Rússia revolucionária: repercussões, inspirações, ressonâncias e atualidade / Fronteiras – Revista Catarinense de História / 2017

Com a aproximação do centenário das revoluções russas de fevereiro e de outubro de 1917, multiplicaram-se as iniciativas acadêmicas e editoriais voltadas para a reflexão sobre seu lugar histórico (em especial, sobre o lugar ocupado pela revolução que marcou a vitória do projeto bolchevique). A magnitude daquele processo revolucionário forçosamente desencadeou, desde sua eclosão, análises e balanços, tanto positivos como negativos, de variados matizes. Mas constata-se que, em 2017, a distância temporal e, sobretudo, os desdobramentos pós-1989, esfriaram o calor apaixonado que marcou o debate sobre o movimento responsável por levar um país predominante agrário ao topo do socialismo internacional, convertendo-o em referência central, para o bem ou para o mal, de todo movimento de esquerda, em escala planetária. Outubro de 1917 desalojou a Comuna de Paris do posto de inspiração revolucionária fundamental para as esquerdas, em nível internacional; nas décadas seguintes, os olhares fervorosos daqueles que desejavam “assaltar os céus” voltaram-se para o leste. Pois ali forjava-se um “novo mundo” e emergiam práticas sociais inusitadas, novas tramas de sociabilidade, uma nova linguagem – enfim, um novo homem e uma nova mulher, para um futuro solidário de igualdade social, econômica e política. “Ouvir a música da revolução”, aconselhou o poeta Aleksandr Blok, sugerindo tratar-se de muitos timbres e vozes. Os desafios eram imensos. As possibilidades, ainda maiores…

Passados cem anos, muitos se lançam a apontar acertos e a repartir equívocos por vários ombros, mas principalmente a humanizar personagens e processos, compreendendo-os na contingência da ação. Num certo sentido, um século pode parecer tempo suficiente para se repensar um fenômeno histórico tão marcante. Todavia, não é a distância temporal que nos garante a escolha dos pontos “certos” de observação. Como indicou Walter Benjamim, em uma de suas teses sobre o conceito de História: “Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo.”

Mais do que simplesmente realizar o registro de uma efeméride, o dossiê Rússia revolucionária: repercussões, inspirações, ressonâncias e atualidade, ao ser proposto, pretendeu, de um lado, estimular pesquisadores do campo da História e de áreas afins a se debruçar sobre a história e as memórias dos projetos revolucionários que se espraiaram pela Rússia de 1917 e a partir dela; de outro lado, debater o papel cumprido pela derrubada do regime czarista e pela tomada do poder pelos bolcheviques no imaginário e nas lutas dos movimentos sociais de vários países, ao longo de cem anos. Quais os sentidos daquele momento histórico em um presente fortemente atravessado por intolerâncias, exclusões, discriminações e ódios de classe, de gênero, étnicos e religiosos? Qual o significado do processo revolucionário russo de 1917, na atualidade, para a configuração do pensamento de esquerda e, mesmo, de direita? Ele ainda pode atuar como motor das utopias de transformação social? Ou, como parte da esquerda sugere, seria necessário esquecê-lo e superá-lo, para tornar possível a reconstrução da utopia de uma sociedade justa e igualitária?

A Rússia revolucionária que problematizamos hoje é aquela que ainda pode dizer algo sobre o nosso tempo, sobre nós mesmos e nossos dilemas. Nesse sentido, o dossiê tem a Revolução Russa como referência, mas certamente vista de um país periférico, do sul do mundo, neste ano da graça de 2017 que nos coloca frente às angústias, incertezas e ambiguidades de um novo golpe contra a democracia, gerador, em curto período, de um retrocesso de décadas. Talvez seja essa a chave que torne particularmente importante, atual e necessária, a leitura dos artigos e resenhas do dossiê.

No artigo Rastros do Realismo Socialista na América: trajetórias e conflitos na primeira metade do século XX, Tiago da Silva Coelho foca nossa atenção no papel social da arte, ao dar destaque para os debates latino-americanos e os desdobramentos do realismo socialista no muralismo mexicano, nos trabalhos de Diego Rivera, David Siqueiros e José Orozco, bem como na obra do brasileiro Candido Portinari.

Os ventos do leste movem moinhos: o impulso revolucionário de 1917 na criação do PCB, artigo de Rodrigo Lima, problematiza as influências da Revolução de Outubro de 1917 no contexto histórico latino-americano e no brasileiro, em especial, tornando-se o impulso decisivo para a criação do PCB em 1922. Caso único na história da criação de partidos comunistas, o PCB originou-se não de um agrupamento de socialistas de esquerda insatisfeitos com suas políticas de conciliação, mas das insuficiências que foram vislumbradas no anarquismo, incapaz de manter, pela força das leis, as conquistas obtidas com uma sofisticada rede de solidariedade e organização.

