Joãosinho da Goméia | Inês Gouveia, Andrea Mendes, Nielson Bezerra e Marlúcia Santos de Souza

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Joãosinho da Goméia | Imagem: Brasil de Fato

O livro Joãosinho da Goméia é obra organizada sob o olhar de quatro pesquisadoras/es. Trata-se de uma coletânea voltada à memória, à palavra e à honra de um dos mais importantes nomes do Candomblé brasileiro: Joãosinho da Goméia. Babalorixá baiano do século XX, João Alves Torres Filho (seu nome de batismo) deixou um legado de conhecimentos afrodiaspóricos e lutas em prol do povo negro e para os saberes de uma religião que extrapola os limites impostos pelo pensamento opressor da colonialidade. Os quatro organizadores da obra – Inês Gouveia, Andrea Mendes, Nielson Bezerra e Marlúcia Santos de Souza –, especialistas nas áreas de Museologia, Patrimônio e História, se dedicam aos estudos sobre a África e suas influências no Brasil, observando como as implicações da africanidade são vistas, ressignificadas e vividas por nós brasileiros no cotidiano.

Joaosinho da Gomea LivroO livro é organizado em doze capítulos na forma de artigos escritos por pesquisadoras e pesquisadores que se debruçaram sobre a vida de Joãosinho da Goméia, observando a densa atmosfera cultural e religiosa negra que esta figura impôs à visibilidade do Candomblé no Brasil. Estes capítulos são divididos em duas partes. A primeira, intitulada “Memória e Representatividade”, abarca os seis primeiros capítulos e atrai o leitor para um plano imersivo na vida e na pessoa de Joãosinho da Goméia, evidenciando um homem negro envolvido com a causa cultural de seu povo e de seu tempo, conquistador dos espaços de luta e poder em prol de uma visão positiva de sua crença e suas práticas sociais e religiosas. Autoras e autores evidenciam um sacerdote que atuava nas múltiplas representatividades: homem negro, homoafetivo, artista e Babalorixá. É possível observar que qualquer tentativa de compreender Joãosinho da Goméia sem se atentar a estes marcadores será em vão, pois em todas as suas ações de vida enaltecia os valores e as lutas que a ideologia dominante cristã e heteronormativa ao seu redor repudiava, e por isso se tornara um ícone da luta e resistência subalterna de sua época.

A segunda parte da obra, “A Memória e a Cidade”, percorre o trajeto de vida de Joãosinho da Goméia, de seu nascimento na Bahia até sua fixação no Rio de Janeiro, quando se consolida enquanto o sacerdote conhecido pelo grande público. Assim, os seis últimos capítulos versam sobre as dimensões que seu conhecimento e sua imagem tomam frente ao espectro social a partir da segunda metade do século XX pelos trajetos físicos e ideológicos que percorreu em sua vida. Os textos evidenciam que os espaços por onde o Babalorixá adentra atestam sua grandiosidade contributiva aos estudos afrobrasileiros dentro das esferas da religião, da política e da academia, demonstrando um conhecimento ancestral que justifica e reforça as lutas por igualdade e reconhecimento no seu presente vivenciado que atinge e ressoa no nosso presente com as mesmas realidades de outrora.

As duas partes da obra, como vemos são ricas em informações textuais e estímulos visuais, tendo em vista análises iconográficas que transportam quem lê para a atmosfera afroreligiosa de Joãosinho da Goméia. Contudo, apresentam algumas imperfeições que devem ser destacadas. Em primeiro lugar, o diálogo com as fontes orais poderia ter sido mais aprofundado, trazendo a voz do sacerdote para dialogar energeticamente com determinadas partes da obra. Uma riqueza maior de detalhes poderia ter sido vislumbrada caso as transcrições fossem analisadas em seu teor social e mítico, trazendo para o campo de visão as narrativas africanas por trás do conhecimento litúrgico explicitado pelo sacerdote em suas falas, entrevistas e cânticos transcritos. Assim, chegamos, então, a um segundo ponto frágil da obra: a decolonialidade. Trazer a voz do sacerdote, após meio século de sua morte, é permitir um espaço de diálogos para levantar questões sobre poder e posicionamento de sujeitos nos discursos, observando como a palavra ancestral africana se descortina por meio das ações e falas de João da Goméia. Neste sentido, as obras de referência a alguns textos nem sempre pertencem ao panorama decolonial de análise, o que por vezes deslizam no poder argumentativo em debater as temáticas afrodiaspóricas que poderiam ir para além do crivo de análise acadêmica. Uma maior abertura para a utilização de autoras e autores africanos poderia ter sido feita, pois muito se perde em riqueza de informações ao se tratar de conteúdos que ressoam aspectos de uma África que se fazia viva em Duque de Caxias.

