Health Equity in Brazil: Intersections of Gender/Race/and Policy | Kia Lilly Caldwell

No livro Health Equity in Brazil: Intersections of Gender, Race, and Policy (Equidade em saúde no Brasil: intersecções de gênero, raça, e política Pública), Kia Caldwell, professora da Universidade da Carolina do Norte, procura analisar como fatores estruturais e institucionais contribuíram e continuam a contribuir para a precarização da saúde de milhares de mulheres e homens negros. Caldwell chama a atenção para o insucesso do Brasil em desenvolver políticas que resolvam as questões de saúde que impactam desproporcionalmente a população negra até o início do século XXI. Ela enfatiza, ainda, o fato de o país não apresentar longa tradição de pesquisas ou de políticas em saúde focadas nas desigualdades raciais ou étnicas. Discorre, por um lado, sobre os esforços do Brasil no que se refere ao enfrentamento da epidemia de HIV/AIDS, e, por outro, sobre os desafios para assegurar equidade em saúde para a população afrodescendente. No que se refere à questão da garantia de saúde de qualidade para seus cidadãos, em particular para negras e negros, Caldwell examina o fato de o país ter sido bem-sucedido em certos desafios, mas ter falhado em confrontar outros.

Na introdução, a autora inarra o caso de de Alyne da Silva Pimentel, negra de 28 anos, que morreu em 2002 devido a complicações de saúde decorrentes do parto de seu filho, natimorto. Houve denúncias de que o estado de Alyne se agravara por negligência médica do centro de saúde onde estava internada. A situação ganhou repercussão nacional e internacional como exemplo do tratamento desigual em saúde a que mulheres negras estão submetidas no Brasil, e levou o CEDAW (Comitê para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher) a emitir uma decisão, de acordo com seu regulamento, indicando que a morte da jovem constituía uma violação dos direitos à vida, à proteção das mulheres e à saúde. O Comitê estabeleceu, ainda, que a morte de Alyne resultou de uma dupla discriminação racial e de gênero. Adicionalmente, Caldwell traça nesta seção um panorama sócio-histórico do desenvolvimento de ações e políticas de saúde impulsionadas pelos movimentos de mulheres, em especial das mulheres negras, e pelos formuladores de políticas públicas.

No capítulo 1, “Sonhos e pesadelos feministas: a luta pela equidade de gênero em saúde no Brasil´ (Feminist Dreams and Nightmares: The Struggle for Gender Health Equity in Brazil), a autora centra suas análises em dois pontos: o desenvolvimento das políticas de saúde para as mulheres a partir do início dos anos 1980 e o papel fundamental que as ativistas feministas da saúde desempenharam no que se refere a demandar e apontar a necessidade de promover a equidade de gênero em saúde. Ela demonstra que já há várias décadas, temas como a saúde das mulheres, em particular a saúde reprodutiva e o aborto, têm se constituído nos principais pontos da agenda de lutas das feministas brasileiras.

Caldwell rememora a montagem dos principais programas e instituições relacionados ao desenvolvimento das políticas e ações em saúde no país, a exemplo da Sociedade Civil de Bem-Estar Familiar (BEMFAM), do Centro de Pesquisas de Assistência Integral à Mulher e à Criança (CPAIMC), do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PNAISM), da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), da Federação Internacional de Planejamento Familiar (IPPF), dentre outros. Considerando este cenário, Caldwell procura explorar as seguintes questões: como as políticas estatais de saúde das mulheres se desenvolveram e passaram por mudanças desde o início da década de 1980? Qual o papel das ativistas feministas da saúde no desenvolvimento de políticas de saúde para as mulheres? Quais os desafios para alcançar a equidade de gênero na saúde no Brasil? Discute-se também alguns dos principais desafios que surgiram relacionados à promoção da equidade de gênero na saúde ao longo das duas gestões da presidente Dilma Rousseff.

