Da senzala ao palco: canções escravas e racismo nas Américas (1870-1930) | Martha Abreu

O livro Da senzala ao palco, ao investigar e comparar como os cantos e as danças dos negros escravizados nos Estados Unidos e no Brasil transitaram das senzalas para a indústria cultural, entrega informações importantes, faz reflexões interessantes e aponta caminhos instigantes. Em edição digital, o livro oferece aos leitores cerca de 200 ilustrações, fotos, capas de partituras, cartazes e jornais da época, além de 48 fonogramas e cinco vídeos com canções e danças. Ou seja, é uma obra que não só pode ser lida, mas também vista e — muito importante — escutada. Recorro à aguda observação de Shane e Graham White, citada por Martha Abreu logo no início de seu livro: “A cultura escrava foi feita para ser ouvida”. (cit. p. 83)

Muitas questões em Da senzala ao palco mereceriam discussão aprofundada. Mas, por razões de espaço e foco, vou me ater a duas delas, que têm a ver com o racismo e a resistência ao racismo: as contradições do “folclore do Pai João” e o papel do cantor e compositor Eduardo das Neves, o “Crioulo ‘udu”, na cena musical do pós-abolicionismo e início do século XX.

Começo pela questão das semelhanças e diferenças entre as figuras emblemáticas do Uncle Thomas, nos EUA, e do Pai João, no Brasil. Para muitos estudiosos e folcloristas brasileiros, os dois velhos escravos seriam símbolos quase idênticos da submissão resignada dos cativos a seus senhores. Martha Abreu, que em trabalhos anteriores já havia tomado distância dessa associação,1 traz neste livro novos argumentos e exemplos que enfraquecem tal interpretação.

Não há dúvida de que o personagem principal de Uncle Tom’ S Cabin (traduzido para o português como A cabana do Pai Tomás), de Harriet Beecher Stowe, publicado como folhetim em 1851 e como livro no ano seguinte, era um símbolo de resignação diante das violências e humilhações do cativeiro. Stowe, uma abolicionista muito religiosa que pretendia denunciar os abusos sofridos pelos escravos nas fazendas do Sul dos Estados Unidos, construiu em Uncle Tom a figura de um mártir. Como Cristo, ele aceitava os sofrimentos e perdoava seus carrascos. Stowe, que queria mobilizar corações e mentes contra o regime do cativeiro, acertou em cheio com o caráter do personagem. Até o início da Guerra Civil, Uncle Tom´s Cabin vendeu nada menos de 4 milhões e meio de exemplares nos EUA e no mundo — um recorde para a época. Ajudou a impulsionar a luta pelo fim da escravidão nos EUA.

Mas seria nosso Pai João uma reprodução, ainda que mitigada, do velho e resignado escravo norte-americano? Há poucos elementos que apontem claramente nesse sentido. É verdade que vários folcloristas, alguns deles notáveis, como Arthur Ramos, chegaram a trilhar esse caminho, ainda que apresentando poucas provas e exibindo evidentes contradições. No livro O folclore negro do Brasil, publicado em 1935, Ramos admite que as canções daquilo que batizou como “o folclore do Pai João´ poderiam indicar “reação” à escravidão. Mas uma “reação resignada”, segundo ele.

Pelo menos no caso das canções de escravos, Martha Abreu demonstra que há mais resistência do que resignação na figura do Pai João. Ela recolheu vários exemplos na nossa música popular da segunda metade do século XIX que mostram que Pai João – ou Pai José ou Pai Francisco ou Pai Manoel ou Pai Miguel ou Pai Mateus, pois foram muitos os nomes atribuídos ao velho escravo –, longe de se vergar submisso diante da exploração e do racismo, buscava resistir, com os meios a seu alcance, à opressão e à desqualificação do cativeiro. Tudo bem, ele não era um Zumbi, disposto a fugir para um quilombo e a pegar em armas para lutar pela liberdade. Mas tampouco era subserviente. Não adotava os pontos de vista de seus algozes. Fazia críticas, recorria à ironia, expunha a hipocrisia, desnudava o racismo, repelia o discurso desqualificador de que os negros eram inferiores aos brancos. Ou seja, resistia como podia.

