Senhores do orvalho | Jacques Roumain

A obra “Senhores do Orvalho” foi publicada pela primeira vez em 1944, com o título original de “Gouverneurs de la Rosée”. Esse romance é considerado a obra de maior importância do escritor haitiano Jacques Roumain e um símbolo do movimento literário indigenista haitiano. Roumain nasceu em Porto Príncipe, capital haitiana, no ano de 1907 e é descendente da elite mulata do Haiti que concentrou poderes políticos e econômicos após a guerra que derrubou o rei Chistophe em 1820, substituindo os espaços ocupados pelos negros após a Revolução de 1804. Em consequência disso, o autor usufruiu de boas condições de estudos, que realizou quase que exclusivamente em países da Europa.

Roumain foi um importante personagem na militância política e na intelectualidade haitiana. Foi um grande personagem da resistência contra a ocupação e o controle estadunidense no país, entre 1915 e 1934. No mesmo ano do fim da ocupação, ele fundou o partido comunista haitiano, uma das primeiras organizações políticas deste viés no país. No âmbito intelectual, Roumain é reconhecido por participar de grupos literários como o indigenismo, que objetivava, através de sua literatura, libertar o país das estruturas que o tornavam politicamente frágil e criar uma visão favorável sobre o Haiti, rompendo com as escritas literárias realizadas pelos colonizadores ou controladas por seus paradigmas culturais e de visão de mundo. Por fim, o escritor também atuou em estudos na área da Etnologia, com objetivos de compreender melhor a situação da população negra e de seu país.

Depois de prisões, exílios e já com sérios problemas de saúde, o autor é convidado a um cargo de embaixador no México. Nesse curto período, entre 1943 e sua morte, em 1944, escreveu “Senhores do Orvalho”, que foi publicada pouco depois de seu falecimento. A trajetória política e intelectual de Roumain é muito relevante para a leitura da obra citada, considerando que nela estão presentes diversos aspectos pelos quais ele lutou e acreditou, colocando em seu principal personagem, Manuel, o papel de transformador de uma realidade miserável.

Vale destacar que, logo após sua publicação original, a obra foi traduzida para diversos idiomas, tendo em conta que o momento era de grande aceitação dos ideais comunistas e forte organização de movimentos sociais, além da situação da morte precoce de seu autor em função de doenças que desenvolveu enquanto preso político. A produção de Roumain está inserida em um contexto mundial de grandes guerras, desenvolvimento de ideais e governos fascistas e estratégias desumanizantes, como o Holocausto. Com base nisso, produções literárias que concediam fios de esperança de transformação da realidade, como a obra “Senhores do Orvalho”, podem ter se tornado extremamente relevantes para aquele momento histórico.

No Brasil, a primeira tradução, denominada “Donos do Orvalho” (1954), foi publicada na coletânea “Romances do Povo”, organizada por Jorge Amado na década de 1950 pela Editorial Vitória, editora vinculada ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) na época. O livro de Roumain foi o quinto livro a ser publicado e teve cerca de dez mil exemplares impressos. Dentro desse contexto, vale ressalvar que o organizador da coletânea, Jorge Amado, foi um dos literatos mais reconhecidos da modernidade brasileira e da geração literária “regionalista” – que tinha como aporte principal expressar a realidade brasileira – e também foi membro participativo do PCB.

Em 2020, sessenta e seis anos depois da edição de Jorge Amado, a editora Carambaia lança uma nova tradução e edição em português brasileiro, titulando a obra de “Senhores do Orvalho”. Monica Stahel traduz a obra de Roumain para um leitor atual, ao mesmo tempo em que respeita muito fielmente os ideais e a linguagem do texto. A nova edição conta ainda com um posfácio da professora Eurídice Figueiredo, pesquisadora atualmente vinculada à Universidade Federal Fluminense. O texto de Eurídice se coloca de extrema importância considerando que ela localiza o(a) leitor(a) dentro da produção literária haitiana, na história do país e na vida do próprio Jacques Roumain. Além disso, essa versão conta, ainda, com uma produção estética que se preocupa em pensar em cores e texturas que aproximam o leitor do cenário descrito no romance.

O enredo de “Senhores do Orvalho” aborda uma comunidade rural haitiana que está passando por um momento de extrema dificuldade: há um grande período de seca, uma paisagem morta de terra vermelha e seca, em que apenas algumas plantas baixas e rasteiras sobrevivem. As descrições das paisagens são frequentes e intensas na escrita do autor a ponto de criar um desconforto ao descrever à(ao) leitor(a) a imagem de um sol ardente queimando um chão, plantas e um povo. Manuel, um homem jovem que havia migrado para trabalhar como cortador de cana em Cuba, retorna e encontra essa lamentável cena de sofrimento de seus velhos pais e de seu povoado. Nesses quinze anos em que viveu em Cuba o personagem envolveu-se e conheceu movimentos trabalhistas e ideais socialistas revolucionários que o incentivaram a iniciar sua luta para transformar a situação de seu povo no Haiti.