No segundo capítulo, “O ativismo em saúde das mulheres negras e o desenvolvimento da política interseccional de saúde (Black Women’s Health Activism and the Development of Intersectional Health Policy), Caldwell utiliza o conceito de interseccionalidade para analisar a trajetória do ativismo das mulheres negras em saúde no Brasil. Ela aponta que a posição ocupada pelas mulheres negras no cruzamento entre discriminação racial, de gênero e classe, confere a estas uma perspectiva singular sobre a saúde e lhes tem permitido desenvolver uma abordagem interseccional sobre a política de saúde. Essa abordagem é identificada como fundamental porque evidencia a tendência de formuladores de políticas públicas em voltar suas atenções para mulheres ou e afrodescendentes em geral. O capítulo examina o ativismo das mulheres negras no nível local, vislumbrando as ações de organizações não governamentais, e ainda, em nível nacional e transnacional. Particularmente, Caldwell indica o protagonismo assumido pela organização das mulheres negras brasileiras na III Conferência Mundial contra o Racismo, realizada em 2001 em Durban, África do Sul. O livro destaca a centralidade de algumas das muitas organizações de mulheres. Dentre as organizações do movimento mais amplo de mulheres destacou-se a Rede Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, a CEPIA (Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação), o CFEMEA (Centro Feminista de Estudos e Assessoria), o SOS CORPO – Instituto Feminista para a Democracia, e o Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde. E dentre as organizações negras a autora destaca as contribuições da Geledés, Maria Mulher, Fala Preta, e a Articulação de Organizações de Mulheres Negras do Brasil (AMNB).

O capítulo 3, “Mapeando o desenvolvimento das políticas de saúde para a população negra: do Centenário da Abolição ao Estatuto da Igualdade Racial´ (Mapping the Development of Health Policies for the Black Population: From the Centenary of Abolition to the Statute of Racial Equality) analisa o desenvolvimento de políticas de Estado voltadas para a saúde da população negra, buscando também compreendê-las no contexto das mudanças políticas desde 1988. Considerando que a sociedade brasileira atribui pouca importkncia a raça e cor da pele como elementos para explicar a discriminação, a autora explora de que maneira a relação entre raça e o estado de saúde dos afro-brasileiros tem sido contextualizada nas últimas décadas‑ e neste sentido indaga como as políticas de saúde para a população negra se desenvolveram no kmbito federal e no Sistema Único de Saúde (SUS), em especial a partir das seguintes questões: a influência de movimentos políticos cruciais, como a Marcha Zumbi dos Palmares (1995) e a Conferência Mundial Contra o Racismo (2001), bem como defensores e críticos das políticas de saúde voltadas para a população negra e outras políticas que levam em consideração a questão racial propiciam uma visão sobre a mudança de discussão e práticas do Estado relacionadas à raça e ao racismo.

O capítulo 4, “Estratégias de enfrentamento do racismo institucional e a cegueira da cor no setor de saúde´ (Strategies to Challenge Institutional Racism and Color Blindness in the Health Sector) aborda algumas das principais questões e desafios envolvidas na implementação efetiva das políticas de saúde voltadas para a população negra no país. Caldwell focaliza numa discussão que privilegia o estabelecimento de iniciativas de enfrentamento do racismo institucional na área da saúde. E ainda discute a complexidade da implementação efetiva do quesito raça/cor nos registros epidemiológicos e na pesquisa em saúde. Ambas as questões evidenciam as implicações raciais das políticas de saúde para a população negra e também o impacto que crenças baseadas na ideia de que o racismo não existe no Brasil, ou está circunscrito ao preconceito individual, tem tido na implementação efetiva das políticas de promoção da equidade racial em saúde.