Em apoio a esse raciocínio, Martha Abreu lança mão dos versos do lundu “Pai João”, de autor anônimo, obra seminal que circulou por todo o Brasil na segunda metade do século XIX, sofrendo inúmeras alterações e gerando um sem número de variantes. Infelizmente, não existe ainda nenhuma gravação da versão original e integral de “Pai João” – espero que por pouco tempo. Na falta do registro sonoro, seguem as estrofes existentes em Da senzala aos palcos. Foram escritas na chamada “língua de preto”, que reproduzia ou buscava reproduzir o português falado pelos velhos africanos:

Quando iô tava na minha tera,

Iô chamava Capitão

Chega na tera dim baranco,

Puxa enxada — Pai João.

Quando iô tava na minha tera,

Comia muita garinha,

Chega na tera dim baranco,

Carne seca com farinha.

Quando iô tava na minha terá

Iô chamava generá,

Chega na tera di baranco,

Pega o cêto vai ganhá.

Dizofôro dim baranco

Nô si póri aturá.

Tá comendo, tá … drumindo,

Manda negro trabaiá.

Como se vê, as quadrinhas de “Pai João” estão longe de passar uma atitude de submissão. Em momento algum elas adotam ou legitimam os valores dos senhores de escravos. Ao contrário, mostram-se carregadas de críticas ao “sinhô baranco”. Indicam uma atitude de resistência, como observa Martha Abreu:

Os versos revelam uma enorme compreensão e consciência da situação desigual entre pretos e brancos […]. A sátira aparece com todo o seu potencial crítico e político, e de uma forma bem mais poderosa do que Arthur Ramos conseguiu admitir e propor. Pai João, o personagem que se identifica como africano, não demonstra ter um espírito ’resignado’ ou ’acabrunhado pela escravidãoµ. Pelo contrário, apresenta um razoável poder de ação, ao cantar, entre outros versos, que o ’preto fruta co

Baranco – dize quando móre

Jezuchrisso que levou,

E o pretinho quando móre

Foi cachaça que matou.

Baranco dizi — preto fruta,

Preto fruta cô rezão.

Sinhô baranco também fruta

Quando panha casião.

Nosso preto fruta garinha,

Fruta saco de feijão,

Sinhô baranco quando fruta

Fruta prata e patacão

Nosso preto quando fruta

Vai pará na correção

Sinhô baranco quando fruta

Logo sai sinhô barão.

Rezão ‘[preto furta, com razão] muitos alimentos do próprio senhor […].

Embora o registro mais antigo de “Pai João” encontrado por Martha Abreu tenha sido uma partitura editada em 1896 pela Casa Bevilacqua, do Rio de Janeiro, o lundu já era cantado, pelo menos, desde os anos 1860. O Cancioneiro de Músicas Populares, do português César das Neves, editado no Porto em 1893, obra bastante rigorosa para os padrões da época, trouxe versos e partitura de “Pai João” muito semelhantes aos da Casa Bevilacqua. No pé da página, uma observação relevante: “Esta cantiga era dos pretos, no Brasil, na escravatura. Foi recolhida em 1870. É muito conhecida em Portugal”. 2

Pelo menos seis anos antes, em 1864, algumas quadrinhas de “Pai João” já haviam subido ao palco do Teatro do Ginásio, no Rio de Janeiro, no drama A punição, de Francisco Pinheiro Guimarães.3 No início da peça, um coro cantava nos bastidores a primeira estrofe do lundu, aquela que manda o escravo “puxar enxada´. No primeiro ato, outra quadrinha era entoada pelos cativos. Com forte conteúdo crítico à escravidão, ela não aparece em nenhuma outra versão conhecida de “Pai João”:

Desde que nasce até que morre

Leva o negro a trabalhar

Só depois no cemitério

É que pode descansar.

O livro com o texto do drama, publicado no mesmo ano, traz também uma partitura simplificada da canção.

É interessante registrar que, na abertura de A punição, o personagem João Manuel, dono da fazenda vizinha àquela onde cantavam os cativos, pergunta à irmã: “Oh! Mana Madalena, que berraria é essa?” Ela responde: “São os escravos da fazenda do Turvo, que estão de fado na Ingaba Grande”. João Manuel espanta-se: “Pois o Comendador deixa-os cantar e dançar, quando tem ainda tanto café a recolher?” O diálogo sugere que entre os senhores havia diferentes atitudes em relação às danças, festas e batuques dos escravos.