A trama gira em torno de Manuel e de sua meta em conseguir trazer água para seu povoado de Fonds-Rouge. O protagonista acredita que a salvação dessa população só seria possível a partir da união e trabalho coletivo de todos e todas e, para isso, ele precisa fazer com que sua comunidade se una novamente, já que está dividida em dois grupos depois de desavenças brutais entre familiares. Durante esse cenário central, diversos elementos culturais se fazem presentes e proporcionam um passeio pelas paisagens rurais haitianas, uma conversa com as pessoas do povoado e um modo de se aproximar das religiosidades, da linguagem crioula e das formas de relação e socialização desse espaço rural.

O movimento literário indigenista tinha como centralidade a valorização da cultura popular haitiana, o reconhecimento do crioulo como língua e o respeito às práticas religiosas do vodu em suas obras. Tanto o vodu quanto o crioulo foram elementos de extrema importância na organização da Revolução de 1804 e tiveram um papel central na formação da sociedade haitiana, mas que eram extremamente perseguidos e discriminados no país. Segundo o posfácio de Figueiredo, Roumain escreve sua obra em um francês levemente crioulizado, na fonética e na semântica, que podem ser compreendidos como uma forma de manter o francês e, com isso, possibilitando maior acessibilidade à obra sem perder a característica popular dos diálogos. O crioulo, por sua vez, é mais presente nos cânticos descritos e nos rituais vodu. A religiosidade popular também está presente em toda a obra, em pequenas oferendas, pedidos de chuvas e proteção às entidades/divindades vodu, denominados loas, ou em grandes rituais descritos com detalhamento por Roumain.

A linha ideológica marxista do autor também percorre o texto: além do personagem Manuel e sua formação política dentro dos movimentos trabalhistas cubanos, a trama desenvolve como a inserção dos ideais coletivos de transformações sociais podem colaborar para a criação de uma certa “consciência de classe” em realidades rurais e isoladas, diferentes dos tradicionais trabalhos realizados pelos movimentos sindicais europeus, majoritariamente urbanos e industriais. Há uma forte presença de elementos que criam um cenário de miséria material, de abandono das estruturas governamentais e o forte apelo ao imaginário espiritual das comunidades camponesas – que eram maioria no período de escrita da obra no Haiti.

A ideia cristã, além de presente no sincretismo vodu, está representada na obra de uma maneira mais tradicional, gerando diálogos sobre Deus e seu esquecimento à população negra. O ideal cristão e a forte ligação com a religiosidade (inclusive a vodu) é constantemente criticada por Manuel, que coloca a responsabilidade de transformação no ser humano e em alguns momentos se posiciona muito contrariamente à moralidade religiosa (sutilmente colocada). Apesar da crítica aos apelos sobrenaturais, o personagem Manuel desenvolve na trama um caráter de santificação, messiânico e de sacrifício, trazendo elementos bíblicos que vão muito além de seu nome. Quanto a isso, Figueiredo nos diz que não há como negar a ligação estreita entre o marxismo e a religião.

As informalidades dos diálogos de “Senhores do Orvalho” podem nos demonstrar, mesmo que brevemente, os papéis de gênero que permeiam o espaço representado na obra. Além de Manuel há outras duas personagens principais: Délira, mãe de Manuel, e Annaïse, sua companheira. Essas mulheres desempenham a força que carrega Manuel para cumprir com sua missão. Apesar de alguns cantos e passagens representarem situações e expressões machistas, as personagens mulheres têm um papel fundamental e central na trama, ou seja, sendo as confidentes e disseminadoras das ideias que possibilitam a esperança para Fonds-Rogue. Délira, se analisada na perspectiva cristã, é a base sólida da atuação de Manuel, assim como Maria seria de Jesus, a protetora, incentivadora, cuidadora e a que cuida de seu legado.

“Senhores do Orvalho” pode ser lido como um livro de esperança, um romance sobre como ideias podem tomar grandes proporções e transformar realidades miseráveis em vidas menos sofridas. A trama é um chamado de “uni-vos” para o povoado de Fonds-Rogue, uma aclamação para que as diferenças sejam esquecidas para que se possa alcançar o bem coletivo que, nesse caso, simbolicamente, é a água. A água é uma personagem central no romance, sendo a motivação de todos os acontecimentos e pode ser lida como a simbologia da própria vida, visto frequentemente durante a trama os moradores do vilarejo questionam se ainda existe vida por lá. É possível justificar tal análise por meio das primeiras palavras do romance em que Délira, observando a terra seca, diz: “- Todos nós vamos morrer…”. A seca simboliza antagonicamente a própria morte, que toma lentamente cada pedaço de vida da comunidade, destrói cada semente que não nasce, inclusive a da esperança.