No capítulo 5, “O caso Alyne: mortalidade materna, discriminação interseccional e direitos humanos em saúde no Brasil´ (The Alyne Case: Maternal Mortality, Intersectional Discrimination, and the Human Right to Health in Brazil), a autora se debruça sobre duas questões: o contexto em torno da morte de Alyne da Silva Pimentel, aqui já mencionado, e a posterior decisão legal de examinar a mortalidade materna no Brasil, particularmente questionando como esta afeta mulheres afrodescendentes pobres. Caldwell procurou analisar as maneiras pelas quais a morte de Alyne e o caso legal que sua família moveu ilustram as experiências das mulheres negras brasileiras frente à mortalidade materna. A discussão é direcionada a partir das seguintes questões: que papel gênero, raça e classe desempenham na formação da vulnerabilidade das mulheres afro-brasileiras à mortalidade materna? Como o Estado brasileiro buscou abordar e reduzir a mortalidade materna? Quais são os pontos fortes e as limitações dessas abordagens, particularmente para as mulheres afro-brasileiras? Quais os potenciais benefícios que podem ser obtidos com a utilização de uma abordagem de direitos humanos para tratar a mortalidade materna entre as mulheres afro-brasileiras?

Finalmente, no capítulo 6, ““Tornando raça e gênero visíveis na defesa de políticas e a pesquisa sobre HIV/AIDS no Brasil´ (Making Race and Gender Visible in Brazil’s HIV/ AIDS Epidemic Policy, Advocacy, and Research), Caldwell analisa o conjunto de esforços empreendidos para enfrentar a prevenção do HIV/ AIDS entre a população afro-brasileira, e examinatais esforços no contexto mais amplo dos programas de prevenção e tratamento da doença no país. Ela procura mapear o desenvolvimento das políticas públicas e iniciativas acerca da epidemia no kmbito federal e questiona em que medida as necessidades específicas da população afro-brasileira foram abordadas nas últimas décadas. Examina, por fim, as iniciativas de prevenção e apoio de organizações de mulheres negras no que diz respeito à epidemia e discute como o trabalho das comunidades locais revelam as dimensões racial, de gênero e de classe do HIV/AIDS.

Na conclusão Caldwell amarra as várias vertentes do argumento do livro e examina os desafios atuais e futuros que envolvem a política de saúde brasileira. Avalia os limites das políticas universalistas para a obtenção de equidade racial e de gênero em saúde no país e o potencial do conceito de interseccionalidade para promover mudanças nesta área. Adicionalmente, discute os desafios políticos e os desafios das políticas enfrentados pelo Brasil em meados de 2010, particularmente o surto do vírus Zika e a crise política que levou ao julgamento e afastamento da presidente Dilma Rousseff do governo. Caldwell conclui pontuando que muitos dos avanços em prol da saúde das mulheres negras discutidos no livro eram extremamente frágeis e sujeitos a serem revertidos em 2016, quando Rousseff caiu vítima do impeachment.

O mérito do livro é o de congregar numa mesma reflexão os distintos processos agentes governamentais e não-governamentais, e conjunturas que influenciaram e continuam a influenciar os rumos das ações e políticas em saúde e direitos sexuais e reprodutivos no Brasil, desde os anos 80 até os dias atuais. Esobretudo por evidenciar que as mulheres negras têm sido as maiores vítimas das insuficiências institucionais do sistema de saúde público no país. Trata-se, portanto, de leitura importante para compreendermos os efeitos das desigualdades raciais e de gênero na área da saúde, bem como para demonstrar a urgência de mais estudos que permitam aprofundar o entendimento sobre os mecanismos que produzem essas iniquidades, de modo a orientar ativistas e formuladores de políticas na busca de soluções para melhorar e garantir a qualidade da saúde de toda a população.


Resenhista

Sônia Beatriz dos Santos – Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

CALDWELL, Kia Lilly. Health Equity in Brazil: Intersections of Gender, Race, and Policy. Urbana: University of Illinois Press, 2017. Resenha de: SANTOS, Sônia Beatriz dos. A emergência da política interseccional de saúde no Brasil: perspectivas sobre raça e gênero. Afro-Ásia, n. 57, p. 225-229, 2018. Acessar publicação original [DR/JF]

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