Não se pode dizer com certeza se Pinheiro Guimarães foi ou não o autor da melodia e das quadrinhas de A punição. O mais provável, porém, é que ele apenas as tenha recolhido no domínio público. Afinal, a peça traz apenas duas das estrofes do lundu. Além disso, Pinheiro Guimarães não era músico, mas dramaturgo bissexto e médico de profissão. Em 1861, teve grande repercussão sua peça História de uma moça rica. Durante a Guerra do Paraguai, partiu como voluntário para o front, onde se destacou no atendimento aos enfermos durante devastadoras epidemias de cólera. Recebeu várias condecorações por bravura no teatro de guerra.

Como costuma acontecer nos casos de forte transmissão oral, “Pai João” ganhou muitas versões diferentes — em alguns casos, com o adendo de refrões inexistentes na canção original. Martha Abreu registra que o lundu foi cantado em circos de cavalinhos, em cafés, em chopes berrantes, nas ruas, em fazendas e em teatros, chegando até os primórdios da indústria fonográfica. Algumas de suas quadras seriam gravadas em 1913 por Eduardo das Neves com o nome de “Preto forro alegre” (Disco Odeon 120.351). A pesquisadora mineira Alexina Magalhães Pinto registraria em 1911 uma “cantiga de palhaço´ em que o preto velho atendia pelo nome de Pai Francisco. Em 1928, em artigo na revista “Antropofagia”, Mário de Andrade publicaria seis estrofes distintas do que chamou de “Lundu do escravo”. Bem mais tarde, Rossini Tavares de Lima recolheria no interior de São Paulo versão de “Pai João” muito semelhante à original.

Ao atravessar e refletir momentos distintos, as temáticas abordadas pelo lundu foram se alterando, embora, de uma forma ou de outra, todas lidassem com a escravidão. Se Eduardo das Neves canta a alegria do escravo que recebeu a carta de alforria, as variantes coligidas por Mário de Andrade retratam cenas do cotidiano do cativeiro. Já a versão original, como vimos, choca-se com a desumanização do cativo, ironiza a pretensa superioridade do “sinhô barão” e questiona seus frouxos valores morais.

Outras canções do “folclore do Pai João” reforçam a ideia de que é um equívoco atribuir à figura do velho escravo ao Sul do Equador o mesmo padrão de resignação existente no personagem criado por Harriet Stowe. “Mãe Maria Camundá”, batuque gravado por Stefana de Macedo (Columbia 4.157-B), nos mostra um Pai José aguerrido, sem qualquer sombra de submissão. Embora o registro fonográfico seja de 1930, a canção é bem anterior. Segundo esclareceu a própria Stefana, ela apenas reproduziu na gravação os cantos de velhos ex-escravos, que ouvira ainda criança em Pernambuco, no comecinho do século XX. Uma de suas estrofes diz:

Pai José em sua terra

Ele tinha su amô

Hoje em terra de branco

Escravo chapinha

Pai José mata feitô

Como se vê, de submisso o Pai José de “Mãe Maria Camundá” não tinha nada.

Uma belíssima toada de 1932, que não veio das senzalas, tendo sido composta no ambiente urbano quase meio século depois da assinatura da Lei Áurea, nos permite perceber outros aspectos dos problemas enfrentados pelo velho escravo — no caso, pelo velho ex-escravo. Em “Pai João” (Victor 33595-B), de Almirante e Luiz Peixoto, na voz de Gastão Formenti, o negro, idoso e alquebrado, revolta-se ao ser alvo das caçoadas de alguns rapazes, que o chamam de Pai João.

Em resposta, ele lembra os muitos serviços que prestou ao Brasil. Lutou na Guerra do Paraguai. Participou do combate à Revolta da Armada. Integrou as tropas em Canudos. Enfrentou os cangaceiros no Nordeste. Suas proezas eram tantas e cobriam um período tão longo, de quase meio século, que os rapazes duvidaram. Mas o velho insiste. Não havia feito tantas coisas para, no final da vida, ser chamado de Pai João: “Deixa dessa bobagem, garotagem, molecagem, que eu sou preto de coragem, sou preto de condição”. E completa:

Sou preto véio

Mas agora eu vou ser franco

Eu tô com os cabelos branco

De tanta desilusão.

