Como pode um povo vivo viver nesta carestia: o movimento do custo de vida em São Paulo (1973-1982) | Thiago Nunes Monteiro

A emergência dos movimentos sociais diversos e de grande vitalidade é uma das dimensões históricas centrais da conjuntura das lutas de resistência à ditadura civil-militar e de redemocratização do país. Em um ambiente de efervescência, o período registra uma grande diversidade de movimentos e práticas urbanas que se configuram como dimensão fundamental do tecido político e social daquele tempo.

A pesquisa sobre o tema deixa ver uma série de movimentos sindicais e populares que se disseminaram por todas as grandes cidades do país, os quais, com uma multiplicidade de arranjos, põem em foco a própria noção de sujeito coletivo. Ao lado das lutas estudantis e da campanha de amplitude nacional pela Anistia, movimentos sociais urbanos dos mais diversos – por transporte, por habitação, por creches, contra enchentes, contra a carestia – e articulações sindicais independentes e de oposição, além de comissões de fábrica e outros grupamentos característicos da época, emergem como os novos personagens no terreno das lutas sociais. Com suas entidades e estratégias, clubes de mães, associações de moradores, centros populares, comissões de fábrica, oposições sindicais, manifestações públicas, greves, assembleias populares, abaixo-assinados, ocupações urbanas e quebra-quebras propõem a discussão sobre a força desse campo na configuração da cena política de então.

E há que se pontuar que os estudos sobre o período, com diferentes abordagens e questões, concordam em apontar a relevância dos chamados novos movimentos sociais para a compreensão da história social e política daquele tempo.

Para além de uma revisão teórica de paradigmas e categorias, pondo em foco a própria noção de sujeito coletivo, a reflexão de questões como as das relações entre classes populares e Estado, das dinâmicas dos processos de redemocratização e de reorganização da sociedade civil, das transformações da cultura política, da presença da Igreja Católica e de seus diversos organismos na articulação dos movimentos sociais, dentre outras, renovaram perspectivas sobre esse campo temático. A questão da constituição de um campo novo de organização e expressão, bem como de novos espaços e mecanismos de participação, além da formação de novos espaços e experiências culturais dos trabalhadores e dos setores populares, revela-se como tema importante da discussão. E as questões das relações de poder e dominação, e da recomposição da hegemonia política no período de redemocratização, ou da chamada Nova República, apresentam-se como problemática de destaque dessa História recente. Ademais, as pesquisas sobre a constituição do chamado novo sindicalismo e sobre os grandes movimentos grevistas dos anos 1978/1981 também articularam uma gama extremamente rica e variada de estudos, que, inclusive, se propunham a pensar a formação de uma cultura operária característica daquele momento.

Não obstante tais avanços, há também que se destacar que, principalmente no campo da pesquisa histórica, as análises focalizaram muito mais os movimentos sindicais, deixando em segundo plano os grupamentos mais transitórios e informais que conformaram os chamados movimentos sociais urbanos. Tal viés das análises ajuda a compreender por que um movimento da importância do Movimento do Custo de Vida, uma das articulações mais relevantes dos movimentos populares e de resistência à ditadura no período, embora sempre lembrado e citado em diversas dessas análises, tenha suscitado tão pouco a pesquisa, tanto por parte dos historiadores como de outros cientistas sociais.

Assim, é com grande satisfação que vejo a publicação do estudo de Monteiro sobre a atuação do Movimento do Custo de Vida em São Paulo, entre os anos de 1973 e 1982. O texto, organizando uma pesquisa detalhada e criteriosa sobre o Movimento do Custo de Vida (MCV), traz uma expressiva contribuição para a discussão sobre os movimentos populares do período.

O livro apresenta reflexões importantes e encaminha questões originais sobre a história do movimento do custo de vida, destacando-se a questão da articulação entre movimentos populares e a atuação da Igreja e outros grupamentos da esquerda no período.

O texto, denso, porém de leitura corrente, costura-se a partir da pesquisa em uma significativa quantidade de documentos originais e inéditos sobre o tema tais como panfletos, informes, boletins, fotografias, charges, jornais e cartas às autoridades, documentos sobre o MCV do acervo do Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo (DEOPS-SP).

No decorrer dos três capítulos que organizam o texto, sem cair em uma análise meramente descritiva, de forma reflexiva e criativa, articulando o diálogo com referências teóricas, dentre as quais se destacam E. P. Thompson e Bronislaw Baczko, e percorrendo uma bibliografia significativa sobre a conjuntura e os movimentos sociais, o autor discute interessantes questões sobre o movimento e as lutas sociais daquela conjuntura.

No capítulo inicial, que problematiza as disputas pela hegemonia na condução do MCV, Monteiro apresenta um histórico cuidadoso do movimento, destacando os momentos de sua criação, o seu crescimento e a expansão da cidade de São Paulo para outros estados, além de analisar as disputas internas entre as várias forças políticas que nele se articularam, assim como a sua transformação em Movimento Contra a Carestia, no final dos anos de 1970 e início dos anos de 1980. Aí, em meio a panfletos, relatos do DEOPS/SP, gráficos sobre custo de vida, mapas da periferia da cidade, fotografias e charges, o autor salienta a dinâmica do movimento no decorrer daqueles anos, pontuando seus avanços e inflexões, suas estratégias de luta (como a realização de campanhas de abaixo-assinados, jornadas contra a carestia e grandes manifestações e assembleias populares), sua inscrição nos territórios periféricos da cidade, a pluralidade da militância que o anima e o progressivo deslocamento de sua direção dos organismos da Igreja para as lideranças do Partido Comunista do Brasil (PC do B).

