Esse cabelo: a tragicomédia de um cabelo crespo que cruza fronteiras | Djaimilia Pereira de Almeida

Esse cabelo: a tragicomédia de um cabelo crespo que cruza fronteiras. Rio de Janeiro: Leya, 2017. 144 p. A minha mãe cortou-me o cabelo pela primeira vez aos seis meses. O cabelo, que segundo vários testemunhos e escassas fotografias era liso, renasceu crespo e seco. Não sei se isto resume a minha vida, ainda curta. […] Nasce daquele primeiro corte a biografia do meu cabelo. […] A verdade é que a história do meu cabelo crespo cruza a história de pelo menos dois países e, panoramicamente, a história indireta da relação entre vários continentes: uma geopolítica. (p. 9)

Quando li Esse cabelo, fiquei impressionada com a maneira de Djaimilia Pereira de Almeida utilizar-se de sua relação subjetiva com o cabelo crespo para discutir as relações complexas entre a África e a Europa, entre Portugal e Angola, entre negros e brancos no mundo contemporâneo. A obra é, ao mesmo tempo, uma escrita sobre ³si mesmo´ (sujeito moral pensado como categoria teórica que interfere no entendimento ético do ser humano) e sobre as condições e os ajustes de pessoas negras na pós-colonialidade.

A autora é fruto de uma relação birracial e destrincha as tensões entre duas culturas através da busca pela origem de seu cabelo. Djaimilia inicia a narrativa com um comentário magnífico do encontro entre dois mundos diferentes a partir de um diálogo, ao mesmo tempo irônico e profundo, com uma frase de Claude Lévi-Strauss retirada de Tristes trópicos, o que revela vestígios de seu interesse por obras de intelectuais que impactaram a história do pensamento ao tratarem do ³outro´.

Estar grato por ter um país assemelha-se a estar grato por ter um braço. Como escreveria se perdesse o braço? Escrever com o lápis preso nos dentes é um modo de fazermos cerimônia conosco. Testemunhas afiançam-me que sou a mais portuguesa dos portugueses da minha família.É como se me recebessem sempre com um “Ah! A França! Anatole, Anatole!´ como receberam Claude Lévi-Strauss num povoado do Brasil. A única família com que conseguimos falar é, porém, aquela que não nos responde. Acreditamos que essa família nos interpreta o mundo, quando passamos a vida a traduzir o novo mundo para a sua língua. Digo a Lévi-Strauss: “Esta é a minha tia, uma grande admiradora sua.´ Lévi -Strauss responde invariavelmente: “Ah! A França! Anatole…´ etc. Escrever com o lápis preso nos dentes é escrever para um aldeão diante do seu primeiro francês. A questão de saber a quem responde o que escrevemos pode consolar-nos dos nossos interesses miniaturais, levando-nos a imaginar que o que dizemos é apesar de tudo importante. Fazer cerimônia com o que se tem para dizer é, contudo, uma forma de cegueira. Escrever tem pouco que ver com imaginação e parece-se com um modo de nos tornarmos dignos de não recebermos resposta. A nossa vida é tomada todo o tempo por essa família taciturna — a memória — como Thatcher temeu que a cultura da Inglaterra fosse inundada por imigrantes. (p. 8)

É possível entender o livro como uma espécie de ensaio sobre estruturas históricas e sociais que abalam e tentam moldar aspectos subjetivos dos sujeitos ao padrão dos valores dominantes.

Djaimilia Pereira de Almeida, que nasceu em Luanda e vive em Lisboa, recupera a sua história e a ancestralidade diaspórica africana através de uma linhagem feminina que começa a se perceber a partir de uma subjetividade configurada entorno do cabelo, a qual se torna mais visível quando as mulheres se reúnem para trançar, pentear, “domar´, cuidar dos cabelos. É nesta experiência íntima e ao mesmo tempo coletiva que a ideia de Portugal como um país multicultural no mundo contemporâneo vai se desfazendo enquanto a narradora, com humor e ironia, expõe e indaga sobre os silenciamentos da existência “do outro´, a partir do relacionamento com o próprio cabelo.

As melenas crespas haviam sido sempre um problema para a autora, tanto pela autoestima agredida pelo julgamento social do seu cabelo quanto pela identidade constantemente abalada por imposições de adequação do cabelo aos modelos brancos de comportamento e de estética.

O fato de ter cabelo crespo, de ser negra, de ser mulher, de sofrer com a presença do cabelo como tema constante em sua vida e dinâmicas, fez com que Djaimilia quisesse dividir sua experiência não apenas relatando o seu caso, como se ele, por si só, fosse capaz de aglutinar todos os dramáticos casos em torno do cabelo não liso, não autorizado. A autora narra a si mesma como parte de um questionamento sobre as consequências coloniais que continuam a interferir na vida de vários indivíduos, principalmente da mulher negra. Esteticamente, o livro é uma combinação interessante e desconcertante de gêneros literários‑ um jogo que a autora faz com a tradição europeia cuja hierarquia literária continua a classificar a escrita de mulheres como uma literatura menor.