Quando era moço,

Fiz a guerra de Canudos

Pra mecês no fim de tudo

Me chamar de Pai João

Ou seja, para o “preto véio”, ser chamado de Pai João era um insulto. Queria ser tratado como um brasileiro e não como um cidadão de segunda classe.

Deixo momentaneamente de lado o “Pai João” e passo ao “Crioulo Dudu”. Eduardo das Neves foi um dos principais nomes da música popular brasileira das primeiras décadas da República. Em outros textos anteriores, Martha Abreu já havia destacado a importância do seu trabalho.4

Em Da senzala ao palco, a autora faz uma interessante comparação entre a trajetória de Dudu e a do cantor negro norte-americano Bert Williams, que fez muito sucesso na Broadway nas décadas de 1900 e 1910. Ambos enfrentaram preconceito, racismo e desqualificação, mas não se dobraram, desempenhando um importante papel na abertura de caminhos para outros artistas negros. Diz Martha Abreu:

Ao buscarem sucesso no campo do entretenimento, marcado por um público majoritariamente branco, Bert e Dudu conseguiram impor suas presenças no cenário musical moderno dos teatros e contribuíram significativamente para ampliar as oportunidades dos artistas descendentes de escravos e africanos. (p. 551)

Eduardo das Neves nasceu provavelmente em 1874. Desde moleque adorava cantar e tocar violão, como ele mesmo relata no seu lundu autobiográfico “O crioulo”. Antes de se dedicar profissionalmente à música, passou por vários empregos. Trabalhou na Estrada de Ferro Central do Brasil, da qual foi demitido por participar da greve dos últimos dias de 1891. No ano seguinte, engajou-se no Corpo de Bombeiros, mas foi afastado da corporação em 1893 por frequentar fardado as rodas da boemia. Acabou se encontrando profissionalmente numa companhia equestre, como também eram chamados os circos de cavalinhos, talvez a maior fonte de diversão para o grande público naqueles anos.

Como cantor, animador de circo, poeta e compositor, Dudu fez um sucesso espetacular. Logo se transformou num dos principais nomes da música popular brasileira na época. Embora sua base fosse o Rio de Janeiro, apresentou-se em shows por todo o Brasil. Em 1907, foi contratado pela Casa Edison, onde gravou cerca de 200 discos. Lançou pelo menos três cancioneiros com as letras de suas composições.

Compôs um grande número de canções românticas, mas tinha especial atração pelos temas da atualidade, especialmente políticos e sociais. Fizeram enorme sucesso seus lundus, modinhas, gargalhadas e cançonetas sobre a Revolta da Armada, a Guerra de Canudos, o atentado contra o ministro da Guerra, o monopólio da carne fresca, a alta no preço das passagens dos bondes, a questão do Acre, os aumentos de impostos, as fraudes eleitorais, a política dos governadores, o clientelismo, a Revolta da Chibata, a Guerra do Contestado. Dudu dizia que gostava de bater o malho enquanto o ferro estava quente — isto é, no calor dos acontecimentos. Seu maior sucesso foi “A conquista do ar”, que homenageou Santos Dumont quando, em 1901, ele assombrou o mundo, logrando contornar a Torre Eiffel pilotando um dirigível.

Mas se era antenado no presente, Dudu bebia também nas fontes do passado. Seu repertório incluía dezenas de canções que, nas décadas anteriores, haviam caído no gosto do povo, especialmente aquelas que vinham das senzalas e das festas urbanas. Se o cantor e compositor mulato Xisto Bahia, nas décadas de 1870 e 1880, havia levado das ruas para os palcos e impressoras de partituras modinhas e lundus como “A mulata”, “Preta mina”, “Isso é bom que dói”, “Lundu do pescador” e “Camaleão”, Eduardo das Neves fez a ponte entre muitas canções transmitidas oralmente pelos escravos e ex-escravos no século XIX e a indústria fonográfica, que surgiu nos primeiros anos do século XX.

Com seu talento, registrou e divulgou preciosidades como o já citado lundu “Preto Forro Alegre´ e também “Jongo africano´ (Odeon 120.985), “Negro forro´ (Odeon 108.763), “O entusiasmo do preto mina´ (Odeon 108.174), “Choro da arrelia´ (Odeon 10.334), “Iaiazinha” ou “Cafuné” (Odeon 108.074), “Mestre domingos e sua patroa” (Odeon 108.337), “Pai João – pot pourri” (Odeon 108.077) e “Canoa virada” (Odeon 108.739).

