Trabalho, saúde e medicina na América Latina | Mundos do Trabalho | 2015

Na primeira metade do século XX, consolidou-se na medicina um campo de conhecimento diretamente preocupado com a saúde dos trabalhadores. Em contraste com a higiene social e os esforços característicos da saúde pública, a medicina do trabalho visava prevenir os acidentes de trabalho e diagnosticar doenças que afetavam especiicamente os trabalhadores. Embora as razões para o surgimento da medicina do trabalho variem de um país para outro, as pesquisas recentes sugerem que houve avanços deinitivos nesse campo a partir da década de 1930.

A medicina do trabalho contrasta com outras áreas da medicina, principalmente porque seu objeto de estudo são cidadãos-trabalhadores, amparados por certos direitos sociais. Pode-se contestar essa ideia dizendo que a igura do operário doente se espalha pela literatura médica desde o século XIX, ou que crianças, mulheres e operários estiveram no âmago das discussões médico-sociais de todo o período. Ou ainda, que no quadro das polêmicas sobre a degeneração da raça, não havia muita diferença na abordagem de todos esses setores sociais, de modo que as fronteiras entre a deinição de trabalhadores e de pobres não estava muito clara.

Nas linguagens médica e política, provavelmente persistiam elementos desse outro lugar do “operário”. Porém, um dos pilares da medicina do trabalho, da discussão sobre acidentes do trabalho e doenças proissionais, foi um grupo de sujeitos diferenciados pelos direitos sociais, concretamente, pelo direito de receber indenizações por acidentes e danos isiológicos e psíquicos produzidos pelo trabalho.

Ao debruçar-se sobre as fontes acerca do trabalho, observa-se que desde os anos 1920 não era mais possível colocar os operários ao mesmo nível de outros grupos sociais ou de cidadãos vulneráveis, com vidas tuteladas e cidadanias fragilizadas ou negadas. Os direitos sociais tornaram os indivíduos trabalhadores radicalmente diferentes, assim como suas patologias concretas. Como airmou uma matéria de 1916, “de todo o modo, é satisfatório ver que, ao im, está o operário, em vias de ser considerado como elemento importante na maquinaria social”.1

Coerente com essa cidadania social, reletir sobre o discurso médico e sobre os trabalhadores signiicou também reletir acerca das doenças e a maneira com estas se inserem no horizonte da sociedade latino-americana da primeira metade do século XX. Mas não é possível pensar a doença ignorando sua historicidade. Do ponto de vista clínico, as doenças proissionais são, evidentemente, a consequência do silencioso processo de deterioração do corpo depois de anos de trabalho. O antropólogo Andras Zempléni lembra que a doença é um acontecimento individual e social que deixa traços na vida do indivíduo e da sociedade, mais do que uma doença meramente proissional. Nas palavras do autor “a historicidade individual da doença se apoia em sua historicidade social”.2

Além desses aspectos, o que parece escapar ao raciocínio de muitos pesquisadores é a utilidade da história para compreender tanto o passado como os desaios do presente no que diz respeito à saúde dos trabalhadores. Nas últimas décadas, pesquisas históricas acerca das doenças dos trabalhadores têm inluído nas ações reivindicatórias por parte de diferentes agentes sociais nos Estados Unidos, Bélgica, França, Itália. Assim, David Rosner e Gerald Markowitz airmam que o historiador pode ter um papel central nas decisões da justiça sobre as doenças proissionais e o meio ambiente, ou nas decisões sobre as políticas públicas em matéria de risco. Para eles, “o poder dos arquivos é impressionante” em casos de patologias ligadas ao tabaco, ao amianto, à radiação e a outras substancias tóxicas. Os livros de Rosner e Markowitz, sobre a silicose e os pigmentos a base de chumbo, de fato, reavivaram nos anos 1990 a discussão sobre as patologias dos trabalhadores e a responsabilidade dos industriais do setor, tanto com os trabalhadores quanto com a sociedade civil.3

Portanto, a maneira de legitimar as doenças proissionais está vinculada às formas de percepção do mundo do trabalho e do trabalhador. Ainda que desafortunadamente, como no começo do século XX, predomine a ideia de que a intervenção no mundo do trabalho é feita por meio de mecanismos de gestão ou mitigação de riscos; ainda que os limiares de exposição a produtos danosos sejam considerados normais e inerentes ao trabalho; ainda que o tributo à fatalidade e ao sacrifício apareça como a essência mesma do trabalho; as indenizações por acidentes e doenças proissionais acabam sendo o direito que todos os trabalhadores têm pela inevitável deterioração de seu corpo. Os aspectos negativos e prejudiciais ao trabalho têm se naturalizado de tal forma que em muitos casos as reivindicações dos trabalhadores e da sociedade gravitam sobre um número limitado de alternativas ou de ações positivas. A discussão deveria apontar menos para a atenuação dos riscos industriais e mais para a procura da substituição das indústrias, materiais e métodos, cuja sobrevivência continua a colocar um preço sobre a vida ou a expectativa de vida dos trabalhadores.