A voz narrativa de Esse cabelo começa a revisitar suas memórias enquanto busca a origem de seus cabelos, procurando traçar uma autobiografia em conjunto com a história de sua família. Em certos momentos, a obra é um ensaio filosófico sobre o encontro das diferenças, em outros é uma ficcionalização do passado de seus avós, e em outros, ainda, suas próprias memórias. O jogo entre passado e presente também traz à tona os comportamentos histórico-sociais entre dois países marcados por uma história de colonização.

Trazendo uma prosa poética em alguns momentos, a autora mergulha num lugar coletivo que, ao mesmo tempo, é íntimo e feminino, além de ser um lugar ardiloso de racismo e estratégias de sobrevivência cultural por parte de mulheres e homens negros vivendo na sociedade europeia:

E no entanto o meu cabelo – e não o abismo mental – é o que me liga diariamente a essa história. Acordo desde sempre com uma juba revolta, tantas vezes a antítese do meu caminho, e tão longe dos aconselhados lenços para cobrir o cabelo ao dormir. Dizer que acordo de juba por desmazelo é já dizer que acordo todos os dias com um mínimo de vergonha ou um motivo para me rir de mim mesma ao espelho: um motivo vivido com impaciência e às vezes com raiva. Devo, porventura, ao corte de cabelo dos meus seis meses a lembrança diária que me liga aos meus. Em tempos disseram-me uma “mulata das pedras´, de mau cabelo e segunda categoria. Esta expressão ofusca-me sempre com a reminiscência visual de rochas da praia: rochas lodosas em que se escorrega e é difícil andar descalço.

A alienação ancestral surge na história do cabelo como qualquer coisa a que se exige silêncio, uma condição de que o cabelo poderia ser um subterfúgio enobrecido, uma vitória da estética sobre a vida, fosse o cabelo vida ou estética distintamente. Os meus mortos estão porém, em crescimento. Falo e vêm como versões do que foram de que não me lembro. Esta não é a história de suas posturas mentais, a que não me atreveria, mas a de um encontro da graça com arbritariedade, o encontro do livro com o seu cabelo. Nada haveria dizer de um cabelo que não fosse um problema. (p.13)

A autora traz essa parte do corpo como metáfora de problemas raciais e culturais, pois, sendo filha de pai português branco e mãe negra angolana, narra- nos sem pudores as estratégias de embraquecimento às quais esteve exposta desde cedo, principalmente por pressão das mulheres brancas da família. Em suas memórias resgatadas de forma fragmentada e com esse humor requintado, vamos percebendo o mundo oposto que era o das duas famílias, a paterna e a materna, mantendo-se o preconceito que revela o olhar ainda colonial, como se pode ler neste trecho, no qual se percebe o que pensa cada uma das avós sobre o cabelo da menina:

A minha avó branca (de que forma dizê-lo sem soar a novela brasileira?) perguntava-me pelo cabelo: “Então, Mila, quando é que tratas “esse cabelo´? O cabelo era então distintamente uma personagem, um alter ego presente na sala. A minha avó angolana, uma negra fula chamada Maria da Luz (já o disse?), a Mamã, que ficou imobilizada ainda jovem […] uma inválida de quem se poderia contar uma história negativa a partir dos sítios aonde nunca foi, uma Lisboa que nunca viria a conhecer, do autocarro que nunca estaria, do colorido das ruas em que nunca andou desviando o olhar do homem-elefante omnipresente –Maria da Luz orgulhava-se do meu cabelo. (p. 42)

Dajaimilia Almeida não apenas desafia o cknone da escrita, ela joga com ele e acaba trazendo a sua experiência com o cabelo crespo e o racismo da sociedade portuguesa para uma reflexão geral em torno das amarras que fazem com que, até agora, sejam reproduzidos os mesmos esquemas colonialistas que deflagram o racismo e outras formas de discriminação. Qualquer leitor, negro ou branco, vai acompanhar a saga do cabelo da narradora com uma ou muitas perguntas sobre seu próprio “eu´ diante de uma só história‑ de um único modelo de existir, um único padrão de beleza, de higiene, de boa aparência. A forma de narrar a si mesma, nesse caso, passa por uma proposta da autora de se descobrir como parte de um processo histórico e ao mesmo tempo, ao se reconhecer como participante de um certo grupo social, questionar com a escrita tanto quanto com a temática. Judith Butler comenta que quando “se fala em dar um relato de si mesmo, também se está exibindo, na própria fala, o logos pelo qual se vive´1. Acredito mesmo que Esse cabelo propõe uma ação da autora para colaborar através de sua própria dicção com uma história que interessa a qualquer pessoa, sobretudo às mulheres negras. Butler diz ainda que “a questão não é apenas harmonizar a fala com a ação, embora seja essa a ênfase dada por Foucault‑ a questão também é reconhecer que a fala já é um tipo de fazer, uma forma de ação que já é uma prática moral e um modo de vida´. Além disso, diz Butler, ela “ pressupõe uma troca social´2. Indo além, a fala de si não apenas pressupõe uma troca social, mais do que isso, o narrar a si mesmo só é possível porque é essencialmente social, uma vez que o sujeito não pode viver apenas para si mesmo. O si mais interior que possa existir é um si mesmo em relação a um outro.