Particularmente interessado na discussão sobre a articulação das forças políticas na condução do movimento, o autor acompanha a formação e a atuação das lideranças, além de analisar a interação, não só com movimentos católicos, mas também com as diversas tendências da esquerda, com os partidos políticos da oposição e com os movimentos sindicais. Aqui, ao destacar a abrangência do movimento e de suas propostas, o estudo de Monteiro reafirma a complexidade do campo popular naqueles anos. E ao perseguir a atuação de algumas importantes lideranças do movimento, também nos mostra a forma misturada e multifacetada daquela militância, na qual um mesmo personagem, por vezes, e de forma simultânea, assume papéis no clube de mães, na organização de bairro, na direção do sindicato e na militância partidária.

Temas raramente abordados nos estudos sobre o MCV e outros movimentos sociais, a construção, a difusão e a disputa ao redor do imaginário social sobre o movimento e as questões da carestia e do custo de vida no período configuram a discussão central que organiza a segunda parte do texto. Em parte deste capítulo, em meio a imagens de donas de casa, “recatadas e do lar”, que brigam com comerciantes gananciosos, sendo usadas pela ditadura na “Campanha da Pechincha” e em slogans como “Diga não à inflação”, “Corrente do povo contra a inflação” e “Defenda-se! Ajude a SUNAB a defender você”, encontramos sugestões importantes que sinalizam para a necessidade de maiores estudos sobre as campanhas governamentais de propaganda sobre inflação e carestia amplamente veiculadas nos meios de comunicação no período e que também ajudaram a compor e defender as fortes imagens do Brasil Grande no período da Ditadura.

Também aqui, como com relação à militância e à relevância das mulheres na projeção de uma identidade feminina e periférica do movimento, sobressai o papel da mulher no desenho desse imaginário sobre o custo de vida, bem como o caráter autoritário e machista da propaganda institucional.

No entanto, nesta parte do texto, o que ganha maior destaque é o minucioso trabalho realizado sobre a produção e a difusão pelo MCV de um imaginário próprio e peculiar sobre si mesmo, sobre a sua atuação e sobre as questões da inflação, da carestia e das condições de vida dos setores populares. Verticalizando a sua análise nos materiais produzidos pelo movimento e no escrutínio de suas estratégias e atividades, Thiago torna visível expressivas dimensões das narrativas, espaços e produtos que articularam as práticas culturais e de comunicação do movimento. Trabalhando mais na conformação da linguagem e dos conteúdos das práticas e dos produtos do que nas redes de comunicação, o autor traz para o debate a análise de uma ampla gama de materiais produzidos pelo MCV. Questões como a conformação de uma linguagem própria, carregada da visualidade de desenhos, quadrinhos e charges, e a construção de personagens militantes e briguentos através da narrativa visual, slogans, palavras de ordem e paródias musicais, destacam-se na rica reflexão proposta sobre o imaginário do movimento.

A parte final do livro explora as relações entre o MCV e as várias instâncias governamentais, apresentando-se como um campo propício para a difícil discussão sobre as relações mais amplas entre Estado e movimentos sociais no período. Em um trabalho cuidadoso, embora menos denso do que nos capítulos anteriores, com base em relatórios do DEOPS-SP e em declarações de agentes públicos de várias instâncias do Executivo e do Legislativo, o autor propõe contribuir para a compreensão das representações que agentes do Estado construíram sobre os movimentos populares e de como, com base em tais representações, traçaram estratégias de atuação em relação aos movimentos. Buscando acompanhar a dinâmica de tais relações políticas nos diferentes momentos daquela conjuntura, identificando desde prisões de militantes e repressão às manifestações até a formação de comissões de negociação, propõe problematizá-las como espaço em que as diversas posturas dos governos e instituições do Estado oscilavam entre a repressão, a negação e a negociação. Cuidadoso em suas conclusões, na discussão com as visões de vários estudos que também abordam o tema das relações entre Estado e classes populares no período, o autor identifica diversas questões que aguardam maior atenção dos estudiosos, principalmente no que se refere à presença dos setores populares na chamada transição política e nas lutas contra a ditadura e pela redemocratização do país.

Por derradeiro, cabe novamente ressaltar a satisfação de ver a publicação de uma dissertação de Mestrado em História, sobre o tema dos novos movimentos populares, com a qualidade da aqui apresentada. Resta também indicar que, nestes tempos de ataque aos direitos dos trabalhadores que hoje vivemos, o texto de Monteiro, trazendo referências sobre um movimento de resistência da vitalidade do MCV e contribuindo para que tais experiências assumam a sua dimensão histórica, propõe questões importantes e que insistem em se fazer pensar sobre a organização, a atuação e a articulação dos movimentos sociais na atual conjuntura.


Referência

MONTEIRO, Thiago Nunes. Como Pode Um Povo Vivo Viver Nesta Carestia: O movimento do custo de vida em São Paulo (1973-1982). São Paulo, Humanitas/Fapesp, 2017. 272p.


Resenhista

Heloisa de Faria Cruz – Possui graduação em História pela University Of Wisconsin (1975), mestrado em História Social pela Universidade Estadual de Campinas (1984) e doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (1994). É professora do Programa de Pós-Graduação e do Curso de Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo- PUC-SP desde 1986 e, atualmente, coordena o CEDIC- Centro de Documentação da mesma Universidade.


Referências desta Resenha

MONTEIRO, Thiago Nunes. Como pode um povo vivo viver nesta carestia: o movimento do custo de vida em São Paulo (1973-1982). São Paulo: Humanitas; FAPESP, 2017. Resenha de: CRUZ, Heloisa de Faria. Tempos Históricos, v. 21, n.2, p. 558-562, 2017. Acessar publicação original [DR/JF]

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