A obra de Roumain representa o sofrimento de uma comunidade, mas que pode ser interpretada como toda a população haitiana. A história de luta e revolução negra haitiana, da formação de uma sociedade que rompeu com o poder colonialista, seguiuse de planos intermináveis de dominação e silenciamento contra essa população (golpes políticos, econômicos e formação de um dos países mais pobres da América Latina). Roumain e o movimento indigenista converte um olhar ensinado a ver apenas para além do atlântico para um olhar interno que possa perceber, finalmente, a potência que foi apagada com o silenciamento, e transformar em orgulho os elementos populares tratados de forma pejorativa pela literatura francesa. Os elementos centrais da narrativa pretendem valorizar a experiência interiorana da população negra como digna de reconhecimento e respeito.

No contexto caribenho, o escritor é parte de um processo no qual diversos movimentos artísticos e culturais negros se formam: jovens estudantes que na Europa se deparam com movimentos organizados, que descobrem quem são na perspectiva do colonizador e retornam para iniciar um movimento de descobrir quem são a partir de si mesmos. Nesse caminho, Aimé Césaire, Frantz Fanon, Léon-Gontran Damas e outros produziram reflexões de extrema importância e são atualmente referências centrais para pensar realidades colonizadas e caribenhas.

O livro analisado evidencia circunstâncias bastante atuais em que silenciamos e nos cegamos diante de duras realidades de vida. A recente tradução e publicação no Brasil é de grande validade, pois representa uma rara tradução de literatura caribenha e possibilita aos brasileiros o acesso a uma obra culturalmente muito importante para a população haitiana. Atualmente, vale ressalvar que o Brasil conta com uma vasta presença de migrantes haitianas(os) e a aproximação com a realidade sociocultural dessa população, por meio da obra, é extremamente valorosa para garantir sua integração nos espaços de cidadania e socialização no país. Outro fator relevante é que uma nova tradução pode também estabelecer debates em torno do baixo índice de tradução de obras haitianas: o Haiti é alvo de uma ideia estigmatizante voltada a miséria econômica e social e tal ideia se perpetua na medida em que não conhecemos as reais estruturas históricas, culturais, intelectuais e as produções artísticas produzidas no país ou por sua população em situação de migração. “Senhores do Orvalho” é uma leitura prazerosa e, ao mesmo tempo, necessária e que reacende uma esperança já quase apagada de transformação social.

Referências

CARMO, Rodrigo Reis do. Romances do Povo: A política cultural do PCB e a negação da esfera pública popular. 2007. 89 f. Monografia (Especialização) – Curso de Comunicação Social, Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. Disponível em: https://pantheon.ufrj.br/bitstream/11422/461/1/Romances%20do%20Povo.pdf. Acesso em: 28 set. 2019.

HANDERSON, Joseph. Diásporas negras no contexto pós-colonial: dialogando com intelectuais haitianos. Educere Et Educare: Revista de Educação, Cascavel Pr, v. 10, n. 20, p.5377-548, dez. 2015b. Semestral. Acesso em: 20 set. 2019.

HANDERSON, Joseph. Vodu no HaitiCandomblé no Brasil: Identidades culturais e sistemas religiosos como concepção de mundo afro-latino-americano. 2010. 183 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Ciências Sociais, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2010.

JEAN, Dieumettre. Donos do Orvalho de Jacques Roumain: Um projeto social para o Haiti Pós-terremoto. 2015. 62 f. TCC (Graduação) – Curso de Licenciatura em Letras – Português, Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, Campinas, 2015. Acesso em: 12 set. 2019.

ROUMAIN, Jacques. Donos do Orvalho. Rio de Janeiro: Vitória Ltda, 1954. 226 p. Coletânea Romances do Povo.

SANTANA, Márcio Antônio de. Literatura e construção da comunidade imaginada haitiana: uma leitura de Jacques Stephen Alexis e Jacques Roumain (1915-1971). 2003. 181 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Mestrado em História, Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2003.


Resenhista

Taíse Staudt – Mestranda em Estudos Latino-Americanos na UNILA. E-mail: [email protected]  orcid.org/0000-0001-5435-9383


Referências desta Resenha

ROUMAIN, Jacques. Senhores do orvalho. São Paulo: Carambaia, 2020. Resenha de: STAUDT, Taíse. O romance político haitiano que perpassa décadas: uma resenha de “Senhores de Orvalho” de Jacques Roumain. Em Tempo de Histórias. Brasília, n. 38, p. 334-338, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR]

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