Quando tomamos esse dispositivo no campo da História, é fácil observar que a narrativa do outro é dada em sacrifício para o estabelecimento de um sujeito universal que inviabiliza o encontro das diferenças como potencialidade na construção de sociedades efetivamente multiculturais. A história colonial forja o mito do encontro racial, liberando armadilhas discursivas para a manutenção da opressão eurocêntrica na chamada “democracia racial´. O discurso de dominação usa “o outro´ para construir a sua ideia de sujeito‑ a história fez do homem branco o sujeito evoluído, superior, emancipado, merecedor de riquezas, a partir da construção dos outros como o oposto de tudo isso.

Djaimilia trata, através da história de sua família, das tensões entre as culturas africanas e europeias, localizando o lusitanismo como armadilha complexa que mesmo na história pós-colonial se revela mantenedora de sistemas de opressão.

Em um trecho da obra, ao descrever uma fotografia antiga com o pai, a narradora se lembra de quando passeava em Lisboa com o seu pai, um homem louro. Na lembrança, de novo a surpresa do encontro das diferenças revelado pelo cabelo mais do que qualquer outra coisa:

A fotografia do Trinaranjus repousa numa caixa velha a que retorno muitas vezes. Não é preciso quase nada para fazer história. […] O meu pai levava-me a andar de pônei e eu afectava umas vertigens. Espelhos mágicos mostravam-me como eu seria um dia, numa repetição maravilhosa que me consolava. Foi num desses passeios que nos abordaram numa rua de Lisboa, em que seguíamos de mãos dadas, se éramos da mesma família, eu e o meu pai, com uma curiosidade abominável. (p. 62)

A contradição das relações aparentemente já resolvidas, na fantasia de um Portugal feito de várias raças, várias culturas, é constantemente revelada pelo corpo, nas várias referências a doenças, problemas físicos (invalidez, uma perna maior que outra e coisas do tipo), estéticas. Além desse aspecto interessante, a narradora mostra que há muitos silêncios morais em torno dos corpos dos portugueses, que estão sempre invisibilizados para os imigrantes, especialmente os africanos, como também a vida e os corpos dos imigrantes encontram-se vedados aos portugueses. Várias passagens do livro revelam as conversas de brechas de janelas, o incômodo do encontro de elevador, a atenção nas ruas para as diferenças físicas. A narradora chega a perguntar, em uma passagem, como seria se fossem eles, os portugueses, os invisíveis na sociedade. A ausência do africano na sociedade portuguesa é marcada metaforicamente pela narradora ao deixar a mãe praticamente ausente da narrativa, com aparições esporádicas. A autora chega a falar das visitas à mãe em Luanda e da mãe a ela em Lisboa, mas não esconde que era como se tivessem os papéis invertidos quando se encontravam ou como se fossem estranhas uma à outra. Esse fato me faz pensar que a autora talvez construa esta metáfora para estabelecer um paralelo entre a relação e a ligação umbilical-histórica entre Portugal e Angola, como se essas geografias estivessem em uma relação maternal/filial perigosa ainda que especial.

Esse cabelo é uma narrativa inquietante e extremamente sagaz sobre uma Europa já ofuscada pela crescente independência de grupos historicamente oprimidos. A narradora, finalmente, assume a sua “juba´ como o traço mais especial de sua identidade dentro do mundo luso-africano contemporâneo, mas não sem entrar profundamente na pergunta de quem ela é:

Este livro é escrito num pretérito imperfeito de cortesia. A cortesia é a virtude devida ao que não se pode dizer, como se apenas me restasse fazer cerimônia com o que me é familiar. Este é o fantasma formal que me persegue: o receio de que o melhor meio seja expor os meios. Como o espantalho da máscara de noventa e dois, expor os meios é uma forma de espantar respostas. Então o que o espantalho afugenta é a realidade e as suas personagens, os recursos da biografia e a sua poética espinhosa. “Quem é a Mila?´ “Eu mesma´ não coincide bem comigo. O cabelo corta-se e renova-se prologando a sucessão dos ciclos, mas tal não é senão uma via em extinção. Cada ciclo do cabelo é somente um ciclo do livro do cabelo. Serei eu (“eu mesma´?) que empresto à sua história importância, contando-a? Pergunto-me como escrever com distância se mexo na memória, mas a distância, apercebo-me então, é condição da memória, não uma moral. Todo o passado é um satélite conveniente. (p. 82)


Notas

1 Judith Butler, Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Trad. Rogério Bettoni. 1ª. Ed., Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.

2 Idem.


Resenhista

Milena Britto – Universidade Federal da Bahia. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

ALMEIDA, Djaimilia Pereira de. Esse cabelo: a tragicomédia de um cabelo crespo que cruza fronteiras. Rio de Janeiro: Leya, 2017. Resenha de: BRITTO, Milena. Um mapa diaspórico nas tramas do cabelo. Afro-Ásia, n. 57, p. 215-220, 2018. Acessar publicação original [DR/JF]

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