Um médico brasileiro no front: diário de Massaki Udihara na Segunda Guerra Mundial | Massaki Udihara

É inverno. Um jovem de óculos, sentado em frente a uma lareira, escreve. Fora, cai neve nas montanhas da Itália. Esta imagem pareceria romântica, não fossem as condições em que o jovem de óculos escreve. Ele é Massaki Udihara, primeiro-tenente das Forças Expedicionárias Brasileiras, a FEB, durante a campanha brasileira na Segunda Guerra Mundial. Durante toda a sua participação na guerra, o jovem escreveu um diário, que começa no dia 29 de junho de 1944 e vai até o dia de seu retorno a São Paulo, 16 de junho de 1945.

O que é um diário senão as anotações mais íntimas daquele que escreve? É na realidade um monólogo consigo mesmo, uma forma de expressão daquilo que está ao seu redor, são observações, impressões, julgamentos que têm o centro no autor, sem a preocupação de ser avaliados por leitores ou críticos. O diário é uma forma de extravasar aquilo que se tem dentro de si através de palavras.

É por isso que o jovem de óculos escreve. A experiência vivida durante a Segunda Guerra Mundial, desde a partida do Rio de Janeiro, passando pelos campos de batalha na Itália, até o retorno, tudo é persistentemente anotado pelo jovem Udihara, dia a dia, sem falhas. E como leitores, não devemos avaliar seu conteúdo, julgar suas palavras, devemos apenas entender que se trata de anotações de uma pessoa que vive uma experiência.

Ao decidir pela publicação do diário de seu pai, Maria Lúcia Udihara está disponibilizando ao grande público o contato com uma pessoa de quem passamos a gostar à medida que acompanhamos o seu cotidiano. Numa edição bem cuidada, com fotografias e três artigos que complementam o texto, Um médico brasileiro no front é uma leitura que seduz pelo conteúdo e pela forma.

A riqueza do diário está na compreensão de que são as anotações de um tenente da reserva que se vê convocado para a guerra e percebe de imediato que, a partir daquele momento, sua vida foi fracionada. A experiência da guerra é um interregno em sua vida, sem nenhum controle sobre as suas ações e sem nenhuma predição sobre o futuro. Já no primeiro dia, anota que “tudo já se escapou da minha vontade” (29.6.1944, p. 41). Sua história de vida como médico, filho de imigrantes japoneses, nada disso faz diferença. O embarque no navio que o levará para a Itália traça uma linha de ruptura que o coloca fora de todo o circuito de seu passado. Sabe-se sobre sua vida pelas informações contidas nos artigos de Paulo Yokota, ‘Um grito pacifista’, e Jeffrey Lesser, ‘Udihara e os projetos de etnicidade nipo-brasileira, 1936-2002’, que precedem o diário. Caso contrário, não haveria como localizar o autor. O início do diário coincide com a trajetória do tenente Udihara.

Daí para frente, o diário se desenrola em torno da obediência às ordens e de sua percepção acerca delas. Ele é um soldado, e isso o tempo todo. Mas a guerra do tenente Udihara não é a dos avanços contra os inimigos, das derrotas ou das estratégias militares. Não espere o leitor um livro sobre a Segunda Guerra Mundial ou sobre a marcha da FEB na Itália. A reconstituição histórica desses acontecimentos está disponível em publicações citadas por Roney Cytrynowicz no artigo ‘A memória democrática da participação brasileira na Segunda Guerra’, também apresentado como prefácio.

A guerra do tenente Udihara é o intenso vaivém de ordens e contra-ordens, da falta de organização e planejamento, do amadorismo dos oficiais encastelados em seus gabinetes. Sua jornada, como a de todos os soldados brasileiros na Itália, foi marcada pelas esperas e pelos deslocamentos sob o fogo dos alemães, sob tensão permanente. Mas a grande contribuição deste diário não está na história militar. A história da Segunda Guerra é apenas o cenário: a trama é o ser humano que emerge desse cenário de ferimentos e mortes. E também, tal como num haicai (poesia japonesa), as descrições diárias da natureza, das mudanças climáticas. A sensibilidade do autor se revela quando percebe o florescimento das ameixeiras indicando o início da primavera: “houve momento em que senti o desejo de ficar louco… Isso só para ficar longe de tudo isso” (21.3.1945, p. 302).

O diário é por vezes monótono, como o próprio autor constata. A maneira como escreve, numa redação clara e direta, revela que o tenente Udihara foi uma pessoa cujo amor pelas leituras tornou extremamente sensível à condição humana. Ele se mostra preocupado com a alimentação e os uniformes dos soldados, com a falta de banho que chegou a durar 45 dias. Sua sensibilidade se revela quando fala sobre os padioleiros sobre as mulas que transportavam cargas, cujos trabalhos eram essenciais, mas, sabia ele, jamais seria reconhecido. Sobre a saúde dos soldados e o descaso dos médicos brasileiros que “não examinam, não se interessam e só se lembram de dar uma série bem determinada de comprimidos: aspirina, sulfadiazina, bicarbonato, carvão, contra-tosse, codeína… Tratam tudo, concebível e inconcebível, com isso só. Por aí se imagina qual seja a situação dos doentes, que nem o direito de se dizerem tal têm” (23.11.1944, p. 181). O futuro dos italianos que viveram o dia-a-dia da guerra é também uma preocupação constante, sobretudo o das jovens: “o que será dessa gente toda quando tudo voltar ao padrão … tudo conspurcado, manchado, degenerado” (15.1.1945, p. 248).

A leitura mostra os sentimentos ambíguos do ser humano diante da falta de liberdade: da revolta, classificando os atos dos superiores de ‘nojentos’, à apatia, “achando normal que façam mal aos outros” (5.3.1945, p. 289); do desejo de se tornar selvagem para manifestar o seu estado de espírito, ou achando tudo muito engraçado e divertido (14.9.1944, p. 106). Como ele mesmo diz, “interessa-me o espetáculo humano” (20.7.1944, p. 57). E de fato, é o homem o centro das páginas desse diário. Como diz sua filha na Apresentação, a experiência de Massaki Udihara ultrapassa o limite pessoal e familiar. Para o leitor, ao fim do diário, fica a sensação de pesar por não continuar acompanhando os passos do jovem de óculos. Mas é isso que faz de um livro um bom livro.


Resenhista

Célia Sakurai – Pesquisadora do Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

UDIHARA, Massaki. Um médico brasileiro no front: diário de Massaki Udihara na Segunda Guerra Mundial. São Paulo: Hacker Editores; Narrativa Um; Imprensa Oficial do Estado; Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil, 2002. Resenha de: SAKURAI, Célia. Sangue, mortes e ameixeiras: o diário de um jovem médico. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.10, n.3, set./dez. 2003. Acessar publicação original [DR]

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