A ideia do dossiê Trabalho, saúde e medicina na América Latina surgiu justamente da necessidade de contribuir para o conhecimento das crises, obstáculos e avanços para o melhoramento efetivo das condições de saúde dos trabalhadores do continente. Mais do que exemplos ilustrativos, o leitor pode encontrar nos artigos deste dossiê alguns sinais históricos do longo processo de reconhecimento do corpo do trabalhador e a identiicação e legitimação dos acidentes e doenças do mundo do trabalho. Igualmente, pode-se aproximar ao processo de coniguração da medicina do trabalho e da legislação trabalhista. Também pode observar a paulatina apropriação de discursos provenientes da medicina e do direito em diferentes âmbitos sociais.

Assim, Diego Armus analisa o processo mediante o qual a discussão médica sobre a tuberculose na Argentina, começou a identiicar diversos fatores associados ao mundo do trabalho como possíveis causadores da doença. Questões como a fadiga ou as condições de trabalho são descritas como parte desse processo constitutivo da doença do trabalho.

Liane Bertucci mostra a forma como o discurso médico premeu e enriqueceu as discussões e ações dos operários paulistas de começos do século XX. Nesse sentido, como airma a autora em outra pesquisa, a saúde vem a ser uma arma revolucionária. Nesse artigo ela enfatiza a saúde da mulher e da criança.

Sandra Caponi analisa a forma como perceberam o corpo do trabalhador duas iguras representativas da história Argentina: José Ingenieros e Bialét Masse. Neles observa uma clara posição antagônica. A visão de Ingenieros, claramente expressão do século XIX, associa fatores como fadiga e pobreza, ao passo que Bialet Masse se antecipa quase duas décadas às relexões de Alfredo Palácio sobre a fadiga, introduzindo uma nova forma de ver a força do trabalho e o corpo do trabalhador.

Anna Beatriz de Sá Almeida se concentra principalmente na Era Vargas, descrevendo a complexidade do processo de coniguração tanto da medicina do trabalho como dos discursos acerca das doenças dos operários.

Jorge Marquez analisa a igura do médico nas primeiras décadas do século XX. Percebidos como parte de um processo de proissionalização da medicina e “normalização da arte médica”. Numa frase, o médico é apresentado também como trabalhador.

Óscar Gallo problematiza a doutrina, a lei e a jurisprudência sobre os acidentes de trabalho na Colômbia entre 1915 e 1946. Baseado em teses de médicos e advogados propõe que houve múltiplas causas para o funcionamento deiciente da primeira lei para a saúde dos trabalhadores, além da conhecida crítica à pobre abrangência da lei que vários historiadores têm destacado.

Patricio Herrera analisa a realização das três primeiras conferências do trabalho. Trata-se de avançar no conhecimento dos vínculos da OIT com o movimento operário na América Latina. Embora o tema da saúde não tenha sido objeto direto da análise, o texto permite compreender o contexto internacional de circulação, transferência e apropriação dos debates sobre o mundo do trabalho e a legislação trabalhista.

Finalmente, Ana Beatriz Ribeiro analisa a pressão produtiva da ditadura militar brasileira e em consequência o crescimento exponencial dos índices de acidentes e doenças do trabalho. Trata-se de compreender tanto o papel dos trabalhadores na ditadura quanto os efeitos do crescimento econômico sobre a saúde dos trabalhadores.

Reletir sobre a saúde do trabalhador e sobre a constituição de um novo campo de saber, a medicina do trabalho implica, sobretudo, em problematizar as complexas relações entre trabalhadores, Estado e patrões. Ao longo deste dossiê ica evidente que o tema da saúde do trabalhador é central para qualquer noção de direitos – sociais, mas também civis – de cidadania que seja digna desse nome. Fica evidente também que os caminhos dessa conquista são tortuosos, cheios de atalhos, perigos e veredas inesperadas e que se, na maior parte dos casos, o Estado é central como iador desses direitos; a sua conquista e manutenção é obra dos próprios trabalhadores.

Notas

1 ANONIMO. En favor del obrero. El Sol, 1419. ed., 1916, p. 2.

2 ZEMPLÉNI, Aras. “Entre “sickness et “illness”: De la socialisation a l’individualisation de la “maladie”. Social Science & Medicine, v. 27, n. 11, p. 1171-1182, 1988, p. 1172.

3 ROSNER, David; MARKOWITZ, Gerald. “L’histoire au prétoire. Deux historiens dans les process des maladies professionelles et environnementales”. Revue d’Histoire Moderne et Contemporaine, v. 56, p. 227- 253, 2009.


Organizadores

Adriano Luiz Duarte – Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Óscar Gallo – Historiador de la Universidad Nacional de Colombia – Sede Medellín (2004), magister em História – Universidad Nacional de Colombia – Sede Medellín (2010) y doctor en historia de la Universidad Federal de Santa Catarina (2015). Actualmente es profesor de la Universidad Eait e invesigador de la Escuela Nacional Sindical de Colombia.


Referências desta apresentação

DUARTE, Adriano Luiz; GALLO, Óscar. Apresentação. Mundos do Trabalho. Florianópolis, v. 7, n. 13, p. 5-8, jan./jun. 2015. Acessar publicação original [DR]

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