De forma precisa, Martha Abreu resgata essa contribuição inestimável de Eduardo das Neves:

Em suas músicas há uma dimensão identitária e de crítica às desigualdades raciais que evidencia sua busca por caminhos de inserção dos negros – e de suas temáticas – no mundo musical e artístico. […] Dudu fez questão de não esquecer o passado ao cantar, gravar e editar muitas conquistas dos escravos, como a alforria, as irreverências e a própria abolição da escravidão.

Três dos lundus mencionados acima lidam com um tema sensível: os romances entre as senhoras ou patroas com escravos ou ex-escravos. Basta lembrar que em 1882 a peça “A família Salazar”, de Artur Azevedo e Urbano Duarte, não recebeu o placet do Conservatório Dramático e, portanto, não pode ser encenada porque expunha as relações amorosas entre a sinhá Gabriela e o cativo Lourenço, que tiveram um filho, Gustavo, que o “sinhô Salazar” supunha ser seu. O drama seria publicado em texto pelos autores dois anos depois com o título de “O escravocrata”.

É verdade que o lundu “Iaiazinha” ou “Cafuné” foi composto por um branco, Eduardo Villas Boas. Mas, ao ser cantado pelo negro Dudu assumia outra conotação. No dueto “Mestre Domingos e sua patroa”, que tanto pode ter sido composto pelo Dudu como recolhido no domínio público, Mestre Domingos, negro, convence a sinhá, branca, a se casar com ele. No início, ela finge resistir. Depois, cede à tentação. O dueto termina com os dois em ponto de bala, prontos para comer maracujá – a fruta da paixão. Já o pot-pourri “Pai João” põe melodia na história, que aparece em alguns cancioneiros, do escravo que namora a bela iaiá quando o senhor vai à feira no sábado ou à missa no domingo.

Num domingo dia santo minha sinhô vai passeá

Num domingo dia santo minha sinhô vai passeá

Iô fica tomando conta de minha bela iaiá

O conteúdo dos versos é o mesmo existente na canção intitulada “Pai João”, recolhida no Nordeste por Rodrigues de Carvalho no século XIX e transcrita no seu Cancioneiro do Norte, cuja primeira edição é de 1903:

— Deus primita que chegue sabro

Que meu senhor vá pra feira

Pra eu ficar com min senhora

Sentadinho na cadeira

Bravos, sinhá moça

Bravos, assim

Pai João não gosta de negro

— Deus primita que chegue domingo

Que meu senhor

vá pra missa

Pra eu ficar com min senhora

Comendo boa linguiça

Bravos, sinhá moça

Bravos, assim

Uma observação: para alguns autores, o primeiro verso da segunda estrofe provavelmente seria “Pai João não gosta de negra”, e não de “negro”. Mas vá lá se saber… Seja como for, o escravo queria era que chegasse o sábado ou o domingo para ficar a sós com a “sinhá moça”.

Como se vê, no “folclore do Pai João” quase não aparece o escravo acabrunhado. No conjunto das variantes mencionadas em Da senzala ao palco, ele se mostra crítico, irônico, aguerrido, orgulhoso, revoltado e, inclusive, assanhado. Raramente submisso.

O pot-pourri cantado por Eduardo das Neves, mencionado há pouco, traz ainda trecho de outro lundu que só reforça a ideia de que “Pai João” era um homem que, mesmo em condições de risco, lutava por seus direitos. À noite, a polícia chega à casa do negro, provavelmente forro, e manda que ele abra a porta. Ele se recusa a cumprir a ordem, porque era tarde e sua mulher, Catarina, estava dormindo.

Pai João,

Abre a porta, negro

Por ordem do delegado

[…]

Iô não abre minha porta

Nem que seja de inspetor

Não abre porque não quero

Catirina já deitô

Catirina já deitô

Quantos brasileiros hoje em dia

— negros, mestiços, brancos, índios

— se recusariam a abrir a porta de casa para a polícia à noite?

