Renato Kehl e a eugenia no Brasil: ciência, raça e nação no período entreguerras | Vanderlei Sebastião de Souza

O livro de Vanderlei Sebastião de Souza, professor adjunto da Universidade Estadual do Centro-oeste (Unicentro-PR), consiste em um estudo sobre a atuação do médico Renato Kehl (1889-1974) como organizador do movimento eugênico brasileiro, entre 1917 e 1932. Originalmente apresentada como dissertação de mestrado no Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro, a pesquisa se baseou em amplo repertório de fontes bibliográficas e do arquivo pessoal de Kehl, incluindo atas e anais de congressos, artigos de periódicos e correspondências, contido no acervo do Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.

Souza analisa os fatores que levaram a mudança nas concepções eugênicas de Kehl, a partir de finais da década de 1920. Conforme o argumento desenvolvido no livro, tal mudança se traduz pela passagem de um conceito amplo de eugenia e que esteve muito próximo dos ideais de reforma do ambiente social do movimento médico-sanitarista, para uma eugenia com fronteiras mais bem delimitadas e caracterizada por medidas radicais como o exame médico pré-nupcial obrigatório, a esterilização compulsória e a seleção dos imigrantes segundo critérios raciais.

Para compreender como se deu essa passagem de Kehl da “eugenia preventiva” para as eugenias “positiva” e “negativa”, Souza dialogou com os estudos de Pierre Bourdieu sobre o campo científico. A partir dessa interlocução, nos quatro capítulos que compõem o livro, Souza analisa os movimentos de Kehl como ator científico, divulgando as ideias eugênicas nos meios científico e social brasileiros, posicionando-se em relação aos debates sobre o melhoramento da “raça brasileira” e participando de uma rede transnacional de eugenistas, composta de médicos, cientistas, políticos e intelectuais.

O diálogo mais importante do livro é o realizado com o trabalho da pesquisadora Nancy Leys Stepan, professora da Universidade de Columbia, em Nova York. Para Stepan (2005), nos países da América Latina predominou uma eugenia mais “suave” e associada à teoria neolamarckiana, que pressupunha a interferência de fatores ambientais nos processos da hereditariedade. Em razão disso, as políticas eugênicas nesses países se concentraram nas ações de combate às doenças e ao alcoolismo e nos cuidados com a maternidade e a infância. Já em países do norte da Europa e nos EUA, o predomínio da genética mendeliana e da crença na independência da hereditariedade em relação ao meio implicou medidas eugênicas mais duras, como a esterilização, a restrição da imigração e a segregação racial.

Na linha de Stepan, os dois primeiros capítulos do livro analisam as razões do êxito de Renato Kehl na divulgação da eugenia e o modo como ele assume o protagonismo desse movimento no Brasil. Souza ressalta o sentido de modernidade que foi associado à eugenia, assim como a preocupação histórica das elites intelectuais brasileiras com as consequências da miscigenação racial. Nesse ambiente propício à popularização de uma ciência que prometia interferir nos processos da hereditariedade humana, Renato Kehl conseguiu apoiadores entre os médicos sanitaristas e organizadores da Liga Pró-saneamento do Brasil, os psiquiatras da Liga Brasileira de Higiene Mental e os principais expoentes da medicina legal. Na América Latina, Kehl foi interlocutor do eugenista argentino Victor Delfino e do peruano Carlos Henrique de Paz Sóldan.

O terceiro e o quarto capítulos analisam a mudança do paradigma eugênico de Kehl como reflexo das mudanças do movimento eugenista dentro e fora do país, do avanço da genética mendeliana e dos novos rumos da carreira de Kehl, que, em 1927, trocaria o Departamento Nacional de Saúde Pública pelo cargo de diretor da Indústria Química e Farmacêutica, da Casa Bayer, no Brasil. Em 1928, o eugenista brasileiro esteve na Europa por cinco meses, como convidado da empresa multinacional alemã, e aproveitou a oportunidade para conhecer instituições dedicadas à pesquisa eugênica. A realização dessa viagem ampliou sua rede de contatos da América Latina em direção à Europa e aos EUA. De volta ao Brasil, Renato Kehl procurou se afirmar como porta-voz de um programa eugênico delimitado nos moldes da eugenia racial alemã e cada vez mais distante da medicina social.

Apesar do foco sobre Kehl, o livro pontua diversas vozes da eugenia no meio científico brasileiro, endossando, nesse ponto, a crítica feita por Mark B. Adams (1990, p.219) aos estudos que interpretaram a eugenia como uma pseudociência à margem das ciências institucionalizadas. Ao mesmo tempo, ressalta a heterogeneidade das ideias e práticas eugênicas no Brasil, como efeito de suas interações com diferentes tradições intelectuais. Ao discutir o percurso intelectual de Kehl, Souza reitera a distinção de Stepan entre a “eugenia latina” e a “eugenia anglo-saxã”, tornando-a elucidativa dos pontos de partida e de chegada de seu programa eugênico.

Nesse ponto aparece sua principal divergência com o livro clássico de Stepan (2005, p.170), pois enquanto esse livro sugere que Kehl teria permanecido entre os adeptos das teorias lamarckistas, mesmo quando passou a propor medidas eugênicas mais radicais, Souza nos convence de que o eugenista brasileiro se tornou um mendeliano. Essa constatação complexifica a historiografia do movimento eugênico no Brasil, pois os oponentes das proposições radicais de Kehl, como o antropólogo Edgard Roquette-Pinto, também eram mendelianos. Com isso, Souza delineia uma agenda de pesquisa sobre as variantes e as controvérsias do movimento eugênico, chamando a atenção para os intercâmbios intelectuais e os movimentos transnacionais da eugenia, nas primeiras décadas do século XX. Agenda essa a que Vanderlei Sebastião de Souza (2017) vem se dedicando em artigos e seu livro sobre o antropólogo Edgard Roquette-Pinto.

Referências

ADAMS, Mark B. Toward a comparative history of eugenics. In: Adams, Mark B. The wellborn science: eugenics in Germany, France, Brazil, and Russia. New York: Oxford University Press. p.217-231. 1990.

SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Em busca do Brasil: Edgard Roquette-Pinto e o retrato antropológico brasileiro (1905-1935). Rio de Janeiro: FGV; Fiocruz. 2017.

STEPAN, Nancy Leys. “A hora da eugenia”: raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. 2005.


Resenhista

Lorenna Ribeiro Zem El-Dine – Casa de Oswaldo Cruz/ Fiocruz. Rio de Janeiro orcid.org/0000-0002-4055-8733  E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Renato Kehl e a eugenia no Brasil: ciência, raça e nação no período entreguerras. Guarapuava: Editora Unicentro, 2019. Resenha de: EL-DINE, Lorenna Ribeiro Zem. Renato Kehl, a eugenia brasileira e suas conexões internacionais. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.27, n.3, jul./set. 2020. Acessar publicação original [DR]

 

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