Essas imperfeições, contudo, não retiram o mérito da obra, sobretudo no que se refere ao tratamento metodológico dos textos. Os doze artigos escritos por pesquisadoras e pesquisadores que pertencem aos eixos pós-coloniais e decoloniais de pesquisa sobre Joãosinho da Goméia oferecem um panorama rico em fontes para compor o quadro de informações relativas às contribuições do sacerdote para a história e memória da religiosidade negra de Duque de Caxias, do Rio de Janeiro e do Brasil. Neste ínterim, destaco a multiplicidade de estímulos textuais e iconográficos que se prestam a trazer um pouco da vida e obra do Babalorixá e ativista da causa negra João Alves Torres Filho. São fontes extraídas de jornais e revistas da segunda metade do século XX, que trazem o Sacerdote enquanto um construtor e defensor de narrativas contra-hegemônicas de seu período. Fontes orais também são evidenciadas por meio de transcrições de entrevistas realizadas no final da década de 1930 e início dos anos de 1940, contidas no acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da USP.

Mas, a obra fala também de um artista. Um homem a frente de seu tempo na vida, na fé e nos palcos. Por isso, fontes midiáticas também são analisadas, apresentando trechos de entrevistas em jornais, rádios e outros meios de comunicação. Desta feita, trazem um homem negro sobrevivente e perpetuador das memórias e lutas negras no Brasil do século XX, propagador de seus ideais. Um homem que se fez conhecido e respeitado pelo grande público.

No que diz respeito à religião, a análise de todo o acervo litúrgico de sua Casa de Axé efetuada pelos autores demonstra a preocupação em desvendar os mistérios da tão afamada “Goméia”. Por isso, são analisadas as indumentárias utilizadas em seus ritos e festividades, buscando compreender não apenas ritualística que o Candomblé de Caboclo da Goméia trazia, mas principalmente suas proveniências antropológicas e sociais em um Brasil marcado pelos domínios ideológicos da colonialidade.

Cena ritual no Terreiro da Gomeia Imagem Brasil de Fato2

Cena ritual no Terreiro da Goméia | Imagem: Brasil de Fato

Vale ressaltar que todas as fontes descritas acima são interpretadas à luz de referenciais teóricos como os conceitos de oralidade, memória e patrimônio. Para tal, as autoras e autores se valem de métodos diversificados, como a análise do discurso, principalmente no que se refere às fontes midiáticas. Outro método adequadamente utilizado é da história oral, considerando um acervo rico e denso de entrevistas e gravações de falas e cânticos, ícones dos quais alguns capítulos se debruçam a fim de estudar a trajetória de Joãosinho da Goméia. Ancorada em fontes escritas, a metodologia de análise documental também se faz presente na obra, evidenciando a riqueza de informações contidas em documentos e manuscritos conseguidos no Instituto de Estudos Brasileiros, agregando valor aos estudos sobre os entornos físicos e ideológicos do Babalorixá, a saber a cidade de Duque de Caxias e na localidade da Goméia.

Ancorada nessas metodologias, a obra cumpre a proposta descritiva e analítica em compreender as multifacetadas personas que João da Goméia possuía frente a sua realidade de homem negro que percorreu longas estradas no século XX. Assim, de modo geral, Joãosinho da Goméia é uma obra que atende ao que o tema propõe: evidencia um personagem engajado na sobrevivência da arte e cultura negra por meio da conquista dos espaços de poder e conhecimento, reinventando ambientes e ressignificando os espectros pelos quais o Candomblé era observado no século XX. Difusor do Candomblé de Caboclo no sudeste brasileiro, Joãosinho da Goméia foi criticado em sua época por alguns estudos antropológicos que buscavam ancoragem para os estudos das religiões afrobrasileiras nas tradições do Candomblé de Ketu. A obra demonstra a firmeza do personagem em defender seu lócus enunciativo, a potência de um Candomblé a sua maneira, e uma luta pelo reconhecimento de sua ótica sobre a religiosidade que acreditava e vivia. As visões do Sacerdote ressoam na atualidade, mostrando um viés anticolonial de análise sobre a força e a resistência de saberes centrados em uma perspectiva negra de poder.

