negras, num contexto marcado pela pobreza, emigração e por dificuldades em relação à moradia. O destaque para uma abordagem que leve em conta os recortes gênero, raça, classe, religião, sexualidade e outras questões culturais pode ajudar a dar visibilidade para determinados sujeitos – como os subalternos – e para as relações de poder cotidianas, tirando, assim, da invisibilidade as escolhas e experiências que não aparecem através de visões mais amplas. Essa é uma questão que é ressaltada por vários dos estudos apresentados neste dossiê.

A análise das representações de gênero em fontes criminais é um tema que tem despertado atenção dos estudiosos que analisam as sociedades do passado e do presente, procurando entender de que maneira algumas compreensões orientaram e orientam ações violentas e a não condenação de alguns criminosos. Nesse sentido, também buscando apresentar uma contribuição para os estudos sobre crime e gênero, Cláudia Maia, no artigo Sobre o (des)valor da vida: feminicídio e biopolítica, analisa dois processos-crime de assassinato de mulheres pobres ocorridos na cidade de Montes Claros (MG) nos anos de 1996 e 2006. A autora chama atenção para a importância de se entender o feminicídio como um crime público, e não privado, contra as mulheres de forma genérica. Nesse sentido, procura perceber como operam e são acionadas as representações de gênero nos processos-crime, na atribuição das penas, na impunidade e desqualificação das vítimas, bem como na banalização dos delitos e omissão do Estado frente aos crimes de feminicídio. Todos esses aspectos aparecem pela política do silêncio em relação à violência e aos discursos que desqualificam a vítima, indicando, assim, o “desvalor” das vidas e dos corpos femininos. Portanto, a aplicação da lei do feminicídio surge como um meio para romper com toda uma estrutura de gênero, de dominação e poder, possibilitando que as mulheres comecem a assegurar o seu direito fundamental à vida.

Propondo uma discussão sobre o feminicídio no contexto brasileiro, que busca dar visibilidade à violência contra as mulheres na presente década, no artigo A ética da monogamia e o espírito do feminicídio: marxismo, patriarcado e adultério na Roma Antiga e no Brasil Atual, a autora Sarah Azevedo faz uma análise da criminalização do adultério feminino na Roma Antiga e no Brasil atual. Para tanto, debate o conceito de patriarcado, tanto no contexto romano quanto entre os pensadores marxistas do século XX, apontando as especificidades de momentos históricos diferentes e suas aproximações com realidades mais recentes. O patriarcado romano é pensado como referência para pensar a ética monogâmica que se funda na ideia de posse, na dominação e no direito à violência em relação à mulher. Apesar de receber muitas críticas, a autora ressalta que utilizar o termo patriarcado ainda continua válido enquanto ferramenta metodológica, uma vez que evidencia as relações de desigualdade, violência, e permite compreender as estruturas de opressão no campo das experiências femininas. No Brasil atual, destaca que o adultério feminino se apresenta como uma justificativa para redução da pena dos homens acusados por homicídio, culpabilizando a própria vítima por tais crimes. Apesar de a legislação afirmar a igualdade de direito em relação aos cônjuges, ela não se expressa no sistema jurídico de forma real. O adultério feminino, marcado pelo estigma da infidelidade das mulheres, assume um sentido mais negativo do que o adultério masculino, uma vez que valores patriarcais se encontram presentes na estrutura jurídica no Brasil.

Por fim, no artigo Mulheres, políticas públicas e combate a violência de gênero, Samira Vigano e Maria Hermínia Laffin debatem as políticas de ações afirmativas para as mulheres brasileiras, a maneira como o movimento feminista se envolveu na discussão, o reconhecimento das relações de desigualdade e da violência de gênero. A ideia principal do trabalho é mostrar como as políticas públicas se constroem e se articulam ao longo da história nos processos de proteção ao sexo feminino, tendo em vista que existem violências institucionalizadas contra as mulheres que precisam ser desnaturalizadas. Em relação a essa questão, as autoras enfatizam que é necessário olhar para as diferenças internas quando se fala em mulher, buscando perceber qual é o peso das singularidades e dos marcadores sociais, como raça, etnia, classe e identidade de gênero. As ações afirmativas vão além de apenas eliminar a violência: elas fazem parte de uma luta de políticas públicas por direitos para as mulheres de todas as classes sociais.

Independentemente dos contextos analisados e das questões discutidas, a atenção para recortes específicos nas análises que levam em conta o peso de aspectos socioculturais, de gênero, raça e grupo social, perpassam todos os artigos que compõem o presente dossiê. Como vimos no início da presente apresentação, autoras dos anos 80 e 90 do século XX discutiram o tema da violência e dos crimes contra as mulheres, começando a ganhar destaque não apenas os delitos nos quais as mulheres populares são vítimas, mas também aqueles em que elas aparecem com rés, tudo isso somado às análises sobre os discursos jurídicos, médicos, as testemunhas e os envolvidos nos delitos. Entendemos que este dossiê cumpre com o objetivo de buscar apresentar os diálogos e avanços nas pesquisas que mais recentemente vêm sendo desenvolvidas em relação às temáticas crime e gênero. Desejamos a todas(os) uma ótima leitura!

Notas

1 Um bom exemplo é o trabalho organizado por Coline Cardi e Geneviève Pruvost (2017).

2 Gênero não é algo que nasce com os sujeitos, mas resulta de uma construção cultural e social. Segundo Joan Scott (1999, p. 16), gênero é uma maneira de dar significado às relações de poder, sendo um primeiro campo por meio do qual o poder é articulado.

Referências

CARDI, Coline & PRUVOST, Geneviève. Penser la violence des femmes. Paris: la Decouverte, 2017. CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. Campinas, SP: Editora de Unicamp, 2001.

CORRÊA, Mariza. Morte em Família: representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.

CARNEIRO, Deivy Ferreira. Uma justiça que seduz?: ofensas verbais e conflitos comunitários em Minas Gerais (1850-1941). Jundiaí, SP: Paco Editorial, 2019.

ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas. Os populares e o cotidiano dos anos no Rio de Janeiro da Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.

ENGEL, Magali Gouveia. Paixão, crime e relações de gênero (Rio de Janeiro, 1890- 1930). Topoi, Rio de Janeiro, v. 1, nº 1, 2000, p. 153-177. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2237-101X2000000100153 . Acessado no dia 11 de novembro de 2019.

SCOTT, Joan W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica” Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 16, n° 2, jul./dez. 1990, p. 71-99. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/71721/40667 . Acessado no dia 11 de novembro de 2019.

VENDRAME, Maíra. O poder na aldeia: redes sociais, honra familiar e práticas de justiça entre os camponeses italianos (Brasil-Itália). São Leopoldo: Oikos; Porto Alegre: ANPUH-RS, 2016.


Organizadores

Marcos Luiz Bretas – Professor associado do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, atuando no Programa de Pós-Graduação em História Social. É doutor em História pela The Open University, com pós-doutorado junto à Université de Lille. Pesquisador em história do crime e da segurança, publicou recentemente a segunda edição de A Guerra das Ruas (Gramma, 2019) e a História do Banditismo no Brasil (Ed. UFSM, 2019), além de diversos outros trabalhos. E-mail: [email protected]

Maíra Ines Vendrame – Doutora e Professora de História no Curso de História e no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em São Leopoldo (UNISINOS), RS, Brasil. E-mail: [email protected]


Referências desta apresentação

BRETAS, Marcos Luiz; VENDRAME, Maíra Ines. Apresentação: crime e gênero. História (São Paulo). Franca, v.38, 2019. Acessar publicação original [DR]

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