O artigo Fascínio e desencanto: apontamentos acerca de uma narrativa de viagem à URSS, de Edison Lucas Fabrício, nos leva a refletir acerca da relação entre viagem, memória e narrativa, com base no livro Lágrimas na chuva – uma aventura na URSS, de Sérgio Faraco. Embora a experiência de viagem tenha ocorrido na década de 1960, o relato de Faraco foi publicado primeiramente apenas em 2002, na forma de capítulos, na imprensa no Rio Grande do Sul. Essa distância temporal deveu-se à prisão do autor, em 1965, e aos “anos de chumbo”, que tornavam no mínimo imprudente quem se aventurasse a um relato como esse, que tece considerações sobre o cotidiano da União Soviética, em meados da década de 1960, e sobre as relações estabelecidas com os militantes do Partido Comunista Brasileiro (partido ao qual Faraco se filiou quando residia no município catarinense de Blumenau).

Três resenhas dialogam fortemente com os artigos do dossiê, referindo-se a publicações feitas no Brasil, em 2017, que sintomaticamente dão ênfase à divulgação de materiais produzidos na Rússia revolucionária, na sua maior parte até então inéditos em português. Fabrício Leal de Souza comenta a coletânea organizada por Daniel Aarão Reis Filho, Manifestos vermelhos e outros textos históricos da Revolução Russa; Jorge Luiz Zaluski apresenta o livro A revolução das mulheres: emancipação feminina na Rússia soviética – artigos, atas, panfletos, ensaios, organizado por Graziela Schneider Urso; Camila Zucon Ramos de Siqueira e Frederico Alves Lopes tratam do livro A construção da Pedagogia Socialista: escritos selecionados, com textos de Nadezhda Krupskaya. Livros que agregam novos elementos às reflexões sobre o marco revolucionário de 1917, também elas centenárias.

Além dos textos e resenhas que compõem o Dossiê, neste número trazemos os artigos: A regeneração, pela ordem, contra a anarquia: o léxico político da criação da província Cisplatina (1821-1823), cujo autor é Murillo Dias Winter; História ambiental da Capitania de Goiás: mineração e transformação agroecológica da terra (1726-1822), por Fabíula Sevilha; Notas sobre a história ambiental e sua trajetória na Itália, escrito por Gil Karlo Ferri e José Carlos Radin; Breve análise de requerimentos de compra de terras devolutas do termo de Lages: interface entre história política e história agrária, por Flávia Paula Darossi.

Vpered! – em russo, avante! Boa leitura!

Adriano Luiz Duarte (UFSC)

Janice Gonçalves (UDESC)


DUARTE, Adriano Luiz; GONÇALVES, Janice. Apresentação. Fronteiras: Revista catarinense de História. Florianópolis, n.30, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Trabalho, saúde e medicina na América Latina | Mundos do Trabalho | 2015

Na primeira metade do século XX, consolidou-se na medicina um campo de conhecimento diretamente preocupado com a saúde dos trabalhadores. Em contraste com a higiene social e os esforços característicos da saúde pública, a medicina do trabalho visava prevenir os acidentes de trabalho e diagnosticar doenças que afetavam especiicamente os trabalhadores. Embora as razões para o surgimento da medicina do trabalho variem de um país para outro, as pesquisas recentes sugerem que houve avanços deinitivos nesse campo a partir da década de 1930.

A medicina do trabalho contrasta com outras áreas da medicina, principalmente porque seu objeto de estudo são cidadãos-trabalhadores, amparados por certos direitos sociais. Pode-se contestar essa ideia dizendo que a igura do operário doente se espalha pela literatura médica desde o século XIX, ou que crianças, mulheres e operários estiveram no âmago das discussões médico-sociais de todo o período. Ou ainda, que no quadro das polêmicas sobre a degeneração da raça, não havia muita diferença na abordagem de todos esses setores sociais, de modo que as fronteiras entre a deinição de trabalhadores e de pobres não estava muito clara. Leia Mais

Movimentos sociais urbanos | Mundos do Trabalho | 2012

O que delimita, o que abrange, afinal, a história social do trabalho: os seus temas/problemas próprios ou os modos específicos de abordá-los? A questão persistiu ao logo de toda a organização do dossiê Movimentos sociais urbanos, ora apresentado. A dúvida é ainda mais cabível pelo fato de o convite para organizar o presente número nos ter sido feito supondo-se que o anterior seria dedicado aos movimentos sociais rurais; esse era, portanto, nosso horizonte de expectativas (por razões técnicas, os editores optaram pela inversão dos dossiês).

Nos últimos anos, a história social do trabalho /orienta-se pela superação de dicotomias que demarcaram nosso campo de pesquisas. Nesse movimento, os estudos sobre pós-emancipação reconfiguraram os limites, por exemplo, entre “trabalho escravo” e “trabalho livre”, escravidão e imigração. Do mesmo modo, parece haver o esforço para ultrapassar divisões pouco elucidativas entre rural e urbano, arcaico e moderno, nacional e estrangeiro. Num certo sentido, os pesquisadores caminham para isso, enfatizando as continuidades entre práticas recorrentes nas fazendas escravistas e nas indústrias de ponta do capitalismo mais avançado; as conexões entre o rural e o urbano; as permanências do trabalho dependente, precário ou em condições análogas às da escravidão na chamada I República – apenas para citar exemplos caros aos estudiosos dos mundos do trabalho. Leia Mais