Assim, o livro aqui resenhado contribui em muito para os estudos afrodiaspóricos nos temas que concernem à oralidade no Candomblé, bem como aos assuntos relacionados às lutas das religiões afrobrasileiras pela sobrevivência. Também é possível utilizar-se de partes da obra para os estudos sobre gênero nas religiões de matrizes africanas e com isso dialogar sobre questões de poder, influência e liderança das instâncias afroreligiosas do século XIX e XX, sendo assim uma importante e potente obra para ser utilizada dentro e fora dos espaços acadêmicos.

Sumário de Joãosinho da Goméia

Joãosinho da Goméia: um criador de brasis | Inês Gouveia, Andrea Mendes, Nielson Bezerra, Marlúcia Santos de Souza

  • Parte I. Memória e representatividade
    • 1. João da Goméia – pedrinha miudinha, lajeiro tão grande nos estudos brasileiros | Inês Gouveia e Izi Ferro
    • 2. O narrador João da Goméia/Tata Londirá: azuelando e encantando para além das narrativas coloniais | Jackeline Rodrigues Mendes e Marta Ferreira
    • 3. “Na mata tem morador”: da presença e saber Caboclo no Brasil encantado de Joãozinho da Goméia | Luiz Rufino
    • 4. João da Goméia: Enfrentamentos contra-hegemônicos e midiativistas do Rei do Candomblé | Ricardo Oliveira de Freitas
    • 5. Guerra no Candomblé: Os bastidores da disputa por poder entre os filhos de santo de Joãozinho da Goméia (1971-1972) | Andréa Nascimento
    • 6. Rumbeiras, travestis e a Goméia: Desafios à territorialidade masculina | Rodrigo Daniel Hernández Medina
  • Parte 2. A Memória e a Cidade
    • 7. João e o mar: da Bahia de Todos os Santos à Baía de Guanabara | Andrea Mendes
    • 8. A Cidade e Joãozinho da Goméia nos anos de 1950 e 1960 | Marlucia S. Souza
    • 9. Joãozinho da Goméia, Memória e Patrimônio: Os usos do acervo do Instituto Histórico da CMDC | Tania Amaro e Antônio Augusto Braz
    • 10. Rastros e lastros da presença de Joãozinho da Goméia no Instituto Histórico da Câmara Municipal de Duque de Caxias | Adriana Batalha dos Santos
    • 11. Duque de Caxias e a Goméia: memória, patrimônio e os usos do passado | Eliana Laurentino e Nielson Bezerra
    • 12. Dimensões da memória em Tata Londirá: o Canto do Caboclo no Quilombo de Caxias | Gabriel Haddad Gomes Porto, Leonardo Augusto Bora e Vinícius Ferreira Natal
  • Sobre os Autores

Resenhista

Andre de Jesus LimaAndré de Jesus Lima é Mestre em Ensino e Relações Étnico-Raciais pela Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB – Campus Sosígenes Costa / Porto Seguro). Também é Historiador pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB – Campus XVIII / Eunápolis). Atua no ramo de pesquisa voltado ao protagonismo negro nas esferas de conhecimento, com ênfase nos estudos sobre as religiões e religiosidades afrobrasileiras. Tem experiência como Professor de História e Filosofia da Rede Estadual de Ensino da Bahia. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9054331029753368; Orcid: 0000-0003-0532-8913; instagram: @andrelimonada; E-mail: [email protected].


Para citar esta resenha

GOUVEIA, Inês; MENDES, Andrea; BEZERRA, Nielson; SOUZA, Marlúcia Santos de (Org.). Joãosinho da Goméa. Belo Horizonte: Fino Traço, 2021. 308p. LIMA, André de Jesus. O Pai de Santo de Caxias. Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n.7, ago./set., 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/sabedoria-que-conquista-espacos-resenha-de-joaosinho-da-gomeia-organizado-por-ines-gouveia-andrea-mendes-nielson-bezerra-e-marlucia-santos-de-souza/>

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