Velhos Amigos | Ecléa Bosi

Ouvir o que os velhos têm a dizer sobre o passado raramente é experimentado e entendido como uma atividade aprazível. Identificar a poesia e a beleza contidas no conteúdo das narrativas memoriais é, ainda mais, uma tarefa de difícil realização. A exceção fica por conta dos interessados em estudar a memória, a oralidade, a narratividade e outros temas que vicejam nos campos acadêmicos, cultivados por pesquisadores, intelectuais e similares. Desde a modernidade que a memória parece relegada ao plano dos estudos, se descolando da característica de atividade construtiva do cotidiano humano.

Mas a professora Ecléa Bosi, ao conceber e escrever Velhos Amigos, não se deteve nessas questões, felizmente! Velhos Amigos tem ares de reencontro com narradores do ontem e do hoje, exibindo as fímbrias da teia que estabelecem os elos entre passado e presente. Esse texto estabelece o retorno a Memória e Sociedade; lembranças de velhos, tese de livre-docência da autora, publicada em 1973. Na apresentação do trabalho – originalmente a argüição a tese –, Marilena Chauí, a certa altura, escreveu que “o pensamento compartilhado. Outrora, a filosofia o nomeava: diálogo” (p. XXI). Ao terminar a leitura de Velhos amigos, recordei dessa afirmação esclarecedora. Fui conferi-la e criei a impressão de que Ecléa Bosi constrói essa interlocução de forma saborosa no livro em tela.

Velhos amigos é um livro que contém vinte e duas histórias. Incluo nessa conta a carta de Adélia Prado, dirigida à autora, publicada à guisa de apresentação e, ainda, a introdução. São histórias para ler, reelaborar, recontar, devorar e, até mesmo, ressignificá-las. Longe de serem imóveis, encapsuladas e cristalizadas, são histórias-sementes, instigantes do pensamento e reflexão.1

Acredito que Velhos amigos estabelece um diálogo diacrônico com Memória e Sociedade, sem obliterar a essência das histórias; contrariamente, o livro robustece sentidos encontrados na memória dos entrevistados. Distantes trinta anos, consideradas as datas de publicação, os dois livros se conectam, promovendo uma intertextualidade que atenua a diacronia, abalando a assimetria temporal. Aliás, essa é uma característica da narrativa memorial, na medida em que faz vazar seu sentido pelas fissuras do tempo. Eis que a analogia entre os textos não se dá somente por conta do objeto – com o perdão dos narradores ouvidos -, mas especialmente pela reelaboração das funções das narrativas e de seus significados para autora, já em outro instante histórico e muito mais sensível ao conteúdo estético-pedagógico das entrevistas.

Velhos amigos é um baú de histórias em forma de livro; é legal para ser lido por quaisquer interessados; não obstante, para os leitores especialistas, sua compreensão plena só poderá ser alcançada com a (re)leitura de Memória e Sociedade. Memória e Sociedade é a chave, o responsável por tudo!

Proponho essa avaliação na tentativa de encontrar uma resposta possível à indagação inicial da professora Ecléa Bosi: “De onde vêm as histórias? Elas não estão escondidas como um tesouro na gruta de Aladim ou num baú que permaneceu no fundo do mar. Estão perto, ao alcance de sua mão. Você vai descobrir que as pessoas mais simples têm algo surpreendente a nos contar” (p. 9). Ouso responder essa questão destacando que o baú metafórico da autora está repleto das entrevistas realizadas. Foi lá que a professora buscou e nos trouxe as belíssimas histórias de Velhos amigos. Ao materializar esse ato, a autora cumpre compromissos com a ética que atravessa seus principais trabalhos, o que é exemplar porque demonstra a “função social” da pesquisa com fontes orais, cujo material básico encontra-se na memória de outrem.

A opção pela ética e respeito demonstra que a memória não é depósito de lembranças perdidas; a memória é trabalho e construção, a despeito de que a contemporaneidade apressada cometa atentados ao passado experimentado. Respeito e valorização de “inutilidades” se apresentam em dois momentos do Pinóquio em Auschwitz. O primeiro: “Não jogue nada fora. Isso um dia pode servir para alguma coisa!” (p. 25); o segundo: “As histórias de vida estão povoadas de coisas perdidas que se daria tudo para encontrar: elas sustentam nossa identidade, perde-las é perder um pedaço da alma” (p. 27). A lição é plena: não jogue fora a memória, tampouco, a história. Do contrário, pode-se estar perdendo um pedaço d’alma própria ou de alguém. Talvez um fragmento da identidade de um povo. É uma tarefa difícil na época dos bites e bytes e do deletar espontâneo. Ao cabo, é também a revelação das estratégias metodológicas empregadas na elaboração do trabalho.

Relembro, para finalizar: Velhos amigos é um livro para todos que, não raras vezes, atarantam-se com a contemporaneidade apressada e trivial. Ler um texto dessa natureza e textura é também exercitar a amizade, sentir saudades, reconhecer a própria identidade; é imaginar encontros fraternais, “pois velhos amigos só rejuvenescem; lembrando as loucuras de outros verões/E brindam alegres seus vivos e mortos/ E acabam a noite com novas canções/Conhecem o perigo mas fazem de conta que o tempo não ronda seus corações” (Paulo Simões; Velhos Amigos). Enfim, ler Velhos amigos pode ser reviver amizades, conhecer sua profundidade; é sobremaneira, se sentir humano.

Nota

1 Os títulos das histórias são: Carta à autora; Ao alcance da mão; As crianças de Parma; A ilha da maré; Pinóquio em Auschwitz; O espanta-baratas; O arcebispo e o pastorzinho; Objeto e pé; Os dois judeus de cabelo vermelho; Os rios de Hiroshima; Velhos amigos; Aventura nos confins do mar; A festa de São João; Em Ouro Preto; História de onça; Natal em Florença; Para quem gosta de cabaças; Rapto em Lisboa; A primeira vez que vi um francês; O mistério da bengala oca; Sete cachoeiras e, Setembro.


Resenhista

Eudes Fernando Leite – Professor do Departamento de Ciências Humanas (DCH). Programa de Pós-Graduação em História (PPGH), Campus de Dourados (CPDO) da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).


Referências desta Resenha

BOSI, Ecléa. Velhos Amigos. Ilustrações de Odilon Moraes. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. Resenha de: LEITE, Eudes Fernando. Fronteira: Revista de História. Dourados, v.7, n.13, p.161-164, jan./jun. 2003. Acessar publicação original [DR]

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