Por último, chegamos a uma canção emblemática gravada por Eduardo das Neves. “Canoa virada” é pura festa, comemorando o fim da escravidão: “Vou por vilas e cidades/ Até pelos arrabaldes / Não há quem não desejasse, o gerê,/ O dia da liberdade”. O refrão do lundu revela a crença de que, com o fim do cativeiro, a vida iria mudar. A abolição teria deixado a canoa de cacunda para o ar. Tinha chegado “a ocasião da negrada bumbar”.

A viola já deu baixa

Violão não tem valia

A viola já deu baixa

Violão não tem valia

Até o 13 de maio, meu bem

Já pode marcar quadrilha

Ai, caruru arrenegado

Toda noite me atentou

Quando foi de madrugada

Foi-se embora e me deixou

As crioulas que só comiam

O puro angu com feijão

As crioulas que só comiam

O puro angu com feijão

Agora comem tainha, gerê

Até tomar indigestão.

A canoa virô

Deixá-la virá

De boca para baixo

Cacunda pro ar

Chegou ocasião da negrada bumbá

A viola já deu baixa

Violão não tem valor

A viola já deu baixa

Violão não tem valor

O preto já é livre

Grita que não tem sinhô

A canoa virô, deixa-la virá …

Vou por vilas e cidades

Até pelos arrabaldes

Vou por vilas e cidades

Até pelos arrabaldes

Não há quem não desejasse, o gerê,

O dia da liberdade

A canoa virô, deixá-la virá …

É importante assinalar que “Canoa virada´ tem a mesma melodia de “Caruru´ (Disco Odeon 40.070), gravado por Mario Pinheiro, antiga canção preconceituosa e racista de quem inclusive cita o estribilho.

Meus senhores me dispensem

Um momento de atenção

Vou bulir com as crioulinhas

Por meio de uma canção

Caruru arrenegado

Que toda noite me atentou

Mas quando foi de madrugada

Foi-se embora e me deixou

As branquinhas são prata fina

As mulatinhas cordão de ouro

Cabrinha é cobre falso

E negra é surrão de couro

Caruru arrenegado …

As branquinhas bebe champanhe

As mulatinhas vinho do porto

Cabrinha bebe cachaça

E negra sangue de porco

O fato de que os dois lundus — o que dissemina preconceitos e o que comemora a abolição — tenham a mesma música é significativo. Coincidência ou resposta intencional? Fico com a segunda alternativa. Mesmo no caso da primeira hipótese, ela pode ser apenas expressão inconsciente da segunda. Em sociedades de forte transmissão oral, melodias e versos costumam se relacionar de forma intensa e inesperada. As paródias são comuns e, com muita frequência, não se limitam a tomar emprestada essa ou aquela base musical, mas respondem intencionalmente ou não ao conteúdo polêmico de canções já existentes. Nessas sociedades, a música popular é um dos principais terrenos de expressão do debate público.

Que o diga o “Pai João´. Que o diga o “Crioulo Dudu´. É o que nos diz, de forma rica e instigante, o livro de Martha Abreu.


Notas

1 Por exemplo, Martha Abreu, “Outras histórias de Pai João: conflitos raciais, protesto escravo e irreverência sexual na poesia popular -1880-1950”, Afro-Ásia, n. 31 (2004), pp. 235-76.

2 César das Neves, Cancioneiros de Músicas Populares, Porto: Typographia Occidental, 1893, v. 3, p. 195.

3 Francisco Pinheiro Guimarães, A punição: drama em um prólogo e três atos, Rio de Janeiro: A. M. Coelho da Rocha, 1864.

4 Martha Abreu, “O µcrioulo Dudu’: participação política e identidade negra nas histórias de um músico cantor (1890-1920), Topoi, v. 11, n. 20 (2010), pp. 92-113‑ e idem, “Sobre Mulatas Orgulhosas e Crioulos Atrevidos: conflitos raciais, gênero e nação nas canções populares (Sudeste do Brasil, 1890-1920)´, Tempo, n. 16 (2002), pp. 143-73.


Resenhista

Franklin Martins – Jornalista. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

ABREU, Martha. Da senzala ao palco: canções escravas e racismo nas Américas (1870-1930). São Paulo: Editora da UNICAMP, 2017. e-book. Resenha de: MARTINS, Franklin. De Pai João ao crioulo Dudu. Afro-Ásia, n. 57, p. 235-244, 2018. Acessar publicação original [DR/JF]

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